Cidade moderna. Luzes. Ruídos. Vidas apressadas. Para os humanos, era apenas mais um dia. Mas para o tempo... algo se movia. Como o respirar contido de um universo que pressente mudança, o tecido da realidade estremecia. Um fio dourado, tênue como pensamento, denso como eternidade, descia em espiral do céu cinzento, invisível aos olhos mortais. Ele cruzava sem pressa os limites do tangível, pairando sobre ruas movimentadas, cruzamentos esquecidos e janelas acesas por solidões noturnas.
Não brilhava como ouro. Era outra luz, uma que carregava memória. Uma que sabia.
O Destino, desperto, tomava forma. Em lados opostos da cidade, duas figuras seguiam suas rotinas sem saber que estavam prestes a deixar de ser apenas indivíduos e se tornarem enredo.
Ela: Intensa, apaixonada pela beleza do instante, sensível como chama. Tinha olhos que procuravam poesia até no caos, e uma alma inquieta, faminta por significados. Trabalhava com criação, desejo e forma. Era feita de começos.
Ele: Introspectivo, analítico, buscava sentido nos detalhes, no silêncio, na profundidade do que sentia. Observador atento, escutava mais do que falava. Cuidava de mentes alheias com zelo, mas negava suas próprias feridas. Era feito de pausas.
Eles não se conheciam. Ainda. Mas algo os chamava. Algo maior. O fio os tocou, não como toque, mas como presença. Um arrepio na espinha. Um instante de vertigem ao olhar o céu. Um pensamento intruso: "Há algo diferente hoje." Um gato miou duas vezes ao longe, como sentinela. Um sinal mudou de cor antes da hora. Um livro caiu de uma prateleira sem que ninguém o encostasse. Era como se o mundo respirasse por eles. Ou por causa deles. E o Destino sorrisse em silêncio.
No Olimpo, o salão ainda pulsava com a sombra das Moiras. O ar, rarefeito como após uma tempestade, parecia pesar nos ombros de cada Deus presente. O eco da advertência final ainda reverberava: “Os mortais não são peças. São chamas frágeis.”
Por longos segundos, ninguém ousou falar. Até que Afrodite, visivelmente tensa, rompeu o silêncio. Ela se aproximou de Eros e Psiquê, os olhos carregados de receio e memória. Cruzou os braços e murmurou, aceitando o abraço do filho. – Sempre me arrepiam... como se pudessem ver até meus pensamentos.
Atena, rígida como pedra, respondeu sem desviar o olhar do vazio. – Elas veem. E onde veem, guardam. Onde guardam, um dia retornam. Sua voz parecia aço sendo forjado. – Que não se esqueçam: juramos sobre a Chama Eterna. Agora estamos sob o olhar delas também.
Zeus, que tentava retomar o controle do salão e de si mesmo, pigarreou e falou com um tom forçado de autoridade. – Que seja, então. A aposta foi lançada. Mas deixo claro: não tolerarei caos que ameace a ordem, nem aqui, nem entre eles.
Hera o encarou com um sorrisinho cortante, levantando a sobrancelha. – Você... falando de ordem? Isso sim é milagre. Zeus fingiu não ouvir.
Hermes, que assistia tudo com olhos cintilantes de diversão, deslizou entre os Deuses como um pensamento ágil. – Um casal guiado pelo Destino, cercado de Deuses entediados? Haverá enredos o suficiente para um século. Fez uma reverência exagerada a Eros. – Posso garantir que suas mensagens cheguem até eles... ainda que como sonhos ou impulsos. Nem sempre percebem, mas sempre sentem.
Dionísio, deitado em seu divã com uma taça translúcida entre os dedos, apenas suspirou. – Que ao menos se divirtam antes de sofrer. O amor é um vinho raro: às vezes cura. Às vezes enlouquece. Às vezes... os dois. Bebeu mais um gole. – De toda forma, brindemos ao espetáculo.
Hefesto, sempre prático, resmungou do fundo da sala. – Desde que ninguém me peça para forjar alianças antes da hora, fico fora disso. O Destino que carregue o peso do que tece.
