O jardim de Afrodite florescia, como sempre, mesmo sem oferendas. Apesar do abandono visível do templo, ele se recusava a definhar. Nenhuma mão humana os regava há muito, e ainda assim, o verde se derramava em vida pelas pedras rachadas, como se cada folha, cada flor, bebesse diretamente da própria Deusa.
Rosais antigos, de um vermelho profundo como vinho, enroscavam-se nas colunas tombadas. Lírios dourados, desconhecidos pelos botânicos modernos, abriam suas pétalas sob o céu nublado, exalando um perfume adocicado e denso, capaz de fazer o coração estremecer por razões que a razão não alcançava.
Entre as ervas altas, pequenas flores azul-índigo brotavam aos montes, espalhando um tapete etéreo que parecia cintilar ao toque do vento. O som era quase sempre o mesmo: o farfalhar das folhas e um sussurro muito baixo, como se o próprio jardim respirasse, sonhando os antigos amores esquecidos.
Ao centro, onde a fonte de mármore há muito deixara de jorrar água, uma nova nascente brotara, cristalina e tímida, alimentada não por chuva, mas, talvez, pelas lágrimas invisíveis da própria Deusa. E em torno dela, a cada estação, surgiam flores jamais vistas antes, criações espontâneas do desejo de Afrodite por beleza, renovação e eternidade.
Era um jardim sem jardineiros, sem cercas, sem dono. E ainda assim, era pulsante, fiel apenas ao toque invisível e eterno de sua Senhora. Afrodite caminhava entre as rosas que se abriam ao seu toque, mas hoje, não as notava. Os aromas doces a enjoavam. O som dos pássaros parecia artificial. A brisa do entardecer roçava sua pele com gentileza, mas seu corpo estava quente demais. Quente de lembrança. De desejo. De raiva.
Afrodite – Ares. O nome sussurrado, queimava como vinho fermentado há séculos. Forte demais para ser ignorado, doce demais para ser renegado. Ela afundou os pés na terra úmida. Precisava sentir algo real. – Por que agora? Por que depois de tanto tempo? Eu escolhi a paz… eu escolhi… Hefesto.
A palavra “paz” soava distante. Ela se perguntava quando, exatamente, aprendera a chamar de paz aquilo que era apenas silêncio. Respeito, sim. Segurança, também. Mas amor? E desejo? Seu corpo dava a resposta que ela odiava. A resposta que nunca a traía. A pele ardia. Os sentidos pulavam. E o coração da Deusa do Amor, ironicamente, se contorcia entre o dever e a vontade.
Ela não era mais jovem. Sabia dos danos. Sabia dos custos. Já vira muitos caírem por paixões que ardiam rápido demais. Ela própria queimara... e queimara outros. Mas o desejo não envelhecia com o tempo. Apenas aprendia a se disfarçar melhor.
Fechou os olhos e o viu. Ares. O riso rouco. As mãos que sabiam dominar e ceder. O olhar que desafiava o mundo, mas se desarmava ao tocá-la. A guerra disfarçada de paixão. A brutalidade vestida de prazer. Ele era um erro. Um erro que ela conhecia de cor.
E ainda assim… era nele que o sangue fervia. Era ele que os Deuses evitavam nomear quando ela se calava. Era ele que Hefesto fingia não ver quando moldava estátuas em sua homenagem... estátuas frias demais, belas demais.
Afrodite afundou os dedos no solo como quem procura um chão mais fundo. E murmurou ao céu rosado. – Moiras… o que vocês estão fazendo comigo?
Mas as Moiras não respondiam. Nem o tear sussurrava. Nem os fios se moviam. Como se o Destino quisesse assistir, em silêncio, ao amor escolher por si só. Ela se ergueu. E algo em seu olhar mudou. Ela não era só a Deusa do Amor. Ela era também a Deusa do Desejo. E o desejo, por mais que se esconda, sempre encontra um caminho.
***
Enquanto isso, no coração da montanha, Hefesto batia o martelo com precisão. Suas forjas nunca adormeceram. Enterradas sob as entranhas da terra, em uma caverna profunda onde o céu jamais tocava, elas pulsavam com uma vida própria, alimentadas pelo sopro antigo do Deus ferreiro.
O calor era a primeira coisa que se sentia ao se aproximar: um calor espesso, denso como óleo quente, que invadia os pulmões e fazia a pele arder, mesmo sem haver chamas visíveis. O ar vibrava, distorcendo as bordas das pedras ao redor, como se o mundo ali estivesse sempre à beira de derreter. As paredes de basalto reluziam com tons de cobre e ouro, refletindo a luz intermitente dos caldeirões incandescentes espalhados pelo vasto salão. De tempos em tempos, uma labareda azulada irrompia das fendas no chão, iluminando de forma quase sobrenatural as estruturas de ferro, as correntes penduradas, as ferramentas esquecidas, todas elas ainda quentes, como se usadas há poucos instantes.
