O cheiro do Porto de Santos à noite era uma mistura única no mundo: maresia rançosa, óleo diesel, peixe apodrecendo em algum canto esquecido, e aquela ferrugem onipresente que parecia impregnar o próprio ar úmido e salgado. Para Zeca, porém, aquele cheiro era o perfume do dinheiro fácil. Ou, pelo menos, do dinheiro arriscado, que era o único tipo que ele realmente conhecia.
Agachado nas sombras entre contêineres empilhados que formavam canyons metálicos sob a luz amarelada e escassa dos refletores do pátio, ele observou Baixinho, seu parceiro naquela empreitada, trabalhar na fechadura do depósito C-7 com a habilidade de um cirurgião. Baixinho era pequeno, nervoso, mas tinha dedos de ouro para cadeados e sistemas de segurança mequetrefes. Zeca era o músculo, o vigia, o plano B caso as coisas descambassem para a ignorância – o que, naquele ambiente, sempre era uma possibilidade.
O alvo era simples: um lote de placas de vídeo de última geração, recém-chegado da China, esperando a liberação da alfândega no C-7. Uma carga fácil de mover no mercado paralelo, valendo uma pequena fortuna que tiraria Zeca do vermelho por uns bons meses. Tinham a informação interna, o timing perfeito durante a troca de turno da segurança portuária, e a habilidade de Baixinho. Era pra ser mamão com açúcar.
"Quase lá, Zeca...", Baixinho sussurrou, a testa franzida de concentração, um grampo fino dançando em suas mãos ágeis dentro da fechadura. "Só mais um clique nesse pino filho da..."
Foi quando o mundo parou.
Primeiro, o Silêncio. Absoluto, irreal. O som constante do porto – guindastes distantes, o marulhar da água suja contra o cais, o zumbido dos transformadores, até o miado insistente de um gato em algum lugar – tudo se apagou instantaneamente. Um vácuo sonoro que fez os ouvidos de Zeca doerem. Durou um segundo, talvez dois.
E então veio o Zumbido. Baixo, penetrante, vindo de toda parte e de lugar nenhum, vibrando no metal dos contêineres, no concreto do chão, nos próprios ossos de Zeca. Uma sensação nauseante, desorientadora.
"Que porra é essa?", Baixinho murmurou, largando as ferramentas, os olhos arregalados na direção de Zeca.
Antes que Zeca pudesse responder, uma luz pálida e leitosa pareceu vazar do céu nublado, banhando o pátio numa claridade fantasmagórica que não gerava sombras. E então, aconteceu.
Baixinho, que estava ajoelhado em frente à porta do depósito, simplesmente... sumiu. Num piscar de olhos. Puff. Onde ele estava, agora havia apenas as ferramentas de arrombamento caídas no chão e suas roupas – a camiseta puída, a calça jeans surrada, os tênis velhos – formando uma pilha vazia e amarrotada, como se ele tivesse se dissolvido dentro delas.
Zeca ficou paralisado, a boca aberta, tentando processar o impossível. Olhou ao redor, em pânico. Viu um dos seguranças que fazia a ronda na guarita distante, perto do portão principal, também desaparecer. Apenas o boné e o cassetete caíram no chão da cabine vazia. Viu luzes piscando erraticamente nos navios atracados, ouviu um barulho alto de metal se chocando em algum lugar mais distante – talvez um guindaste operado por alguém que também sumira?
O Zumbido e a luz estranha duraram talvez um minuto, talvez cinco – a percepção de tempo de Zeca estava completamente distorcida pelo choque. E então, tão subitamente quanto começaram, cessaram. O silêncio voltou, mas agora era um silêncio diferente, pesado, carregado pela ausência e pelo inexplicável. As luzes normais dos refletores pareceram mais fracas, mais amareladas. E o cheiro de ozônio misturou-se ao odor habitual do porto.
