O Cientista Cético e o Céu Aberto

Para o Dr. Alair Alves, astrofísico titular do Observatório Pico dos Dias, uma joia da ciência brasileira aninhada nos picos frios e de ar rarefeito da Serra da Mantiqueira, perto de Itajubá, a segunda-feira do dia 5 de maio de 2025 começou como qualquer outra: com a promessa de dados, a busca por padrões e a crença inabalável na ordem racional do universo. Superstição, religião, o "sobrenatural" – eram, para ele, apenas ruídos na equação da realidade, variáveis espúrias que a ciência, mais cedo ou mais tarde, eliminaria com a navalha afiada da lógica e da evidência empírica.

Ele estava em sua sala de controle, uma caverna de telas piscantes e o zumbido suave dos servidores, analisando os dados da noite anterior captados pelo telescópio principal – um gigante de 1.60m que era seu orgulho e sua principal ferramenta de trabalho. Buscava por assinaturas de exoplanetas, por anomalias em curvas de luz de estrelas distantes. Um trabalho meticuloso, paciente, que exigia um ceticismo quase patológico.

Foi quando o Silêncio caiu. Não o silêncio normal da montanha isolada, quebrado pelo vento ou pelo canto de um pássaro. Mas um silêncio absoluto, como se o mundo tivesse sido colocado no vácuo. As ventoinhas dos computadores pareceram parar. O próprio ar pareceu congelar. Durou um instante, dois. E então, o Zumbido.

Não era um som audível no sentido tradicional. Era uma pressão, uma vibração que ressoava em seus ossos, em seus dentes, no fundo de seu crânio. As telas dos monitores tremeluziram, exibindo padrões de estática por um segundo antes de voltarem ao normal. Dr. Alves sentiu uma náusea súbita, uma desorientação espacial. Agarrou-se à mesa, tentando focar. Algum tipo de interferência eletromagnética massiva? Uma erupção solar de proporções inéditas?

Tudo durou poucos minutos. E então, tão subitamente quanto começou, parou. O silêncio que se seguiu era diferente agora, carregado de uma tensão palpável. As luzes do observatório piscaram e se estabilizaram. Mas algo estava terrivelmente errado.

Dr. Alves tentou ligar para a equipe técnica no andar de baixo. O ramal chamou, chamou, e caiu na caixa postal. Estranho. Tentou o celular. Sem sinal. Mais estranho ainda, geralmente havia um sinal fraco ali. Levantou-se, sentindo as pernas um pouco bambas, e desceu as escadas metálicas em direção ao laboratório principal e aos dormitórios.

Encontrou os primeiros sinais da catástrofe. Roupas vazias sobre uma cadeira no laboratório onde a Dra. Isabel, sua colega sismóloga, deveria estar trabalhando. Na pequena copa, uma xícara de café pela metade sobre a mesa, o banquinho vazio. Dos doze membros da equipe que deveriam estar no observatório naquele dia – entre pesquisadores, técnicos e pessoal de apoio – apenas ele e mais dois técnicos de manutenção, visivelmente apavorados e confusos, foram encontrados. Os outros nove... simplesmente desapareceram. Deixaram para trás apenas suas roupas, seus sapatos, seus pertences pessoais, como se tivessem sido desintegrados ou teletransportados de dentro de suas vestes.

"Doutor! Que porra foi essa?!", gaguejou o mais novo dos técnicos, um rapaz chamado Lino, os olhos arregalados de terror. "Onde tá todo mundo?!"

Dr. Alves, apesar do choque e da própria desorientação, tentou manter a fachada de racionalidade. "Calma, Lino. Precisa haver uma explicação lógica. Algum tipo de... gás alucinógeno? Um surto psicótico coletivo? Algum fenômeno atmosférico raro e não catalogado?" Mas suas próprias palavras soavam vazias, patéticas diante da evidência da ausência.

Nos dias que se seguiram, o isolamento do observatório na montanha tornou-se uma prisão. As comunicações com o mundo exterior estavam completamente cortadas – rádio, telefone, internet, tudo mudo. As poucas informações que conseguiam captar em rádios de ondas curtas eram fragmentadas, caóticas, falando de desaparecimentos em massa em todo o Brasil, em todo o mundo. Acidentes. Pânico. Colapso.

Enquanto Lino e o outro técnico, Valdir, um homem mais velho e supersticioso que começou a rezar terços e a falar sobre o fim do mundo, lutavam para manter os geradores funcionando e racionar a pouca comida que tinham, Dr. Alves mergulhou em seu próprio mundo: o dos dados. Se a resposta não estava na fé ou no pânico, tinha que estar na ciência.

Passou dias e noites em claro na sala de controle, vasculhando os registros dos instrumentos do observatório. Analisou os dados dos sismógrafos, dos magnetômetros, dos sensores de radiação cósmica, dos radiotelescópios, buscando qualquer anomalia que tivesse ocorrido antes, durante ou depois do "Evento", como ele passou a chamá-lo. Revirou arquivos de anos, comparou padrões, rodou simulações.

Suas hipóteses iniciais eram todas baseadas em fenômenos naturais ou tecnológicos conhecidos, ainda que extremos. Uma inversão súbita dos polos magnéticos da Terra? Um pulso de raios gama de uma supernova próxima? Um experimento militar secreto com alguma arma de energia escalar que deu terrivelmente errado? Ou, a mais prosaica e talvez mais provável para uma mente como a dele: um evento de histeria em massa global, desencadeado por algum fator ambiental ou psicológico ainda desconhecido, onde as pessoas "desaparecidas" apenas fugiram ou se esconderam em surto. Mas as roupas vazias... como explicar as roupas vazias?

