CAPÍTULO III – OS FIOS PUXADOS PELAS MOIRAS

O Templo de Afrodite que outrora se erguia sobre a acrópole como uma joia viva, estava há séculos adormecido sob oferendas murchas, esquecido, apagado dos olhares e pensamentos dos mortais.

Em sua era de esplendor, o mármore branco parecia beber a luz dourada do sol. Colunas robustas, mas graciosamente talhadas, abraçavam o santuário com uma elegância quase etérea, como se a própria Deusa tivesse soprado sua alma sobre a pedra. O ar, impregnado de mirra e flores silvestres, tremulava em ondas quentes, embriagando os sentidos antes mesmo de adentrar o recinto.

No centro, uma estátua colossal de Afrodite dominava o espaço, esculpida com tamanha delicadeza que a carne parecia pulsar sob o frio mármore. Seus olhos de pedra, vívidos e magnéticos, pareciam carregar promessas e segredos milenares. Ao redor da Deusa, sacerdotisas deslizavam em trajes diáfanos, entrelaçando orações e cânticos em uma dança eterna de devoção e desejo.

O templo não era apenas um lugar de culto: era um mundo à parte, onde o amor, o prazer e a beleza reinavam soberanos, dissolvendo as fronteiras entre o sagrado e o mundano. Lá, todo toque era prece, todo olhar era oferenda, e cada respiração era uma celebração da própria existência.

Nos dias atuais, o que restou do templo de Afrodite era apenas um sussurro no vento, um eco esquecido da grandiosidade que um dia dominou o horizonte. Mas ainda respirava, um sopro antigo, envolto em musgo e silêncio. As colunas, partidas e cobertas de heras, se curvavam como devotos vencidos pelo tempo. Entre pedras rachadas e mármores desfeitos, uma presença invisível estremecia o ar: suave, doce, irresistível.

A grande estátua da Deusa, antes perfeita em sua beleza divina, agora era um torso incompleto, com traços delicados desgastados pela chuva e pelo vento. Ainda assim, mesmo mutilada, dela emanava uma força que fazia o coração apertar e os olhos marejarem, como se a própria essência do amor, e da perda, se derramasse por entre as fendas da pedra.

O altar antigo, coberto de flores silvestres que ninguém plantou, continuava vibrando com um calor sutil, como se mãos invisíveis ainda depositassem oferendas. À noite, quando o mundo se calava, diziam que a brisa que soprava entre as ruínas carregava o perfume adocicado da Deusa, e que os que ousavam se aproximar, sentiam em seu peito a vertigem do desejo e da saudade, um amor tão vasto e tão antigo que o próprio céu parecia chorar por ele.

Ali, entre sombras e raízes esquecidas pelo tempo, Afrodite permanecia. Não mais coroada em ouro, nem rodeada por pétalas ou perfumes, mas envolta em uma nudez crua: a da própria alma. Era ali que sua essência real se revelava, não a deusa venerada em altares de mármore, mas a mulher que, mesmo imortal, aprendera a sobreviver à perda. Era a beleza que resistia ao esquecimento. Era o amor que insistia em florescer mesmo quando só restavam cinzas.

O templo em que se recolhera não pulsava com as preces dos mortais. Estava em silêncio. Um silêncio antigo, quase orgânico. Mas algo ali se aquecia de novo, não por reverência, mas por um chamado mais profundo, mais primal. Como se o próprio chão respirasse desejo. Como se o passado não estivesse morto, apenas adormecido.

Foi nesse limiar entre o sonho e a memória que ela despertou. O corpo ainda febril, a pele úmida de um suor que não era físico. Ares. O nome ecoava em sua mente como uma batida surda, como uma ferida que reabria sozinha. Sentiu o toque dele, mesmo ausente... bruto, honesto, possessivo. O tipo de toque que deixava marcas mesmo em uma deusa. Marcas que ela havia escondido... não apagado.

Hefesto dormia ao seu lado, ainda entregue à quietude dos que constroem mais do que sentem. Um suspiro escapou dos lábios dela, involuntário, traiçoeiro. Ele se mexeu, os olhos ainda pesados, buscando-a na penumbra.