Zeca encostou-se na parede fria de um contêiner, tentando controlar a respiração, as pernas bambas. Que merda tinha sido aquela? Um ataque terrorista com alguma arma nova? Alienígenas? O Arrebatamento que aqueles crentes malucos viviam pregando nas praças? Sua mente pragmática e cínica lutava para encontrar uma explicação, mas só encontrava o absurdo. Baixinho... sumiu. Dentro da própria roupa.
Sirenes começaram a soar ao longe, na direção da cidade. Muitas sirenes. Ambulâncias, polícia, bombeiros. O caos estava começando lá fora. E aqui dentro? Silêncio. Abandono.
Foi então que a mente de Zeca, moldada por anos de sobrevivência na marginalidade, começou a funcionar de novo, superando o choque inicial. Caos. Sirenes. Confusão generalizada. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Isso significava... oportunidade.
Olhou para a porta do depósito C-7, onde Baixinho quase terminara o serviço. Olhou para as roupas vazias de seu parceiro no chão. Sentiu uma ponta de algo que poderia ser luto, ou talvez apenas o desconforto pela perda de um cúmplice útil. Mas a ganância, o instinto de sobrevivência do ladrão, falou mais alto.
A segurança do porto estaria um caos, se é que ainda existia. A polícia da cidade estaria sobrecarregada com o que quer que tivesse acontecido lá fora. Aquele contêiner com as placas de vídeo... estava ali, dando sopa. Sozinho. Com Baixinho fora da jogada, a parte dele seria maior. Bem maior.
O medo ainda estava lá, um nó frio no estômago. O que quer que tivesse feito Baixinho desaparecer poderia voltar. Mas a visão daquela grana fácil, daquela oportunidade única no meio do apocalipse (ou seja lá o que fosse aquilo), era um imã poderoso demais. "Que se foda o Baixinho e as assombrações", ele murmurou para si mesmo, a voz rouca. "Negócio é garantir o meu."
Pegou as ferramentas que Baixinho deixara cair – as gazuas, a pequena chave de fenda. Anos observando o parceiro trabalhar lhe deram uma noção básica. E a fechadura já estava quase aberta. Com as mãos ainda um pouco trêmulas, mas com a determinação renovada pela cobiça, Zeca voltou a trabalhar na fechadura do C-7.
O silêncio do porto agora parecia conspirar a seu favor. Ouviu apenas o clique metálico de suas ferramentas na fechadura e o som distante e cada vez mais caótico da cidade. Depois de alguns minutos de tensão e suor frio, ouviu o estalo satisfatório do último pino cedendo. A fechadura estava aberta.
Com um esforço, girou a maçaneta pesada e puxou a porta corrediça do depósito. Rangeu alto no silêncio, fazendo Zeca olhar nervosamente ao redor. Ninguém. Apenas as sombras e os contêineres como testemunhas silenciosas.
Ligou a pequena lanterna de cabeça que sempre usava. O facho de luz varreu o interior do depósito. Era menor do que imaginava, e não estava abarrotado de caixas de eletrônicos como esperava. Havia apenas um único contêiner ali dentro. Um contêiner diferente dos normais do porto. Não era de metal corrugado, mas de um material liso, escuro, quase sem emendas, com estranhos símbolos geométricos gravados nas laterais, símbolos que não lembravam nenhuma escrita conhecida. E parecia estar... frio. Uma leve névoa se formava perto dele, mesmo dentro do depósito abafado.
Zeca franziu a testa. Que porra era aquela? Não era assim que descreveram a carga. Teria se enganado de depósito? Não, o C-7 estava marcado no mapa que o informante lhe dera. Aquele era o contêiner. Mas não continha placas de vídeo.
A porta do contêiner não tinha um cadeado normal, mas um painel eletrônico complexo ao lado, agora apagado e sem energia. No entanto, parecia ter sofrido algum dano – talvez durante o transporte, talvez durante o evento estranho de minutos atrás. Havia uma fenda na lateral perto da porta, e a própria porta parecia ligeiramente desalinhada, entreaberta por poucos centímetros.