Perséfone, silenciosa até então, aproximou-se da borda do salão, como se escutasse algo distante. Seus olhos tinham a calma de quem já viu a morte dançar com o amor. – Já começou. Sussurrou. – Os fios estão se tensionando. Alguns vão se entrelaçar. Outros... se romper.
E então, o salão se calou novamente. Mas era outro silêncio. Não mais o silêncio da dúvida, mas da aceitação solene. Algo havia sido posto em marcha, algo tão antigo quanto os próprios Deuses, tão imprevisível quanto os humanos. E ninguém, nem mesmo o Olimpo, tinha mais controle.
***
Sob os olhos dos Deuses, o jogo começou. No mundo dos homens, a realidade ainda parecia intacta. Mas para aqueles tocados pelo fio das Moiras, os primeiros efeitos já se insinuavam como uma febre branda, um sonho que não se lembra ao acordar, mas que insiste em ficar. Algo os rondava. Algo os chamava. Um evento aleatório, ou perfeitamente calculado pelo Destino, seria o ponto de partida.
Naquela noite, acontecia uma exposição de arte imersiva chamada “O Invisível que Toca”, idealizada pela agência onde ela trabalhava. Era seu projeto mais ousado, uma aposta pessoal. A proposta era clara e ao mesmo tempo enigmática: “conectar pessoas sem que se vejam, apenas por palavras, sensações e experiências sensoriais”. Um convite ao invisível, ao essencial. Um espelho sem reflexo, onde o que importava era o que se sentia e não o que se via.
Ela estava radiante. Caminhava entre as instalações como se o espaço respondesse à sua presença. Sabia que algo nela vibrava mais alto naquela noite, como se o mundo estivesse por um triz, um limiar entre o comum e o extraordinário.
Ele, por outro lado, chegou contrariado. O convite viera de um amigo que trabalhava com terapias alternativas, e, mesmo relutante, resolveu aceitar. Talvez por educação. Talvez por uma inquietação que ele mesmo não sabia nomear. Cético, manteve-se à parte nos primeiros minutos, como quem observa um ritual do qual não se sente parte. Mas algo ali o desarmou. Aos poucos, cedeu. Rendeu-se. E decidiu participar.
Os visitantes passavam por salas mergulhadas na penumbra. Não havia rostos, nem nomes. Apenas sons, aromas, texturas, e vozes disfarçadas em sussurros gravados. Em uma das salas, uma proposta: escrever algo que nunca se teve coragem de dizer. Uma confissão, um segredo, um desejo nunca pronunciado. As cartas, anônimas, seriam trocadas entre desconhecidos.
Ele escreveu. Com dedos trêmulos, mais pelo que se permitia sentir do que pelo ato em si. Não escolheu palavras bonitas, escolheu palavras verdadeiras. Algo enterrado há anos. Algo que, talvez, nem ele soubesse carregar. Ela escreveu também. Sem pudor, sem filtro. Derramou no papel um pedaço cru da alma, o tipo de coisa que nem mesmo o espelho costuma ouvir.
As cartas foram trocadas. Ela recebeu a dele. Leu em silêncio. E sentiu como se estivesse lendo um eco do que ainda não viveu. Algo nela se abriu. Ele recebeu a dela. E estremeceu. Reconheceu naquelas palavras uma ternura rara, uma coragem nua. Como se alguém, em algum lugar, tivesse sussurrado algo que ele não sabia que precisava ouvir. Eles não se viram. Não sabiam quem era o outro. Mas algo ali se acendeu. Um fogo sem nome. Uma ausência que fazia companhia.
Mais adiante, no topo do prédio, uma última experiência esperava pelos visitantes: “o salto no escuro”. Uma metáfora encenada, onde os participantes, vendados, eram guiados até a beira de uma plataforma simbólica. A proposta: confiar que havia chão. Que haveria chão. Que às vezes é preciso cair para saber que se pode voar.
Ela, impulsiva, destemida por natureza, hesitou pela primeira vez. Sentiu o coração disparar. O chão tremer sob seus pés. Não era medo do vazio, era medo do que sentia sem entender. Ele, guiado por um atendente, caminhava vendado na direção oposta. No exato momento em que ela duvidava, ele a alcançou. Os dois corpos se tocaram brevemente. Uma mão estendida. Um gesto instintivo. Sem palavras. Sem rostos.