O som era uma música primitiva: o ressoar de marretas invisíveis; o estalo seco do metal se moldando; o rosnar das brasas famintas. Era um compasso constante, eterno, como o coração de uma criatura que nunca parava de criar. O cheiro era forte, mineral, quase metálico, misturado ao aroma terroso da caverna e ao leve traço de enxofre, vindo de abismos mais profundos. Cada inspiração trazia o gosto do ferro bruto, da pedra molhada de suor divino.
Nada ali era calmo. Nada era suave. As forjas de Hefesto eram o berço do movimento, da invenção, do poder. Cada golpe no metal era uma meditação. O ferro obedecia. O fogo dançava. O mundo fazia sentido. Era um lugar onde a matéria gritava antes de nascer, e onde o toque de um Deus ainda moldava o impossível.
Mas hoje... algo falhava. A brisa que o tocou não era feita de vento. Era memória. Afrodite. Ele sentiu o nome sem dizê-lo de novo, como um prego no fundo do peito, daqueles que ele próprio teria forjado, afiados, exatos, irremovíveis. O ferro trincado sobre a bigorna parecia uma resposta. Ou um aviso.
Subiu até a sacada onde raramente ia. A varanda de seu templo era esculpida direto na rocha, com correntes de bronze sustentando sinos que não soavam havia eras. Ele não gostava do céu. Nunca gostou. Preferia a terra, a matéria, o que podia tocar, moldar, consertar. O céu lembrava-lhe o que não podia controlar. O que fugia. O que voava.
Lá longe, muito além das nuvens, estava o Olimpo. E nele… ela. Afrodite, a deusa nascida da espuma. A inatingível. A amante da beleza e da liberdade. A mulher que escolhera a estabilidade de um lar frio, mas firme, ao invés da chama que a consumia. E agora, ele sentia: a chama tinha voltado.
“Ares.” Ares sempre esteve por perto. Como um eco de guerra, uma sombra armada de desejo. Hefesto suportou muitas guerras. Mas não suportava bem as sombras. A dúvida voltou, não como uma flecha, mas como ferrugem. Silenciosa. Persistente. Impossível de arrancar sem arrancar também o metal.
Hefesto – Eu a amei com o que sei fazer. Disse, para o silêncio. – Com o que dura. Com o que sustenta. Mas será que isso era o bastante?
Na forja, ele era rei. Criava escudos para heróis, armaduras para deuses, joias que cantavam quando tocadas. Mas no amor… era apenas um homem imperfeito, tentando conter um oceano com as mãos.
Hefesto abaixou os olhos. Sentiu a rocha sob seus pés como se fosse pele. A terra o sustentava. Sempre sustentou. Mas até ela estremecia agora. Ele não chorou. Deuses antigos não choram. Eles continuam forjando.
Era apenas um lampejo de dúvida, tão pequeno quanto um cisco no olho. Mas que, em corações antigos, podia se tornar uma fenda. Ele não sabia ainda, mas sentia. Os ventos haviam mudado. E os Deuses não estavam mais no controle.
***
O campo de treinamento de Ares se estendia como uma ferida aberta na pele do mundo.
Nenhum jardim, nenhum rio, nenhuma sombra de árvore suavizava a vastidão brutal daquele lugar, apenas a terra vermelha, marcada por cicatrizes de batalhas eternas, onde o próprio chão parecia pulsar sob o peso de passos antigos.
O ar era carregado, denso com o cheiro cru de ferro oxidado, um perfume áspero de sangue seco que nunca abandonava o vento. Cada lufada trazia também o odor amargo do suor, da terra revolvida e do couro gasto. Era como respirar dentro do próprio peito de um exército.
Ao longe, erguiam-se colinas de pedra lascada e escarpas afiadas como lâminas. Em cima delas, lanças quebradas cravavam-se no solo como árvores retorcidas, e escudos amassados brilhavam sob o sol cruel, restos silenciosos de treinos que jamais terminavam.
O som era uma presença constante: o choque metálico de armas cruzando no vazio; o grito rouco de ordens invisíveis; o troar abafado de passos em marcha, como se um exército fantasma nunca parasse de atravessar o campo. O calor ali era um calor de guerra: não aquele que consola, mas o que fere, seco, cortante, arrancando o suor da pele e o transformando em sal no rosto dos que ousassem atravessá-lo.
