O Diário do Comissário

(Fragmentos de um diário de bordo pessoal, capa de couro sintético azul-marinho, recuperado parcialmente queimado e manchado entre os destroços do voo JJZ 3051, rota São Paulo-Manaus. Queda estimada em 5 de Maio de 2025, localidade remota no norte de Mato Grosso, próximo à divisa com o Amazonas. A caligrafia, inicialmente legível e profissional, torna-se progressivamente errática.)

Entrada: 05 de Maio (Estimado - Horas Após o Impacto)

Não sei que horas são. Não sei onde estou. O cheiro acre de querosene queimado e metal retorcido ainda está no ar, misturado ao odor úmido e pesado da mata fechada que nos engoliu. O silêncio é quase pior que os gritos que vieram antes. Antes... do Silêncio. E depois do Zumbido.

Meu nome é Ricardo (irônico, outro Ricardo). Ricardo Assis. Comissário de bordo. Ou era. Agora sou... um sobrevivente? Preso numa carcaça de avião quebrada como um brinquedo de criança no meio do inferno verde.

Lembro do Zumbido. Começou baixo, uma vibração nos ossos, na estrutura do avião. Achei que era turbulência, mas não havia nuvens daquele tipo. Aumentou, penetrante. Os passageiros ficaram agitados, olhando pelas janelas, perguntando. E então, o Silêncio. E o caos.

O comandante Alencar... sumiu. Simplesmente... sumiu. No meio de uma frase no interfone tentando acalmar os passageiros. Puff. A roupa dele ficou lá, o headset caiu no painel. O copiloto, Marcelo, um garoto, começou a gritar. Vi pelos olhos dele no reflexo do vidro da cabine (a porta estava entreaberta depois que fui levar um café pra eles). Pânico puro. E então... ele também sumiu.

E não foram só eles. No corredor da primeira classe, Dona Beatriz, a senhora simpática que pediu um cobertor extra... evaporou. Deixou o cobertor no assento e o livro que lia caiu no chão. Na econômica, um bebê chorando no colo da mãe... o choro parou de repente. A mãe olhou para os braços... vazios. O grito dela... meu Deus, o grito dela ainda ecoa na minha cabeça.

Aconteceu com dezenas de pessoas. Talvez um terço do avião. Simplesmente desapareceram. Homens, mulheres, crianças. Ricos, pobres. Brasileiros, gringos. Sumiram. Deixando para trás roupas, sapatos, celulares, livros... e nós. Os que ficaram. Olhando uns para os outros com um terror primordial nos olhos.

O avião, sem pilotos, começou a perder altitude. Os alarmes soando, a máscara de oxigênio caindo, os gritos voltando, agora de pânico real pela queda iminente. Lembro de me agarrar a uma poltrona, fechar os olhos, rezar uma oração que nem lembrava que sabia. O impacto. Metal se rasgando. Escuridão.

Acordei com dor. Muita dor. O braço esquerdo está quebrado, acho. Um corte feio na testa, o sangue seco grudado no cabelo. O cheiro de fumaça. Consegui me arrastar para fora da fuselagem partida. Chovia fino. A mata fechada por todos os lados. Os destroços espalhados numa clareira aberta pelo próprio impacto.

Quantos sobreviveram? Poucos. Contei uns doze, talvez quinze, incluindo eu. A maioria ferida, alguns em choque catatônico, outros gemendo baixo. Uma moça chamada Amanda, que estava sentada perto de mim, parece ser enfermeira, tentou ajudar os mais graves com um kit de primeiros socorros improvisado que achamos. Mas a maioria dos ferimentos é séria demais. E estamos no meio do nada.

O que aconteceu lá em cima? O Arrebatamento? Mas... por que eu fiquei? Por que a Dona Beatriz, tão gentil, sumiu, e o sujeito claramente bêbado e inconveniente da poltrona 12F ficou? Por que o bebê foi levado e a mãe deixada em desespero? Não faz sentido. Nenhuma lógica religiosa que eu conheça explica isso. Parece... aleatório. Cruelmente aleatório. Ou os critérios são outros. Algo que a gente não entende.

Preciso focar. Sobrevivência. Água. Abrigo. Sinalização. Mas o Zumbido... ainda parece ecoar fracamente na minha cabeça. E o Silêncio que veio antes... sinto que ele ainda está aqui, espreitando por trás do som dos insetos e dos gemidos dos feridos.

Entrada: 06 de Maio (Estimado)

A noite foi um inferno. Frio, úmido, os sons da selva amplificados pela escuridão e pelo medo. Os gemidos de dor de alguns sobreviventes foram diminuindo até cessarem por completo. Contamos hoje de manhã. Somos oito agora. Oito almas perdidas no verde. Amanda, a enfermeira, faz o que pode, mas sem recursos...

Conseguimos achar água num córrego não muito longe. Tem um gosto de terra, mas é potável, acho. Comida é o problema. Restos dos snacks do avião, algumas barras de cereal que um executivo tinha na mala. Não vai durar muito.