Mas foi o bastante. O toque durou menos de um segundo. Mas nele havia uma eternidade silenciosa, como se algo no tempo se abrisse, uma dobra entre o antes e o depois. Eles não se viram. Mas sentiram. E naquele instante, sob a cidade ofuscada pelas próprias luzes, sob os ruídos do mundo moderno, dois corações pulsaram no mesmo ritmo. Um fio dourado se retesou, em silêncio. E os Deuses, no Olimpo, sorriram com os olhos. Porque sabiam. O Destino havia escolhido.
***
No dia seguinte, ele despertou com a estranha sensação de que sonhara algo importante... e de que havia perdido esse algo ao abrir os olhos. Uma espécie de ausência silenciosa o acompanhava no quarto ainda mergulhado na penumbra da manhã. Na mesa de cabeceira, a carta recebida na exposição repousava como um vestígio do que escapava ao entendimento racional. Ele a releu. As palavras eram simples, diretas, mas carregavam uma força delicada, quase crua. Era como se, por entre aquelas linhas, alguém tivesse se despido sem pudor. Havia desejo ali. Mas também medo. Havia entrega.
Pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu algo que ia além da empatia clínica com que costumava ouvir os outros. Era desejo. Curiosidade. Falta. Uma falta sem nome, sem rosto, mas que se instalava fundo, feito semente esquecida germinando no escuro.
No consultório, percebeu-se mais presente do que o habitual. Escutava com mais atenção. Respondia com mais humanidade. Mas, em certos momentos, se pegava distraído, arrastado de volta para aquele instante na exposição. O calor breve daquela mão que encontrou a sua. A textura daquela pele que agora vivia apenas na memória tátil de seus dedos. “Por que me tocou tanto alguém que nem vi?” pensou, entre uma sessão e outra. Começou a revisitar mentalmente todos os detalhes: o aroma sutil no ar, o som abafado dos passos, o silêncio que parecia habitado. Não tinha nome. Não tinha rosto. Mas tinha presença. Uma presença que agora o acompanhava.
Ela, por sua vez, fingiu que era só mais uma segunda-feira. Agiu com naturalidade, respondeu e-mails, distribuiu tarefas, sorriu para os colegas. Mas algo em sua forma de andar tinha mudado. Era como se seus passos tivessem desacelerado, não por cansaço, mas por contemplação. Por dentro, ela ainda ouvia o eco da carta recebida. As palavras escritas por um estranho ressoavam em lugares que ela mesma evitava tocar. A sinceridade naquela carta a desarmou. E, sem perceber por que, guardou aquela carta dentro de um livro de poesia que nunca terminara de ler... como se soubesse que aquela história também não havia terminado.
Não se apaixonava fácil. Já vira demais, vivera demais. Mas havia algo naquele gesto sem rosto, naquele toque no escuro, que ultrapassava o comum. Era como se, pela primeira vez, tivesse sido percebida além da imagem, além do papel que desempenhava no mundo. Sentira-se vista sem estar exposta. E isso a desnorteava.
No final do expediente, sem contar a ninguém, voltou à exposição. Caminhou sozinha até a última sala. Não havia mais filas, nem visitantes. Apenas o silêncio. E o vazio carregado de memórias recém-plantadas. Sentou-se no chão por alguns minutos e fechou os olhos. Esperava algo? Não sabia. Só queria lembrar. Ou talvez reencontrar o que não soubera nomear. Por fora, tudo seguia igual. Mas por dentro, algo nela já não era mais o mesmo.
***
No Olimpo, uma brisa dourada e morna subia dos domínios da Terra, atravessando o véu entre mundos, dançando entre colunas e salões. Era sutil, quase imperceptível, mas os deuses antigos a sentiram. Era como se uma corda antiga tivesse vibrado ao toque de dedos mortais.
Eros, de pé junto ao Véu da Observação, fechou os olhos e sorriu com o canto dos lábios. – Sentiram?
