Capítulo 05

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Acordei com Gael pulando na cama, animado como se o mundo fosse um parque de diversões.

— Mãe! A tartaruga comeu alface! — ele disse, mostrando o pratinho vazio como se fosse um troféu.

Sorri, mesmo com o cansaço apertando no peito.

— Que legal, meu amor. Alguém te ajudou?

— Não, eu que botei a comida! O bê ficou só olhando. — respondeu, orgulhoso.

Benício entrou no quarto logo depois, com seu jeito mais quieto, mas os olhos atentos em mim. Ele sempre percebe tudo. Sempre.

— Papai chegou? — perguntou direto.

A pergunta me pegou no contrapé. Suspirei, me abaixando para amarrar o cadarço do pijama de Gael só para não encará-los por um segundo.

— Ainda não, meu bem. Ele precisou resolver um probleminha no hotel. Mas disse que vai voltar logo.

Mentira. Ele não disse quando ia voltar. E, conhecendo Arthur, se a situação for mais grave do que contou, posso esperar dias.

— Ele sempre fala que vai voltar logo… — murmurou Benício, com um ar mais maduro do que eu gostaria que ele tivesse aos cinco anos.

Engoli em seco e forcei um sorriso.

— Então vamos fazer o papai sentir saudades? Café da manhã caprichado, roupa bonita e uma chamada de vídeo surpresa! Que tal?

Eles vibraram com a ideia, e eu os levei para a cozinha, tentando colocar uma playlist animada, frutas no prato e panquecas no fogo.

Mas a verdade era que…

Meu peito estava apertado.

Minha cabeça não saía de Arthur.

E, por mais que eu tentasse, não conseguia afastar a sensação de que aquilo tudo — as ausências, os problemas, as escapadas — era o começo de algo que eu temia desde o dia em que me apaixonei por ele: a perda.

Peguei o celular enquanto os meninos terminavam o café. Respirei fundo e disquei o número de Arthur. Toquei uma, duas, três vezes... nada. A ligação caiu direto na caixa postal.

Tentei de novo.

Mais uma vez, a mesma coisa.

— Ele não vai atender. — a voz de Benício veio baixa, mas firme.

Me virei para encará-lo. Seus olhos castanhos, tão iguais aos do pai, estavam fixos em mim, e ali havia algo que doía mais do que qualquer silêncio: decepção.

— Filho, o papai está trabalhando. Às vezes ele não consegue atender de imediato, mas…

— Mas ele nunca tem tempo pra gente. — completou, com a voz embargada.

Gael, do outro lado da mesa, largou o garfo e ficou me observando também. Os dois, tão diferentes em personalidade, mas igualmente atingidos pela ausência que Arthur deixava.

— Isso não é verdade — tentei manter minha voz firme. — O papai ama vocês. Ele só… Ele só tem uma responsabilidade muito grande.

— E a gente não é uma responsabilidade? — Benício rebateu.

Me calei. Engoli seco. Como explicar para duas crianças de quase seis anos que o amor não deveria ter que disputar espaço com trabalho? Que sim, eles eram prioridade — ou pelo menos deveriam ser?

Me aproximei e passei a mão nos cabelos dele.

— Vocês são tudo o que o papai mais ama. Só que às vezes… adultos erram tentando acertar.

Benício olhou para o prato e ficou em silêncio. Gael balançou as perninhas na cadeira, olhando para mim como se quisesse acreditar em cada palavra.

— Então ele vai vir dormir com a gente hoje? — perguntou Gael baixinho.

Meu coração quebrou mais um pedaço.

— Eu… vou tentar falar com ele de novo, tá? Mas se não for hoje, ele vai voltar logo. Eu prometo.

Mesmo sabendo que prometer algo fora do meu controle era arriscado.

Vesti uma legging preta, top cinza e amarrei os cabelos num coque alto. A academia era meu refúgio nos dias em que tudo parecia prestes a desmoronar — como hoje. Mas antes, precisava levar os meninos para a escola.

Benício e Gael estavam quietos no banco de trás, cada um com sua mochila no colo. Coloquei uma música suave no carro, tentando quebrar o silêncio que machucava mais do que qualquer grito.

— Vão se comportar hoje, hein? — falei, forçando um sorriso no retrovisor.

— Tá bom, mamãe — respondeu Gael, sempre doce.

Benício apenas assentiu, olhando pela janela com os braços cruzados.

Ao chegarmos na escola, estacionei e acompanhei os dois até a entrada. Estava prestes a dar tchau quando a coordenadora pedagógica, dona Marta, apareceu na porta da diretoria.

— Senhora Montenegro? Podemos conversar um minutinho?

Senti um arrepio percorrer minha espinha. Olhei para os meninos, sorri e os beijei na testa.

— Vão indo, a mamãe já vai.

Segui dona Marta pelo corredor em silêncio. Entramos em sua sala, ela fechou a porta e indicou que eu me sentasse.

— O que aconteceu?

Ela respirou fundo, buscando as palavras certas.

— É sobre o Benício. Ele tem demonstrado alguns comportamentos preocupantes nas últimas semanas. Agressividade com colegas, impaciência com os professores, respostas ríspidas…

— Benício? — questionei, surpresa. — Ele sempre foi tão calmo… quer dizer, não tão mais calmo que Gael, é claro.

— Exatamente por isso nos chamou atenção. Tivemos um episódio ontem em que ele empurrou um coleguinha durante o intervalo e gritou com a professora de artes. Quando foi questionado, ele apenas disse que “ninguém escuta o que ele sente mesmo”.