Ninguém fala sobre aquilo. Sobre os desaparecimentos. É como um acordo tácito de silêncio. Falar tornaria tudo real demais, insuportável demais. Mas está nos olhos de todos. A pergunta: por quê? Por que nós?

Tentei usar o rádio de emergência do avião. Destroçado. Os celulares, claro, sem sinal. Estamos por conta própria. A mata ao redor é densa, impenetrável. Sair daqui a pé parece suicídio. Temos que esperar por resgate. Mas quem sabe que caímos? E onde?

Notei algo estranho hoje. Os animais. Ou a falta deles. Não se ouve pássaros perto dos destroços. Nenhum macaco, nenhum sinal de caça maior. Apenas insetos. Muitos insetos zumbindo, e aquele silêncio pesado da mata. É como se a própria vida selvagem estivesse evitando este lugar, esta clareira da nossa desgraça. Ou como se algo maior tivesse afugentado tudo.

Aquele Zumbido... será que afetou só os humanos?

Entrada: 07 de Maio (?)

Perdi a noção dos dias. A dor no braço é constante. A febre começou. Amanda me deu os últimos analgésicos. Ela mesma está pálida, exausta. Dos oito, restam cinco. Um senhor idoso faleceu durante a noite. Uma moça com ferimentos internos graves delirou por horas sobre "anjos com asas de geometria errada" antes de silenciar. O executivo das barras de cereal simplesmente... levantou e caminhou para dentro da mata ontem à tarde, dizendo que ia "seguir a luz pálida". Não voltou. Ninguém teve forças ou coragem para ir atrás.

Estou começando a ver coisas? Ou a ouvir? À noite, quando o fogo que fazemos com os destroços baixa, juro que vejo luzes estranhas piscando entre as árvores, bem no alto. E aquele Zumbido... às vezes acho que ainda o ouço, muito baixo, vindo do céu, ou talvez de dentro da minha própria cabeça.

Os outros dois sobreviventes – um rapaz quieto que mal fala e uma mulher de meia idade em estado de choque que só chora baixinho – estão se definhando. Acho que não vão durar muito. Restaremos Amanda e eu. E depois?

Comecei a reler as anotações de voo que achei na minha bolsa. Rotas, procedimentos de segurança... tudo tão absurdamente normal, tão pertencente a um mundo que parece ter deixado de existir há cinco minutos e há cinco séculos ao mesmo tempo. Para onde foram? Para onde Alencar, Marcelo, Dona Beatriz, o bebê... para onde eles foram? Flutuaram para o céu? Foram desintegrados? Ou foram... coletados? Por quem? Por quê?

A aleatoriedade me apavora mais que qualquer explicação divina. Se não há critério, se não há julgamento, então o universo é só... isso? Um caos indiferente onde coisas assim acontecem? Onde bilhões desaparecem num piscar de olhos por um capricho cósmico ou pela passagem de alguma entidade colossal e incompreensível que nem nos notou direito? Essa ideia... essa ideia é pior que o inferno. É o Vazio.

Entrada: (Data ilegível - talvez 09 ou 10 de Maio?)

Amanda se foi. Febre alta, infecção. Tentei ajudar, mas não havia nada a fazer. Fiquei segurando a mão dela até o fim. Os outros dois... sumiram. Não sei se morreram e a mata os levou, ou se também caminharam para a "luz pálida". Estou sozinho.

Completamente sozinho nos destroços. A chuva voltou, fina e persistente. O cheiro de metal queimado e decomposição (minha? dos outros?) está mais forte. Minha febre aumenta. Os pensamentos estão confusos.

Mas agora eu vejo. Ou acho que vejo. Não são luzes aleatórias na mata. É... padrão. Uma geometria que não deveria existir na natureza. Flutuando entre as árvores mais altas. E o Zumbido está mais claro agora. Não é só na minha cabeça. Vem de lá. Vem deles.

Eles ainda estão aqui perto? Ou voltaram? Estão observando? Esperando que os últimos apodreçam? Ou talvez... talvez o Arrebatamento não tenha acabado? Talvez tenha sido só a primeira leva?

Escrevo isso com dificuldade. A mão treme. A luz da fogueira improvisada está fraca. Ouvi um barulho lá fora. Não de animal. Algo... arrastando-se. Pesado.

Eles não subiram. Ninguém subiu. O céu se abriu. O véu rasgou. E eles desceram. Ou melhor, olharam através. O Zumbido era o som Deles. O Arrebatamento foi só... a colheita? Ou a limpeza do palco antes do verdadeiro espetáculo começar?

A coisa que se arrasta está mais perto agora. Não tem forma definida. É só... uma ausência de luz, um contorno escuro contra a escuridão da noite, mas com aqueles pontos de luz geométrica pulsando dentro...

Não é Deus. Não são anjos. É o Vazio que ganhou fome. E nós... nós fomos deixados para trás como o resto. O prato principal.

Está perto da fuselagem. Consigo sentir o frio que emana... e o Zumbido... está ficando tão alto...

(O manuscrito termina aqui, num rabisco ilegível que desce pela página.)

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Comments

Nalva Brito

Nalva Brito

lindo estou amando o rui e esse anuncio

2025-05-19

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