Capítulo 2: Ainda Era Ela

[ Cannes English Bookshop, Cannes Center - França]

Camila Vasquez | 08:00 AM, Três Dias Depois.

Nunca achei que o tempo curaria alguma coisa. Algumas dores não cicatrizam, só aprendem a ser disfarçadas com roupas bonitas e palavras ensaiadas.

Eu acordei mais cedo hoje, como se algo em mim soubesse que o dia seria diferente. Não sei explicar. Era como uma inquietação atravessando o peito, como um pressentimento silencioso. Vesti meu casaco preferido, amarrei o cabelo de qualquer jeito e saí andando pelas ruas de Cannes como quem procura uma saída — mas sem saber exatamente de onde está tentando fugir.

Entrei numa livraria pequena, dessas que ainda cheiram a papel e têm uma trilha sonora discreta, meio francesa demais pra minha realidade. Fui direto para a sessão de clássicos. O Morro dos Ventos Uivantes estava ali, com a capa desgastada e o título gritando para mim. Engraçado como certos livros nos escolhem, não o contrário.

Estendi a mão. E ouvi.

A voz.

Meu mundo parou. Meus dedos congelaram antes de tocarem o livro.

— Você ainda gosta desse?

Aquele tom grave. Ríspido e doce ao mesmo tempo. Uma voz que morei por meses, que me sussurrou promessas e depois me deixou dormindo com o coração em pedaços.

Virei devagar. E lá estava ele.

Nicolas.

Dois anos depois, ele ainda conseguia me tirar o ar.

Usava um blazer escuro e uma camisa amassada. Os cabelos estavam maiores, a barba mais marcada, o olhar mais… pesado. Como se tivesse envelhecido por dentro. Como se tivesse se tornado o homem que tanto lutava pra não ser.

Camila: Você me seguiu? — perguntei com uma frieza que desmentia meu peito em chamas.

Nicolas: Não. Quer dizer… não exatamente. Foi o acaso.

Ri, amarga.

Camila: O acaso sempre teve um senso de humor trágico com a gente.

Ele deu um passo, e eu recuei. Meu corpo lembrou de tudo antes mesmo que minha mente pedisse calma. Era como se os espaços entre nós gritassem todas as palavras que a gente nunca teve coragem de dizer.

Nicolas: Você está bem? — ele perguntou.

Tão simples. Tão cruel.

Camila: Estou viva. O que, vindo de nós dois, já é um milagre.

Silêncio.

Ele queria dizer algo. Eu também. Mas o tempo pesa diferente quando o passado ainda sangra. O relógio pode girar mil vezes, mas certas dores continuam ali, esperando um momento de descuido pra reabrir tudo.

Camila: Não faz isso, Nicolas — murmurei.

Nicolas: Isso o quê?

Camila: Me olha como se ainda houvesse nós. Como se você tivesse o direito de me perguntar como eu estou, depois de ter me deixado sozinha naquele apartamento, cercada de promessas vazias e lembranças sujas de mentiras.

Ele desviou o olhar. A vergonha dele era meu único consolo.

Nicolas: Eu não queria te machucar.

Camila: Mas machucou. E o pior: fez parecer que era minha culpa.

Nossos olhos se encontraram. Era como um campo minado. Uma guerra silenciosa entre orgulho e saudade.

Nicolas: Eu nunca te culpei, Camila — ele disse.

Camila: Não com palavras. Mas com os silêncios. Com as ausências. Com o jeito que você parou de me olhar como se eu fosse casa e passou a me olhar como se eu fosse prisão.

Minha voz falhou no fim. Engoli o choro como quem aprende a não derramar mais.

Camila: Eu não sei o que estou fazendo aqui — confessei, quase em sussurro. — Talvez tentando entender onde foi que a gente se perdeu.

Nicolas: A gente não se perdeu — ele respondeu. — Eu te perdi. E nunca mais me encontrei.

Fechei os olhos. Era tarde demais para frases bonitas.

Peguei o livro. Paguei no caixa. E saí.

Deixei ele ali. Parado. Imóvel. Como todas as vezes em que precisei que ele corresse atrás e ele não veio.

Mas alguma coisa dentro de mim… sabia. Aquilo não era o fim.

Era só o começo do reencontro mais perigoso da minha vida.

---

[ Cannes English Bookshop, Cannes Center - França]

Nicolas Stark | 08:30 AM.

Ela ainda tem o mesmo cheiro.

É estranho lembrar disso antes de qualquer outra coisa. Não da voz, nem do olhar. Mas do cheiro. Um perfume leve, doce, quase imperceptível, mas que ainda sabe invadir meu peito como um soco.

Quando a vi na livraria, meu coração não acelerou. Ele parou. Por alguns segundos, não existi. Só havia ela — com o cabelo preso de um jeito distraído, o casaco marrom que eu já tinha visto dobrado sobre a cama, e aquele olhar que sempre me desmontou. Um olhar que hoje só carrega o peso da mágoa.

Ela me olhou como se eu fosse um estranho. E talvez eu seja. Talvez o que sobrou de mim depois dela não seja digno sequer de ser lembrado.

Camila: Você me seguiu?

A pergunta veio como uma lâmina. Direta. Fria.

E eu merecia.

Nicolas: Não exatamente — menti.

Na verdade, sim. Eu a vi entrando na livraria e hesitei por longos minutos na calçada antes de decidir entrar. Ridículo. Um homem que já comandou salas com trinta acionistas tremendo diante da mulher que perdeu.

Não sabia o que dizer. O que se diz pra quem se destruiu? Pra quem você empurrou pra fora da sua vida por medo de mostrar o que realmente era por dentro?

Ela estava diferente. Mais forte. Mais firme. Mas havia dor. Uma dor que eu conhecia bem, porque fui eu quem a deixou ali.

Nicolas: Você está bem?

A pergunta saiu sem pensar. Idiota. Estúpida. Como se a resposta importasse depois de tudo que fiz.

Camila: Estou viva. O que, vindo de nós dois, já é um milagre.

Dois anos. Duas eternidades comprimidas em uma frase.

E ela continuava bela. Com aquela força amarga que só os que sobreviveram à queda aprendem a carregar.

Ela me culpou. Com razão. Mas o que mais doeu foi a frase que jogou como quem sangra: “Você parou de me olhar como se eu fosse casa e passou a me olhar como se eu fosse prisão.”

Aquilo me destruiu.

Porque foi verdade.

Ela foi meu refúgio, mas eu… eu não sabia como morar em paz dentro de alguém. Fui criado na culpa, moldado na dureza. Nunca soube lidar com ternura sem achar que havia um preço alto demais escondido ali.

Eu tentei amá-la. Mas o medo venceu. O medo sempre vence em homens como eu.

E agora? Agora ela me olha como quem já sepultou tudo, e mesmo assim o coração ainda bate em cima do túmulo.

Camila: Eu não sei o que estou fazendo aqui — ela disse.

Eu também não.

Ou talvez saiba.

Estou tentando sentir alguma coisa que não seja arrependimento.

Quando ela saiu, com o livro na mão e o orgulho intacto, algo dentro de mim gritou. Um grito silencioso, sem som, mas que vibrou em cada osso do meu corpo.

Camila.

Ainda era ela.

E, no fundo, eu sabia: não importa quanto tempo tenha passado, nem quantas promessas destruí…

Ela sempre será o lugar onde eu deixei a parte mais viva de mim.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!