Deixados Para Trás
Começou sem aviso. Numa segunda-feira modorrenta de maio, enquanto São Paulo engasgava em seu próprio tráfego matinal e o sol tentava timidamente romper a garoa fina, ou enquanto o calor já castigava a pele em Recife e a brisa do mar mal aliviava o mormaço em Salvador, ou enquanto a vastidão silenciosa do Pantanal apenas começava a despertar sob os primeiros raios de luz. Não houve trombetas celestiais, nem terremotos apocalípticos, nem anjos descendo em carros de fogo. Houve, primeiro, o Silêncio.
Não um silêncio comum, a mera ausência de ruído. Foi algo mais profundo, mais denso. Como se o próprio ar tivesse prendido a respiração. Por um instante infinitesimal, o barulho incessante do mundo – buzinas, motores, conversas, latidos, britadeiras, o zumbido onipresente da eletricidade – simplesmente parou. Um vácuo sonoro que fez milhões de tímpanos estalarem e corações tropeçarem numa batida esquecida. Durou menos que um piscar de olhos, mas foi o suficiente para que uma estranheza primordial se instalasse, um pressentimento de que a tapeçaria da realidade estava prestes a ser puxada com violência.
E então, no lugar do silêncio, veio o Som.
Não era música, nem palavra. Era um Zumbido. Baixo no início, quase subliminar, uma vibração que parecia vir não do céu ou da terra, mas de dentro dos próprios ossos, da estrutura molecular das coisas. Cresceu rapidamente em intensidade, não em volume ensurdecedor, mas em presença penetrante. Um zumbido polifônico, com harmônicos estranhos que arranhavam a borda da percepção, ressoando numa frequência que causava náusea e uma desorientação sutil, como se o eixo do mundo tivesse sido ligeiramente inclinado.
Na cozinha de um apartamento na Aclimação, em São Paulo, Dona Lourdes, uma senhora católica fervorosa de seus setenta anos, mexia o café no coador de pano, o cheiro familiar subindo no ar parado. Seu neto adolescente, Felipe, estava sentado à mesa, de fones de ouvido, o rosto iluminado pela tela do celular, alheio a tudo. O Zumbido começou. Dona Lourdes sentiu primeiro nos dentes, uma vibração incômoda. Olhou para a janela, confusa. Felipe tirou os fones. "Vó, que barulho esquisito é esse?" Antes que ela pudesse responder, a xícara de ágata que estava sobre a mesa, ao lado de Felipe, simplesmente tombou, como se a mão invisível que a segurava tivesse desaparecido. E onde Felipe estava sentado... agora havia apenas a cadeira vazia, os fones de ouvido caídos no chão, ainda tocando um funk proibidão numa estática crescente, e um leve cheiro de ozônio no ar. Dona Lourdes levou as mãos trêmulas à boca, os olhos arregalados para o lugar vazio do neto que, segundos antes, estava ali.
Numa pequena igreja Assembleia de Deus em Teófilo Otoni, Minas Gerais, o Pastor Elias, um homem de voz trovejante e fé inabalável, estava no púlpito, em pleno fervor de seu sermão sobre os sinais dos tempos e a iminência do Arrebatamento. Seus olhos varriam a congregação – irmãos e irmãs de olhos fechados, mãos erguidas, alguns chorando em contrição ou êxtase. O Zumbido começou, abafando por um instante a voz do pastor e os "aleluias" da igreja. Uma luz estranha, pálida e sem fonte definida, pareceu filtrar-se pelos vitrais coloridos, banhando a nave num brilho antinatural. O pastor sentiu um arrepio, uma expectativa gloriosa. Seria agora? O momento esperado? Ele abriu os braços, pronto para ser elevado. Mas nada aconteceu com ele. Em vez disso, viu, horrorizado, a irmã Clarice na primeira fila, conhecida por sua vida de fofocas e julgamentos, simplesmente desaparecer, deixando apenas seu hinário aberto sobre o banco de madeira. Viu o jovem Mateus, que ele repreendera na semana anterior por beber escondido, sumir no meio do corredor. Viu talvez um terço de sua congregação evaporar instantaneamente, deixando para trás apenas roupas vazias, bíblias caídas e um silêncio atônito quebrado apenas pelo choro confuso de algumas crianças que permaneceram nos bancos, olhando para os lugares vazios onde seus pais estavam segundos antes. O Pastor Elias ficou ali, no púlpito, os braços ainda abertos para um céu que não o quis, o rosto uma máscara de choque e incompreensão teológica.