Um cheiro estranho começou a vazar pela fresta. Aquele mesmo cheiro adocicado e metálico que sentira brevemente no ar quando o Zumbido começou, mas agora mais forte, misturado com algo mais... um odor de ozônio e de carne crua, um cheiro de predação.
A curiosidade e a sensação de que ali havia algo muito mais valioso (ou perigoso) do que placas de vídeo tomaram conta de Zeca. Usando uma pequena alavanca que trazia na mochila, forçou a fresta da porta do contêiner. O metal rangeu em protesto, depois cedeu um pouco mais, abrindo uma fenda maior.
Zeca apontou a lanterna para dentro. A luz foi absorvida pela escuridão quase total lá dentro. Não conseguia ver nada definido, apenas sombras e um brilho úmido em algumas superfícies. E o cheiro ficou mais forte, nauseante. Ouviu um som baixo vindo lá de dentro. Um som úmido, de algo se mexendo em líquido, ou talvez um som de respiração lenta e pesada, irregular.
Um arrepio percorreu a espinha de Zeca, um instinto primitivo gritando para ele sair dali correndo. Mas a ganância e a curiosidade o mantiveram ali. O que quer que estivesse lá dentro, parecia valioso o suficiente para ser transportado num contêiner especial como aquele. E agora, com o caos lá fora, era dele.
Forçou a porta mais um pouco, criando uma abertura grande o suficiente para espiar. Apontou a lanterna com mais firmeza. A luz varreu o interior escuro e frio. Não havia caixas, nem equipamentos. Havia... matéria orgânica? Algo que parecia uma massa escura e pulsante num canto, coberta por uma membrana translúcida que brilhava com um muco iridescente. Havia também o que pareciam ser restos de animais pequenos, parcialmente dissolvidos. E no centro, semi-submersa na matéria escura, estava a fonte do barulho: uma forma.
Não era humana. Não era animal conhecido. Era grande, encolhida numa posição quase fetal, mas mesmo assim ocupando boa parte do contêiner. Tinha uma pele que parecia couro esticado sobre ossos nodosos, de um tom cinza-esverdeado doentio. Tinha múltiplos membros articulados em ângulos errados, terminando em garras ou pinças quitinosas. E tinha uma cabeça... ou algo parecido com uma cabeça... desproporcionalmente grande, virada para o fundo do contêiner, mas que pareceu se mexer levemente quando a luz da lanterna a atingiu. Não tinha olhos visíveis daquele ângulo, mas Zeca teve a sensação terrível de estar sendo observado.
Aquilo não era uma carga. Era um espécime. Ou um prisioneiro. E estava vivo. E parecia... ferido? Ou apenas despertando? O dano na lateral do contêiner talvez tivesse afetado seu sistema de contenção.
Zeca recuou um passo, o coração martelando na garganta, o cheiro pútrido invadindo suas narinas. Esqueça as placas de vídeo. Esqueça o dinheiro. Aquilo era algo saído de um pesadelo de ficção científica ou de um filme de terror B. E estava ali, na frente dele.
Foi então que a criatura se moveu mais decididamente. A cabeça grande começou a girar lentamente em sua direção. Zeca não esperou para ver o rosto daquilo. O instinto de sobrevivência finalmente venceu a ganância. Deu meia volta e correu para fora do depósito C-7, esbarrando na porta, tropeçando nas próprias pernas.
Correu pelo pátio silencioso e sinistro, passando pelas pilhas de roupas vazias que agora pareciam ainda mais macabras, sem olhar para trás. Só parou quando alcançou o portão principal, encontrando-o estranhamente aberto e abandonado. O caos na cidade lá fora parecia ter chegado ali também, mas de uma forma mais silenciosa e final.
Encostado no muro do lado de fora do porto, ofegante, Zeca olhou para suas mãos. Estavam sujas de graxa e do pó da fechadura, mas também tremiam incontrolavelmente. Ele tinha escapado. Mas escapado do quê, exatamente? O que era aquela coisa no contêiner? Teria ela alguma coisa a ver com os desaparecimentos? Teria sido ela também... deixada para trás?