Psiquê estava sentada, ocupando a cadeira de seu amado, os olhos fixos em algo que só ela via. Havia uma suavidade em sua expressão, mas também um brilho profundo. – Foi apenas um toque. Mas foi puro. Sem máscaras. Quase... raro.
Afrodite, que observava a cena no Véu como quem analisa uma obra de arte prestes a se revelar, curvou os lábios num sorriso lento. – Um toque pode ser mais poderoso do que mil promessas. Eu sempre disse.
Atena, em pé ao fundo, observava em silêncio, os olhos calculando o que se escondia por trás da emoção. – O gesto foi espontâneo. Intencional, mas sem artifício. Um ponto para o acaso. Ou para o Destino.
Apolo, encostado em seu trono, não escondia o incômodo. Seus olhos dourados estavam sombrios. – Tocar sem ver. Amar sem conhecer. Ilusão. A mais perigosa de todas. É isso que destrói os melhores homens.
Perséfone, com sua serenidade escura, falou com voz baixa, mas firme. – Ou os transforma. O amor que nasce da escuridão é o que mais profundamente enraíza. E mais violentamente floresce.
Hera, de braços cruzados, lançou um olhar gelado para Zeus. – Que seja apenas o começo. Mas não é o toque que importa. É o que resistirá ao tempo. E às tentações.
Zeus, absorto, parecia menos atento. Mas sua voz soou firme. – Estão todos muito exaltados. Um toque não é amor. É só o prenúncio. E prenúncios nem sempre cumprem promessas.
Eros abriu os olhos. Seu sorriso era mais contido, quase triste. – Mas é assim que sempre começa.
Psiquê assentiu. Havia um amor antigo e profundo em seu olhar. – Começa no que ninguém consegue explicar.
Ao fundo, as Moiras, invisíveis aos outros, observam da sombra. Um dos fios pulsava em luz tênue. Cloto sorriu. Láquesis não piscava. Átropos não se movia.
***
O salão começava a esvaziar-se. Risos, debates e provocações flutuavam no ar leve e dourado como poeira de estrelas. Mas nem todos notavam que algo havia mudado na atmosfera. Um fio novo fora tecido, e com ele, o equilíbrio começava a inclinar-se para um lado ainda incerto.
Atrás do trono de Zeus, ocultas à maioria, as três fiandeiras do Destino observavam. Ninguém percebera sua permanência ali, exceto Psiquê, que desviou o olhar por um breve instante, mas nada disse.
Cloto passou os dedos por um novelo que não existia na noite anterior: um fio espiralado, dourado, pulsante, que parecia feito de luz e desejo. O fio de Afrodite.
Láquesis examinava outros fios: o de Apolo, esticado demais; o de Hefesto, desgastado; o de Hera, firme, mas com rachaduras sutis. Não os tocava. Apenas media. Como quem identifica fissuras antes do terremoto.
Átropos mantinha sua tesoura repousando. Mas seus olhos, fixos no tear, estavam atentos. Ainda não era hora. Mas o tempo escorria.
Cloto sussurrou, como se falasse com o próprio tecido da realidade. – Brincam com os mortais...
Láquesis completou. – ... Mas esquecem que já foram crianças diante de nós.
Átropos murmurou, fria. – E voltarão a ser.
Então, com um gesto lento, Cloto costurou silenciosamente uma linha tênue no tear de Afrodite. Uma pequena intersecção entre o amor e a vergonha. Uma memória esquecida, prestes a despertar. Láquesis traçou um nó no fio de Apolo, onde um ressentimento antigo aguardava combustão. Átropos, com a ponta da tesoura, tocou levemente o fio de Hera. Um lembrete. Nada mais. Elas não moviam o Destino por capricho. Mas não permitiam desequilíbrios.
Cloto. – Se desejam brincar com o amor dos homens...
Láquesis. – ...Que provem que conhecem o próprio.
Átropos. – Ou arcarão com o preço.
Ao longe, Psiquê ainda observava. Sabia que o que se iniciara ali, no escuro, no silêncio, no toque, era mais profundo do que Eros imaginava. E mais perigoso do que qualquer Deus ousava admitir.
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Atualizado até capítulo 24
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