Na praia de Iracema, em Fortaleza, um grupo de jovens surfistas aproveitava as primeiras ondas da manhã. O sol nascia no horizonte, pintando o mar de tons dourados. O Zumbido chegou junto com uma brisa estranha, que não vinha do mar, mas parecia soprar de dentro da própria areia. Um dos surfistas, o mais experiente, chamado Davi, estava remando para pegar uma onda promissora. No instante seguinte, sua prancha estava vazia, flutuando à deriva, e Davi desaparecera sem deixar nem mesmo um splash. Os amigos na areia gritaram, apontaram, correram para a água, pensando que ele tinha caído, se afogado. Mas então, a garota que vendia coco na barraca, que sempre sorria para eles, também sumiu, deixando apenas o facão cair na areia. E um casal de turistas idosos que caminhava de mãos dadas no calçadão simplesmente deixou de existir, suas sandálias permanecendo sobre as pedras portuguesas como uma instalação de arte macabra. O pânico começou a se espalhar pela orla, gritos se misturando ao barulho das ondas, enquanto pessoas desapareciam aleatoriamente, no meio de uma frase, no meio de um passo.
Num barco de pesca solitário, subindo um afluente escuro do Rio Negro, no Amazonas, Seu Raimundo, um ribeirinho de pele curtida pelo sol e mãos grossas de tanto puxar rede, sentiu o Zumbido ressoar na madeira velha do barco. Olhou para o céu, esperando uma tempestade súbita, comum naquela região. Mas o céu estava limpo, apenas o calor úmido começando a apertar. Então, olhou para a água. A superfície escura do rio pareceu... vibrar. E os botos cor-de-rosa, que às vezes acompanhavam seu barco, emergiram em vários pontos ao mesmo tempo, não com a curiosidade brincalhona de sempre, mas com uma agitação quase desesperada, olhando para as profundezas antes de mergulharem abruptamente e sumirem. E no mesmo instante, a rede de pesca que ele deixara lançada na água ficou subitamente leve. Puxou-a rapidamente. Estava vazia, mas não rasgada. Os peixes que deveriam estar ali... tinham desaparecido. Sentiu um medo antigo, um respeito pelas lendas do fundo do rio, tomar conta de si. Alguma coisa muito grande e muito errada estava acontecendo.
O caos se instalou nas cidades. Carros sem motoristas colidiam em cruzamentos movimentados. Um avião comercial sobrevoando Congonhas perdeu seus pilotos e começou a cair em espiral sobre a Zona Sul de São Paulo, o som de suas turbinas um grito de morte rasgando o Zumbido persistente. Trens do metrô pararam nos túneis escuros quando seus condutores sumiram. Cirurgias foram interrompidas com pacientes abertos sobre a mesa. Bebês desapareceram de berços, deixando pais em desespero absoluto.
E a seleção... parecia não seguir lógica alguma. Homens e mulheres de fé profunda eram deixados para trás, olhando para os céus com os olhos cheios de lágrimas e dúvidas. Criminosos notórios desapareciam de suas celas ou no meio de assaltos. Crianças inocentes sumiam, enquanto outras, igualmente inocentes, permaneciam. Políticos corruptos eram levados, enquanto outros, talvez tão corruptos quanto, continuavam em seus gabinetes. Ateus convictos sumiam, beatas fervorosas ficavam. Parecia aleatório. Impessoal. Como se uma força descomunal e indiferente tivesse passado uma rede sobre o planeta, recolhendo uma porcentagem da população baseada em critérios incompreensíveis, talvez inexistentes para a mente humana. Não parecia um Arrebatamento divino e seletivo; parecia mais uma coleta cósmica, uma dizimação sem julgamento moral aparente.
O evento todo durou talvez cinco minutos. Cinco minutos de Zumbido penetrante, de luz pálida e sem fonte, de desaparecimentos instantâneos e do caos resultante. E então, tão subitamente quanto começou, parou.
O Zumbido cessou. A luz estranha se dissipou. O silêncio voltou, mas agora era diferente. Não era o silêncio primordial de antes, mas um silêncio pesado, carregado de ausência, de choque, de fumaça de pneus queimados e do choro distante dos que ficaram.
Dona Lourdes, na sua cozinha na Aclimação, olhava para a cadeira vazia do neto, o cheiro de ozônio ainda no ar, as lágrimas escorrendo silenciosamente pelo rosto enrugado. O Pastor Elias, na igreja em Teófilo Otoni, estava de joelhos no púlpito, a Bíblia aberta sobre o Gênesis, incapaz de orar, incapaz de entender, cercado pelos soluços dos fiéis que, como ele, não haviam sido escolhidos. Os surfistas em Fortaleza vagavam pela areia, olhando para o mar como se esperassem que Davi emergisse a qualquer momento, enquanto a prancha vazia boiava zombeteiramente nas ondas. Seu Raimundo, no rio Negro, recolhia sua rede vazia, os olhos fixos na selva silenciosa que parecia ter prendido a respiração junto com ele.
O mundo tinha mudado para sempre. O céu estava igual, as árvores estavam nos mesmos lugares, os prédios continuavam de pé (exceto onde o avião caíra). Mas a humanidade estava quebrada, reduzida, e os que ficaram foram deixados para trás numa Terra assombrada pela ausência e pela pergunta aterradora que pairava no ar mais denso:
Por que nós ficamos?
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Atualizado até capítulo 28
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