Uma coisa era certa: o roubo mais fácil de sua vida tinha se transformado no seu pior pesadelo. E ele tinha a terrível sensação de que, ao abrir aquela porta, tinha libertado ou pelo menos perturbado algo que deveria ter permanecido adormecido no escuro. O mundo tinha acabado de ficar muito mais perigoso, e não era só por causa das pessoas que sumiram. Era também por causa das coisas que ficaram.
Zeca correu. Correu como nunca tinha corrido na vida, impulsionado por um terror puro e primordial que fazia o medo da polícia ou de seguranças armados parecer uma preocupação trivial de um mundo que não existia mais. O ar salgado e carregado de poluição queimava seus pulmões, cada passo no asfalto rachado do pátio do porto era um martelar em sua cabeça, mas ele não parava. A imagem daquela... coisa no contêiner – a pele cinza-esverdeada, os membros multiarticulados, a cabeça virando lentamente em sua direção – estava gravada a fogo em sua mente.
Esqueça as placas de vídeo. Esqueça o dinheiro. Esqueça até mesmo o Baixinho e sua pilha de roupas vazias. A única coisa que importava agora era colocar a maior distância possível entre ele e o depósito C-7.
Alcançou o portão principal por onde entrara horas antes (ou seria uma vida inteira?), encontrando-o bizarramente escancarado e deserto. A guarita da segurança estava vazia, exceto pelo boné e pelo cassetete caídos no chão – testemunhas silenciosas do evento que tinha virado o mundo de cabeça para baixo enquanto ele e Baixinho tentavam praticar seu ofício secular de ladrões. O caos da cidade, as sirenes distantes, os gritos abafados que o vento trazia, pareciam um problema longínquo, quase abstrato, comparado ao horror concreto e pulsante que ele tinha acabado de despertar ali dentro.
Parou por um instante do lado de fora dos portões, apoiando as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego, o peito arfando dolorosamente. Olhou de volta para a imensidão silenciosa e escura do porto, para as fileiras de contêineres que se assemelhavam a túmulos metálicos sob a luz amarelada e fraca. O que ele faria? Simplesmente ia embora? Avisava alguém? Quem? E diria o quê? "Olha, seu guarda (se ainda existir algum), eu tava tentando roubar um contêiner ali e acabei soltando um monstro alienígena, tá ok?" Iriam prendê-lo ou interná-lo.
Não. A melhor opção era sumir. Desaparecer na confusão geral que certamente estava tomando conta de Santos, talvez tentar voltar para São Paulo se ainda houvesse como. Que a criatura ficasse ali, problema de quem encontrasse depois. Ele só queria salvar a própria pele.
Foi quando ouviu. Um som que fez seu sangue gelar novamente e seus pelos se arrepiarem. Um som vindo de dentro do porto, não muito longe de onde ele estava. Um CRASH ensurdecedor de metal se contorcendo, seguido por um estrondo de algo muito pesado caindo. Como se um contêiner tivesse sido... arremessado? Ou derrubado de uma pilha?
Zeca não precisou pensar muito para saber o que aquilo significava. A coisa estava fora. Fora do contêiner. E provavelmente não estava feliz por ter sido acordada. O instinto de sobrevivência gritou mais alto que qualquer pensamento racional. Ele não podia simplesmente sair pela avenida principal; talvez a criatura fosse rápida, talvez ela o tivesse "sentido" de alguma forma quando ele abriu a porta. Precisava de um caminho alternativo, cortar por dentro do próprio porto para sair por outro lado, mais longe do C-7. Um calafrio percorreu sua espinha ao pensar em voltar para aquele labirinto de metal, mas parecia a opção menos suicida.