Às vezes, parecia que o próprio chão estremecia, como se ruminasse velhos combates sob sua superfície. E, no centro, como o coração brutal de tudo aquilo, erguiam-se as estátuas colossais de Ares, não em mármore puro, mas forjadas em ferro negro, respingadas de vermelho escuro. Seus olhos vazios pareciam seguir cada movimento, julgando a coragem ou a covardia dos que ousassem treinar sob sua vigilância. Ali, o espírito da guerra nunca dormia. Ali, a fúria era a língua nativa. E Ares reinava absoluto, invisível mas sempre presente, como uma lâmina encostada na garganta do mundo.
Naquela tarde o campo de treinamento estava vazio, exceto pelo eco dos passos firmes do Deus. A terra, marcada por batalhas antigas, exalava o cheiro áspero de ferro e pó queimado. O calor ondulava no ar parado, fazendo tudo vibrar como um coração à beira do descontrole. Ares girava uma lança entre os dedos, o metal zunindo suavemente, mas sua mente estava longe dali, perdida em lembranças que teimavam em ressurgir como brasas incandescentes.
Sonhos o haviam trazido de volta ao Olimpo. Pesadelos doces. Lembranças antigas. Perfume de rosas sobre o sangue. Ares não entendia o que significavam aqueles sonhos. Nem porque o levaram de volta aonde jurara não retornar.
Mas ali, entre o cheiro de ferro, suor e sangue, brotou o perfume... Aquele perfume inconfundível dela, doce, avassalador, impossível de ignorar, como uma flor nascendo em meio ao caos. Seus sonhos não foram capazes de reproduzi-lo. Ele sabia que era ela, antes mesmo de vê-la. E ali, no coração da guerra, o amor proibido deles pulsou mais vivo do que nunca, feito uma chama que nunca se apagou, apenas adormeceu sob as cinzas.
Afrodite vestia-se com uma simplicidade incomum: túnica dourada moldando seu corpo como um sopro, cabelos soltos como ondas de ouro, sem joias que cintilassem. E mesmo assim, o ar ao redor dela mudou. O tempo prendeu a respiração. Até o vento hesitou, como se os próprios Deuses temessem quebrar aquele momento.
“Por todos os Deuses...”. Ares não se moveu. Nem ela. Ficaram ali, a poucos passos de distância. O silêncio entre eles era denso, quase palpável, feito névoa espessa. E então, os olhos se encontraram, e foi como se o passado inteiro despertasse em um único olhar, explodindo em tudo o que fora reprimido. Afrodite apertou os punhos, como se pudesse conter a tempestade que borbulhava dentro de si.
Afrodite – Ares... Sua voz saiu embargada.
Ares – Não era pra te ver. Não hoje. A voz baixa, rouca.
Afrodite sussurrou. – Mas viu.
Ele deu um passo à frente. A terra tremeu sob seu peso. Ela não recuou. O coração dela batia como um tambor de guerra. O dele, também. Mas nenhum dos dois cedeu.
Afrodite – Não podemos... Desviou o olhar, a voz saindo trêmula.
Ares – Eu não disse nada. Seu tom era amargo, tenso.
Afrodite murmurou em um sopro. – Mas está pensando. Eu sei. Eles ficaram em silêncio, por um momento quase insuportável. – E eu também.
O silêncio voltou a engolir tudo ao redor, mas agora era diferente, era eletrificado, denso como o calor antes de uma tempestade. Eles se olharam outra vez. Desta vez, havia ternura inesperada nos olhos de Ares, um pedido mudo, uma cicatriz aberta. E havia entrega no olhar de Afrodite, um segredo antigo, ainda vivo.
Mas os corpos não se tocaram. Ela deu um passo para o lado, lenta, arrastando consigo a fragrância que era só dela: rosas frescas e maresia. Contornou-o, sem coragem de olhar para trás, e seguiu seu caminho entre a névoa quente do campo. O cheiro dela permaneceu. O fogo dele também.
Ares fechou os olhos, o peso da lança descendo até tocar o chão. Como um lamento para si mesmo, Ares murmurou. – Isso vai nos destruir... como da última vez. Como sempre.
***
No tear do destino, o fio de Ares brilhava em vermelho pulsante.
Cloto sorriu, enrolando a mecha em seu dedo. – O guerreiro teme aquilo que não pode subjugar.
Láquesis inclinou-se sobre os fios. – Mas o passo já foi dado. E um só basta... para incendiar séculos.
Átropos ergueu a tesoura. – Ainda não cortamos. Mas quando cortarmos, que até os Deuses estejam prontos para arder com eles.
O som do metal ecoou no vazio. Por ora, o fio permanece inteiro. Vibrante. Tenso. À beira de se romper... ou de se entrelaçar para sempre.
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Atualizado até capítulo 24
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