Conforme os dias se transformavam em semanas, e a comida e o combustível dos geradores começavam a diminuir perigosamente, Dr. Alves começou a encontrar padrões nos dados que não se encaixavam em nenhuma de suas teorias. Havia uma flutuação estranha e recorrente no espectro da radiação cósmica de fundo, uma espécie de "eco" ou "cicatriz" deixada pelo Zumbido. E os magnetômetros... eles tinham registrado uma distorção brutal e localizada no campo magnético da Terra durante o Evento, mas não era uma inversão polar. Era algo mais direcionado, como se uma "agulha" gigantesca e invisível tivesse perfurado a magnetosfera num ponto específico sobre o Atlântico Sul, e depois se retraído.

Mas a descoberta mais perturbadora veio dos dados do telescópio principal. Na noite do Evento, ele estava programado para uma longa exposição de um setor aparentemente vazio do céu profundo, buscando por galáxias anãs ultra-fracas. Quando Alves finalmente conseguiu processar aquelas imagens, após contornar as falhas de energia e os glitches nos sistemas, o que viu o deixou sem ar.

No centro do campo de visão, onde deveria haver apenas o negrume pontilhado por estrelas distantes, havia uma... distorção. Não era um objeto. Não era uma nebulosa. Era como se o próprio tecido do espaço-tempo estivesse dobrado, torcido, exibindo por trás uma "textura" que não pertencia ao nosso universo. Geometrias impossíveis, ângulos que desafiavam Euclides, cores que seus olhos não conseguiam processar direito, que pareciam mudar e vibrar na borda da percepção. E no centro dessa aberração espacial, havia algo que ele só podia descrever como um "rasgo" ou uma "ferida" no céu, um ponto de escuridão mais profunda que o próprio vácuo, de onde parecia emanar uma ausência de luz e calor.

Ele passou dias obcecado por aquela imagem, comparando-a com dados de outros observatórios (os poucos que ainda transmitiam sinais fracos e intermitentes antes do silêncio total da rede), tentando modelar o fenômeno em seus computadores. As equações não fechavam. A física conhecida não se aplicava.

Lino e Valdir, preocupados com o estado cada vez mais errático e obsessivo do doutor, tentaram convencê-lo a descer a montanha com eles, a tentar a sorte na cidade. Mas Alves mal os ouvia. Estava no limiar de algo, sentia isso. Algo terrível e grandioso.

Numa noite, enquanto Valdir roncava em seu beliche e Lino tentava consertar o rádio de ondas curtas com um olhar desesperançado, Dr. Alves apontou novamente o grande telescópio para as coordenadas do "Rasgo". A anomalia ainda estava lá, embora parecesse mais... estável? Ou talvez mais... atenta?

Ele acoplou o espectrógrafo ao telescópio, tentando analisar a composição da "luz" (ou ausência dela) que emanava da ferida cósmica. O que os gráficos mostraram não fazia sentido. Picos de energia em frequências impossíveis, absorção de luz em padrões que desafiavam as leis da termodinâmica. E, por um instante, enquanto olhava para os dados brutos fluindo na tela, teve a sensação avassaladora, irracional, mas inegável, de estar sendo observado.

Não por olhos, não por uma consciência no sentido humano. Mas por algo vasto, antigo, indiferente, que espreitava do outro lado daquele Rasgo na realidade. Uma presença cuja mera existência era uma negação de tudo que ele acreditava sobre o universo.

Foi então que a hipótese mais terrível começou a se formar em sua mente, não como uma teoria científica, mas como um sussurro gelado vindo do abismo. O Arrebatamento... não fora uma seleção divina. Não fora um evento de salvação. Fora uma... abertura. Uma intrusão. Ou talvez apenas o universo se reajustando após ser ferido por algo que passara por perto, como um arranhão na pele do cosmos. E as pessoas que sumiram... não foram "levadas para cima". Foram simplesmente... apagadas pela passagem dessa coisa? Ou sugadas para dentro da ferida? Ou, pior, o desaparecimento delas foi o que causou a ferida, a energia de bilhões de consciências sendo arrancada da realidade de uma só vez?

A sanidade de Alair Alves, construída sobre pilares de lógica e ceticismo, começou a desmoronar. As implicações eram grandes demais, cósmicas demais. A humanidade não era o centro da criação, nem mesmo uma nota de rodapé interessante. Era poeira. Poeira cósmica insignificante que podia ser varrida por um evento que nem sequer a notara direito.

Seu diário de pesquisa, antes preenchido com equações e observações metódicas, começou a se encher de rabiscos frenéticos, diagramas de geometrias impossíveis, frases soltas sobre "olhos no vazio", "o som da cor errada", "a textura da antimatéria". Ele parou de comer, de dormir. Passava os dias e as noites na sala de controle, olhando para as telas que agora lhe mostravam não a ordem do universo, mas seu caos fundamental e indiferente.

Lino e Valdir o encontraram assim numa manhã fria, alguns dias depois. Dr. Alair Alves estava sentado em sua cadeira, em frente ao monitor principal que exibia a imagem estática e granulada do Rasgo no céu. Seus olhos estavam abertos, fixos na tela, mas não viam mais nada. Um filete de baba escorria do canto de sua boca entreaberta. E ele ria. Uma risada baixa, constante, gutural, que não continha humor, apenas o eco quebrado de uma mente que tinha olhado por tempo demais para o abismo e descoberto que o abismo não só olhava de volta, mas também tinha um apetite insondável.

A ciência não tinha respostas. Só perguntas cada vez mais terríveis. E o céu, antes um mapa de certezas para Dr. Alves, agora era apenas um lembrete constante de sua própria e esmagadora insignificância, uma ferida aberta para o horror cósmico.

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