Respirando fundo, ele deslizou de volta para dentro das sombras do porto, movendo-se agora não como um ladrão calculista, mas como uma presa apavorada. Seu conhecimento prévio da área, adquirido enquanto planejavam o roubo, era agora sua única vantagem. Sabia das vielas de serviço entre as pilhas de contêineres, das áreas de manutenção geralmente desertas, das cercas que talvez tivessem alguma falha longe dos portões principais.
Avançou agachado, o coração na boca, usando as sombras projetadas pelas pilhas de metal como cobertura. O silêncio agora era ainda mais ameaçador. Onde antes havia o zumbido de máquinas e a movimentação de trabalhadores, agora havia apenas o som do vento uivando entre as frestas dos contêineres e o barulho distante e caótico da cidade. E, ocasionalmente, outro som. Um arrastar pesado. Um clique metálico que não parecia de máquina. Vindo de algum lugar à sua esquerda? À sua direita? O som ecoava e ricocheteava no metal, tornando impossível localizar a origem.
A criatura estava caçando? Ou apenas explorando seu novo ambiente? Estaria atrás dele? Aquele cheiro adocicado e pútrido voltou a pairar no ar, mais forte agora. Zeca prendeu a respiração, encolhido atrás de um contêiner enferrujado que exibia o logo desbotado de uma empresa de navegação que já falira há anos. Espiou pela fresta. Nada. Apenas o corredor de concreto vazio à frente, banhado pela luz fantasmagórica.
Precisava chegar à cerca dos fundos, perto do canal. Sabia que havia uma parte ali que era mais baixa e geralmente menos vigiada. Continuou avançando, passo a passo, o suor escorrendo em seus olhos, a cada sombra longa parecendo um membro quitinoso pronto para agarrá-lo, a cada barulho do metal estalando com a mudança de temperatura soando como garras se arrastando.
Foi então que a viu de relance. Passando rapidamente entre duas pilhas altas de contêineres, a uns trinta metros à sua frente. Era só uma sombra, um vulto cinza-esverdeado movendo-se com uma velocidade e uma fluidez desconcertantes, quase como um líquido denso se esgueirando pelo chão. Era maior do que parecera dentro do contêiner. E parecia estar indo na mesma direção geral que ele. Coincidência? Ou estava sendo pastoreado?
O pânico ameaçou tomar conta novamente, mas Zeca o engoliu. Precisava ser mais rápido, mais esperto. Desviou por um caminho diferente, mais estreito, espremendo-se entre contêineres que cheiravam a produtos químicos e maresia. Ouviu outro estrondo metálico, desta vez mais perto, à sua direita. A coisa estava ali.
Chegou a uma área mais aberta, perto de um guindaste portuário desligado que parecia um inseto metálico gigante e morto contra o céu que clareava. A cerca dos fundos estava visível, a uns cinquenta metros. Mas entre ele e a cerca, havia apenas o chão de concreto aberto, com poucas sombras para se esconder.
E, parado bem no meio do caminho, como se o esperasse, estava a criatura.
Agora, sob a luz crescente do amanhecer, Zeca pôde vê-la melhor. E desejou não ter visto. Era uma abominação biomecânica, uma fusão grotesca de carne pálida e esverdeada, placas quitinosas como as de um inseto gigante, e membros que pareciam pistões hidráulicos enferrujados terminando em garras curvas e pinças serrilhadas. Não tinha olhos visíveis, mas múltiplos sensores ópticos vermelhos e pequenos pulsavam em sua cabeça bulbosa e assimétrica. Uma fileira de dentes finos e pontiagudos era visível numa boca que se abria e fechava lentamente, liberando aquele odor pútrido e um som baixo de chiado úmido. Era grande, talvez do tamanho de um carro pequeno, e se movia com uma combinação perturbadora de movimentos aracnídeos e mecânicos.
A criatura virou seus múltiplos sensores vermelhos na direção de Zeca. Ele estava exposto. Não havia para onde correr sem ser visto.
Num reflexo, Zeca agarrou a única coisa ao seu alcance: uma barra de ferro enferrujada que estava caída perto da base do guindaste. Empunhou-a como um porrete improvisado, o metal frio e áspero em suas mãos suadas. Sabia que era ridículo, inútil contra aquela coisa, mas era melhor do que nada.