Hefesto – Sonhos ruins? Perguntou, a voz rouca, sem suspeitas.

Ela negou com a cabeça, o olhar fixo em um ponto distante. – Não... Sonhos antigos. Mas o pensamento martelava em sua mente: “ou seriam presságios?”

Ela se ergueu, envolta apenas em um tecido leve que pouco escondia, e caminhou até o espelho de bronze envelhecido. Tocou os próprios lábios como se testasse um segredo. E ali, sozinha com o reflexo, sentiu. O desejo estava voltando. Não por hábito. Não por costume. Mas com aquela urgência que se esconde, mas nunca morre. E não era por Hefesto.

Era por ele. Por Ares. Por tudo o que haviam sufocado em nome da ordem, da aparência, do Olimpo. Por tudo o que queimava e que ela, um dia, escolhera trancar. Mas agora… havia uma fagulha. Uma lembrança viva no fundo do ventre. Uma vibração no ar que fazia o sangue correr mais quente. Ela fechou os olhos. Por um instante, desejou não sentir. Por outro, desejou que o mundo explodisse em fogo, só para que ela pudesse arder com ele.

***

Enquanto isso, em Delfos, o antigo templo de Apolo repousava entre montanhas silenciosas, como um segredo murmurado pela terra. As colunas douradas pelo tempo se inclinavam para o céu pálido, fragmentos de mármore espalhados pelo solo seco como peças de um sonho esquecido. Entre elas, crescia a relva alta, dançando ao som de um vento que parecia trazer consigo notas de uma lira invisível.

As inscrições que antes celebravam oráculos e vitórias se desgastaram até virarem sombras nas pedras. Ainda assim, uma energia leve e cortante como a luz do amanhecer permeava o lugar, não como um grito, mas como um sussurro que vibrava nos ossos. Era impossível caminhar entre as ruínas sem sentir um arrepio na espinha, sem ter a estranha impressão de que a própria alma estava sendo convocada a recordar algo que sempre soube.

O Adyton, o recinto secreto onde a Pítia recebia as palavras do Deus, era agora apenas uma fenda na terra, mas dela ainda emanava um calor doce e sutil, como se o oráculo ainda respirasse, à espera de alguém digno de escutar.

Ali, entre poeira e eternidade, Apolo permanecia. Não mais ovacionado por multidões em êxtase, nem reverenciado por poetas em transe. Estava sozinho. Coroado apenas pelo silêncio e pela luz dourada que se deitava sobre os escombros de seu templo solar. Sua morada era agora um eco, uma lembrança do esplendor que um dia inspirou mundos. Ainda assim, era belo. Ainda assim, era divino. Pois sua essência nunca cessou de brilhar, mas agora, só os que enxergavam com a alma poderiam vê-lo.

Contemplava o horizonte pela décima vez, sem que uma única nota emergisse de seus dedos. O sol, sua criação mais fiel, continuava seu ciclo, mas ele, o Deus da harmonia, estava em dissonância. A inspiração, que um dia brotara como nascente viva, agora lhe escapava como areia entre os dedos. O silêncio era mais cruel que qualquer ruído. Ele não conseguia compor. Mas tampouco conseguia se calar por dentro. Havia um som que o corroía: o som de uma lembrança.

Dafne. Sempre ela. O nome, o perfume, o instante da fuga. O toque que nunca aconteceu. A pele que se negou. O galho que brotou onde deveria haver entrega. E no centro disso tudo… Eros. Apolo fechou os punhos. O peito arfava com uma raiva que atravessava séculos, intacta. Gritou para o céu, num misto de prece e desafio.

Apolo – Amor é uma maldição quando negado! E dentro de si, murmurou com amargura: “E Eros brinca com isso como se fosse um jogo…”

Caminhava em círculos pelo mármore rachado do templo, como uma fera aprisionada. Os olhos dourados, antes faróis de sabedoria, agora cintilavam com um brilho febril. Um verso começou a nascer, mas era áspero, ácido, cheio de espinhos. Não havia beleza nele. Apenas veneno.

