A cerimônia terminou, mas ninguém parecia disposto a ser o primeiro a sair. Elisa permaneceu parada ao lado do caixão, observando os grupos se formarem em sussurros contidos, como se tramas antigas ainda estivessem sendo tecidas ali, entre olhares furtivos e palavras não ditas.
Gabriel cruzou a sala devagar, aproximando-se sem pressa, como um predador que estuda sua presa.
Cada passo dele reverberava dentro dela — não de medo, mas de um reconhecimento inquietante.
Quando finalmente ficou diante dela, por um momento não disseram nada.
O mundo pareceu encolher até caber apenas entre os dois.
Os olhos dele — castanhos escuros, intensos, com aquelas marcas de cansaço que ele não tinha na juventude — a prenderam como algemas invisíveis.
Elisa tentou desviar, tentava manter a pose fria, mas falhou miseravelmente.
— Sinto muito pela sua perda — disse ele, a voz grave, rouca, como se cada palavra tivesse um peso.
— Obrigada — respondeu ela, seca, sem conseguir esconder o tremor na voz.
A proximidade era insuportável. A raiva, a mágoa e a saudade, todas aquelas emoções conflitantes, borbulhavam sob sua pele como um vulcão prestes a explodir.
Ela queria gritar, perguntar como ele tivera a audácia de olhar para ela daquele jeito, como se ainda houvesse algo entre eles. Como se o tempo não tivesse cravado espinhos em cada lembrança que partilhavam.
Mas antes que pudesse encontrar palavras para o caos que sentia, Gabriel falou novamente.
— Vila Sereno nunca esquece, Elisa — murmurou, com um meio sorriso que não chegava aos olhos.
E então ele se virou, caminhando para longe, deixando-a ali, mais uma vez, sozinha com seus fantasmas.
Mas algo dentro dela já sabia:
Gabriel Duarte era uma ferida que nunca cicatrizara.
E agora, debaixo da chuva e das memórias, começava a sangrar outra vez.
A Casa da Colina
A noite caiu pesada sobre Vila Sereno quando Elisa decidiu finalmente voltar à velha casa da colina — seu verdadeiro lar, mesmo que o tempo e a distância tivessem tentado apagá-lo de sua memória.
Subiu pela estrada íngreme em silêncio, sentindo o vento frio chicotear seu rosto, como se a própria cidade tentasse convencê-la a desistir.
Mas ela não iria. Não dessa vez.
Quando atravessou o portão enferrujado, o rangido familiar cortou o silêncio como uma lâmina. A casa Moretti estava lá, imóvel e sombria, uma testemunha silenciosa de tantas histórias enterradas.
As janelas estavam fechadas, e apenas uma lâmpada da varanda tremeluzia, lançando sombras estranhas pelas paredes rachadas.
Empurrou a porta principal, que cedeu com um estalo assustador.
O cheiro de madeira antiga e flores secas tomou suas narinas. Elisa percorreu o corredor com passos lentos, os olhos capturando detalhes que pareciam intocados — a poltrona favorita de Helena, o quadro torto na parede, a escadaria que levava aos quartos.
Tudo parecia congelado no tempo.
Como se a casa tivesse segurado a respiração, esperando por ela.
Subiu as escadas, o som de seus próprios passos ecoando pela casa vazia.
Cada degrau parecia uma memória se desdobrando: risadas infantis, choros abafados, discussões à meia-noite...
No final do corredor, parou diante da porta do antigo quarto da avó.
A maçaneta estava fria sob sua mão. Girou-a devagar e entrou.
A cama estava arrumada, como se Helena pudesse voltar a qualquer momento. Sobre a cômoda, um pequeno relicário dourado chamava atenção. Elisa se aproximou, os dedos trêmulos tocando a superfície envelhecida. Dentro, uma fotografia antiga: ela mesma, ainda criança, abraçada a Helena e... Gabriel.
O coração de Elisa vacilou.
O passado estava mais vivo do que nunca.
E, no fundo, ela sentiu: a casa da colina guardava segredos que Helena levara consigo — mas não para sempre.
Uma corrente de ar frio passou por ela, fazendo a porta se fechar com um estrondo.
Elisa virou-se assustada, o relicário caindo de suas mãos e se espatifando no chão.
Ela não estava sozinha naquela casa.
E, de algum modo, sempre soubera disso.
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Atualizado até capítulo 54
Comments
Tóc tém^^~
Adoro como essa história nos faz sentir várias emoções ao mesmo tempo.
2025-05-06
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