A criatura emitiu um som mais alto agora, um clique rápido e agudo, como o de um relé defeituoso, e começou a se mover em sua direção, não rápido, mas com uma deliberação assustadora, as garras metálicas arranhando o concreto.
Zeca recuou, brandindo a barra de ferro. Precisava de uma distração, uma chance. Olhou ao redor. Os controles do guindaste estavam numa cabine elevada, provavelmente sem energia. Mas havia mangueiras de incêndio enroladas num suporte na parede de um armazém próximo.
Num movimento desesperado, correu até o suporte, ignorando a dor nos pulmões e o medo que lhe gelava o sangue. Conseguiu desenrolar a mangueira pesada e abrir a válvula com um esforço tremendo. Um jato forte de água pressurizada (e provavelmente suja do encanamento do porto) jorrou na direção da criatura, que parou, surpresa pelo ataque inesperado. O jato atingiu sua carapaça quitinosa com um baque surdo. A criatura emitiu um chiado agudo, quase um grito de irritação eletrônica, e recuou alguns passos, os sensores vermelhos piscando freneticamente.
Era a chance de Zeca. Largou a mangueira jorrando água para todo lado e correu. Correu como um condenado em direção à cerca dos fundos. Ouviu a criatura se recuperando do choque, o som de suas garras voltando a raspar no concreto atrás dele, mais rápido agora. Não olhou para trás. Focou apenas na cerca, na promessa de liberdade do outro lado.
Alcançou a cerca, uma grade de metal alta, mas com uma seção amassada e com arames soltos perto do chão – sua rota de fuga original. Jogou-se contra a abertura, sentindo o metal enferrujado rasgar sua jaqueta e arranhar suas costas.
Conseguiu passar, caindo do outro lado, numa área de mangue sujo e malcheiroso que beirava o canal.
Levantou-se, enlameado e ofegante, a tempo de ver a criatura parar diante da cerca. Ela não tentou atravessar. Apenas ficou ali, do outro lado da grade, os múltiplos olhos vermelhos fixos em Zeca, pulsando lentamente. Não havia raiva aparente, apenas uma observação fria, analítica. Como se o estivesse catalogando. Memorizando.
Zeca não esperou para ver o que aconteceria. Deu as costas para a criatura e para o porto amaldiçoado e começou a correr pela margem lamacenta do canal, afastando-se o mais rápido que suas pernas trêmulas permitiam, o som das sirenes da cidade parecendo agora um chamado distante para um mundo que talvez não fosse mais seguro, mas que, naquele momento, era infinitamente preferível ao horror que deixava para trás.
Alcançou uma rua movimentada (ou o que passava por movimentado naquele dia de caos), misturando-se aos poucos outros sobreviventes atordoados que vagavam por ali. Ninguém pareceu notar seu estado deplorável, sua lama, seus arranhões. Cada um estava perdido em seu próprio inferno particular pós-Arrebatamento. Zeca conseguiu pegar um ônibus circular que rodava aos trancos e barrancos, sentando-se no fundo, encolhido, tremendo.
Olhou pela janela para a cidade passando – carros batidos, lojas com vidros quebrados, pessoas chorando nas calçadas. O mundo tinha virado de cabeça para baixo. Mas para Zeca, o horror tinha um rosto mais específico, mais concreto. Um rosto biomecânico com olhos vermelhos múltiplos que ele sabia estar solto em algum lugar naquele porto abandonado. Ele sobrevivera. Mas a imagem da criatura, e o conhecimento de sua existência, seriam uma carga muito mais pesada e duradoura do que qualquer lote de placas de vídeo roubadas. Ele olhou instintivamente por sobre o ombro. Estava seguro ali? Ou a criatura, de alguma forma, ainda o observava? A última carga tinha sido aberta, e seu conteúdo estava agora à solta nesse novo mundo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 28
Comments