Engoli seco, sentindo uma culpa gelada subir pelo meu peito.

— Eu... eu vou conversar com ele. Ele tem passado por algumas coisas em casa. O pai viaja muito, tem trabalhado demais…

— Crianças sentem mais do que demonstram, senhora Montenegro. Talvez ele só esteja pedindo ajuda do jeito que consegue.

Assenti, tentando controlar as emoções.

— Obrigada por me avisar. Eu vou cuidar disso.

Saí da escola com o coração pesado, bem mais do que quando entrei. Liguei o carro, olhei para o banco de trás vazio, e tive vontade de voltar no tempo. Só um pouco. Só o suficiente para evitar que meus filhos sentissem esse buraco chamado ausência.

Treinar me ajudou a liberar um pouco da tensão, mas nem mesmo uma hora inteira de esteira, peso e música alta foi capaz de silenciar minha mente. Pensava em Benício, no que a diretora disse, e em como eu tinha falhado em protegê-lo do que mais temia: a sensação de abandono.

Cheguei em casa pouco antes do meio-dia. A casa estava silenciosa — só o barulho do ar-condicionado e o zumbido da cidade do lado de fora preenchiam o espaço. Me joguei no sofá, peguei o celular e vi que Arthur havia finalmente respondido.

"Desculpa, não vi quando você ligou."

Foi só isso.

Nenhuma pergunta sobre os meninos. Nenhuma pergunta sobre mim. Nem um maldito áudio sequer.

Suspirei e deixei o celular sobre a mesinha de centro. Típico. Arthur tinha o dom de me fazer sentir como se estivesse vivendo em uma cama de hotel: confortável, bonita por fora, mas fria e impessoal no fundo.

Levantei, tirei os tênis, amarrei o cabelo de novo e fui para a cozinha. Abri a geladeira, olhei para a comida, fechei. Não tinha fome. Só vontade de chorar — ou de gritar. Talvez os dois.

Subi as escadas devagar, o peso do silêncio me acompanhando. Entrei no quarto dos meninos, sentei na cama do Gael e peguei o boneco favorito de Benício. Aquele mesmo que ele largou há uns dias e não quis mais saber. Sinal de que algo estava mesmo errado.

Peguei o celular de novo, hesitando. Abri a conversa com Arthur, digitei uma resposta e apaguei. Repeti o processo três vezes até, finalmente, escrever:

"Benício tá diferente. A escola me chamou hoje. A gente precisa conversar. Sobre ele. Sobre nós."

E enviei.

A bolha com um único tique azul me encarava como um lembrete cruel: eu não era prioridade. Nem eu, nem nossos filhos.

Me encostei no travesseiro do meu filho e respirei fundo. Não ia chorar. Não mais. Já tinha feito isso vezes demais — e sozinha.

Tomei um banho demorado, tentando lavar junto com o suor da academia toda a frustração que insistia em grudar na pele. Vesti uma roupa leve e desci para almoçar alguma coisa.

O cheiro de arroz fresco me deu um pouco de apetite, então fui até a cozinha e montei um prato. Não iria deixar a empregada fazer isso por mim. Sentei sozinha à mesa. Silêncio de novo. Silêncio demais.

Foi quando o celular tocou.

Meu coração pulou no peito ao ver o nome dele na tela. Arthur.

— Oi. — atendi, tentando parecer mais neutra do que me sentia.

— O que aconteceu com o Benício? — a voz dele veio séria, preocupada. — Acabei de ver sua mensagem. Tô só esperando a vistoria no jatinho pra ir embora, não consegui responder antes.

Soltei um suspiro e apoiei o cotovelo na mesa, massageando a testa com os dedos.

— A diretora me chamou pra conversar hoje cedo. Ele tem reagido com agressividade na escola. Bateu em um coleguinha, empurrou outro... Disse que ninguém escuta ele.

Arthur ficou em silêncio do outro lado por alguns segundos.

— Ele falou algo sobre mim?

— Disse que você nunca tem tempo. E que promete coisas que não cumpre. Gael tentou defendê-lo, mas... Arthur, são quase seis anos. Eles não são mais bebês. Eles sentem.

— Eu sei. — ele respondeu, a voz mais baixa agora. — Eu sei, Jade. Eu tô tentando.

— Eu também tô. — falei com firmeza. — Mas às vezes parece que sou a única.

Outro silêncio.

— Eu vou chegar hoje. Assim que essa vistoria terminar, eu vou direto pro hangar. Só... segura as pontas mais um pouco.

Revirei os olhos mesmo que ele não visse.

— Já estou segurando, Arthur. Há muito tempo.

— Eu sei. — ele murmurou. — E eu te agradeço por isso.

Desliguei antes que minha voz tremesse. Terminei de comer com o gosto amargo de quem ama demais, mas começa a cansar de ser forte sozinha.

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Comments

Silvia Souza Rodrigues

Silvia Souza Rodrigues

Situação complicada para todos eles, mas sempre a mulher, a mãe fica sobrecarregada, por muitas vezes junto com.os filhos não ser a prioridade no relacionamento!!

2025-05-07

2

Kah

Kah

Seu filho é esperto demais, Jade! Que orgulho! Ele entende mais que seu esposo que a família é a prioridade.

2025-05-12

1

Phillip Shakespeare

Phillip Shakespeare

e só mandar todos pro RH problema resolvido

2025-05-12

3

Ver todos

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