“Aquele que dispara desejo sem conhecê-lo… conhecerá minha fúria.”

Havia algo escurecendo em Apolo. Um eclipse interno. Uma sombra onde antes habitava apenas luz. Não era apenas ciúme. Era a humilhação de quem ofereceu amor e recebeu silêncio. Era o orgulho ferido de um deus que fora negado... e que jamais perdoou isso.

“E a aposta de Eros e Psiquê? Um jogo sobre o amor verdadeiro?” Ele riu, sem alegria. O som ecoou como uma lâmina.

Apolo conhecia os limites do desejo. Conhecia a glória e o abismo de se apaixonar. Mas agora, com cada fibra sua, prometia: ele não permitiria que o amor voltasse a ser tratado como brinquedo. Se Eros ousasse novamente lançar suas flechas sem sabedoria… encontraria em Apolo um sol que queima... e não ilumina.

***

O trono de Hera nunca pareceu tão gelado. Nem mesmo no alto do Olimpo, coroada em ouro e reverência, ela conseguia afastar a sensação de vazio que se expandia dentro de si como uma rachadura silenciosa. Assistiu, com olhos fixos e expressão contida, Zeus se afastar mais uma vez. “Peregrinação divina”, ele chamava. Como se buscar prazer em outros corpos fosse parte de sua missão sagrada. As palavras dele eram sempre envoltas em charme, palavras doces, compostas como oferendas. Mas os olhos… os olhos não a olhavam mais há muito tempo.

Na solidão que se seguiu, Hera não chorou. A rainha dos céus não chorava, não porque não sentia, mas porque havia aprendido a sufocar cada lágrima com a dignidade que lhe era esperada. Mas aquela noite era diferente. Na quietude do salão, quando os ecos dos passos de Zeus já haviam se calado, ela ouviu algo mais profundo: um sussurro esquecido. Não vindo de fora, mas de dentro. A voz da dúvida. Aquela que ela havia silenciado por milênios, com coroas, com decretos, com orgulho. Com amor, ou o que pensava ser amor.

Hera levou uma mão trêmula ao peito. Uma ardência antiga renascia, não como paixão, mas como revolta. Como cansaço. – Como se pode chamar de amor… aquilo que é constante traição? Murmurou para o silêncio.

Caminhou, passos lentos, até seu espelho de obsidiana, aquele que refletia não a beleza, mas a essência. Lá, fitou a si mesma. Não como deusa, não como rainha. Mas como mulher. Mulher divina, sim, mas ainda assim mulher. E viu o que há muito se recusava a encarar: um olhar cansado. Um corpo que havia se moldado ao dever. Um coração que começava a não querer mais.

Hera – Serei eu, a deusa do matrimônio… um símbolo de resignação? A pergunta saiu como um sussurro ferido.

Ela tocou o próprio rosto. A pele ainda era firme. Os olhos ainda queimavam. Mas era a alma que doía. Pela primeira vez, não queria resposta de Zeus, nem de oráculos. Queria perguntar a si mesma, profundamente, honestamente, se havia amor verdadeiro que sobrevivesse ao abandono. Ou se ela, por medo da solidão, havia confundido apego com destino. A dúvida não a enfraquecia. Pelo contrário. A fazia lembrar de algo. De si. Do que era antes de ser esposa, antes de ser rainha. Do que ainda poderia ser.

Ao longe, entre as brumas do tempo, as Moiras observavam. Cloto sorriu com ternura, como quem vislumbra o início de uma nova tapeçaria. Láquesis mediu mais um fio com precisão paciente. Átropos, em silêncio, passou a pedra na lâmina da tesoura. Não por crueldade. Mas por equilíbrio.

Algo estava por vir. Algo que nasceria, não da dor de ser deixada, mas da coragem de, enfim, partir de si mesma.

***

A noite caíra suavemente sobre o Olimpo. O quarto onde repousavam Eros e Psiquê era tecido de névoa perfumada e luz tênue, uma ilusão encantada de eternidade. Era um lugar onde o tempo parecia adormecer. Escondido nas entranhas douradas do palácio, era feito não de pedras, mas de sonhos condensados. As paredes, translúcidas e douradas como âmbar derretido, pareciam respirar com uma luz própria, suave e acolhedora.

O teto se abria em uma abóbada infinita de estrelas, não um céu pintado, mas o próprio cosmos velado sobre eles, como se o universo protegesse seu amor. O leito, vasto como um pequeno lago de cetim, era forrado com tecidos que pareciam se moldar à pele de quem ali repousasse, abraçando, acolhendo. Cortinas diáfanas, brancas e cintilantes, dançavam sem vento, perfumadas com o aroma delicado de flores que jamais murchavam.

Sobre as mesas entalhadas em madrepérola e ouro pálido, descansavam jarros de vinho doce e frutas impossíveis: uvas que brilhavam como safiras, maçãs que exalavam promessas de eternidade. Tudo ali era feito para o deleite dos sentidos, mas sem vulgaridade, uma celebração pura do amor, da confiança e da entrega.

Ali, naquele quarto encantado, nenhum medo ousava entrar. As paredes sussurravam promessas silenciosas, tecidas na linguagem dos antigos, onde os sonhos e o amor tinham o mesmo som. A brisa trazia perfume de névoa e flores esquecidas, e cada detalhe do lugar parecia suspenso no tempo, guardando o instante como um relicário vivo. Ali, a dor do mundo não alcançava, e o passado não importava. Havia apenas o presente... inteiro, imenso, divino.

Eros dormia ao lado de sua amada, os cabelos espalhados como seda morna sobre o peito nu. Seu rosto era sereno, os lábios entreabertos como quem sonha com riso e entrega. Ele a segurava, não com força, mas com a naturalidade de quem conhece, na carne e na alma, o preço e a promessa de amar. Segurava-a como quem já morreu por ela. Como quem renasceu em cada gesto de retorno.

Mas Psiquê… Psiquê não dormia. Ela permanecia desperta, os olhos abertos na penumbra, fitando o teto estrelado como se lesse ali uma constelação secreta. Sua pele, agora divina, ainda carregava a memória da fragilidade humana. E naquela madrugada intocável, um arrepio cruzou seu corpo. Não de frio. Mas de pressentimento.

Algo mudara. Ela não sabia dizer o quê, mas sentia. Como sentira quando carregou a caixa de Perséfone pelo submundo. Como quando o óleo da lamparina escorreu por sua mão, queimando carne e confiança. Como quando se lançou ao vazio sem saber se ele a amaria ainda. Era o mesmo fio invisível, aquele que une as grandes viradas do destino.

Psiquê sussurrou, só para si. – Há algo caminhando entre os fios do Destino... e não é o amor que lançamos ao vento. É mais profundo. Mais velho do que o Olimpo. E não se curva nem à vontade dos Deuses.

Ela se virou, observando o rosto de Eros. Tocou-o com a ponta dos dedos, leve, como quem não quer acordar o tempo. Seus olhos se encheram de ternura e temor. Por um instante, pensou em falar. Em compartilhar o que ainda não tinha forma. Mas se calou. O silêncio foi escolha e proteção.

Psiquê – Ainda não... Murmurou por dentro. – Se eu disser agora… ele não ouvirá com o coração.

Então, fechou os olhos. E, mesmo sem dormir, repousou na certeza do amor, ainda que soubesse que o amor, por vezes, é o primeiro a ser testado pelos ventos do Destino.

Ao longe, no limiar entre os mundos, as Moiras sorriam entre as sombras.

Cloto, sentada ao tear, murmurou como quem canta para um fio precioso. – A alma que caminhou entre a morte e o amor... ainda escuta nosso sussurro.

Láquesis, medindo mais um fio, respondeu com olhos atentos. – Apenas com nossa permissão se sente o que é velado.

Átropos, com a lâmina em mãos, completou com solenidade. – Ela saberá quando falar. Não antes. E ele... ele aprenderá que até o amor precisa ver.

As três riram baixinho, como o vento sibilando entre folhas outonais. E então, um brilho: o fio dourado de Psiquê cintilou por um segundo no tecido do Destino. Um lampejo de ouro. Um aviso. Ou talvez, uma promessa.

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