O Salão Etéreo, no imponente palácio entre o Olimpo e o tempo dos homens, estava agitado. Há muitas eras, esse foi o palco do reinado de Zeus ao lado de sua esposa, Hera. O palco das mais diversas contendas entre os Deuses. O palco de infinitas reuniões olimpianas. E agora, mais um encontro estava prestes a acontecer.
O salão surgia como um suspiro moldado de estrelas. Tinha a forma de um vasto círculo perfeito, sem princípio nem fim, esculpido em mármore que parecia nascer da própria névoa, flutuando sobre o tecido do universo, refletindo constelações que dançavam sob os pés dos imortais. No extremo oposto da entrada, elevados acima dos demais, repousavam os dois tronos centrais. Se elevavam como promessas antigas, silenciosos como o próprio destino. O de Zeus, talhado em trovões adormecidos, exalava um poder bruto, quase selvagem. O de Hera, enredado em ramos dourados de romã, era o próprio ventre da ordem, belo e imutável.
Ao centro, onde os ecos do tempo se entrelaçavam, a Chama Eterna ardia, uma fogueira sem fumaça, alimentada pela vontade dos Deuses, guardiã dos pactos e das memórias que nem o esquecimento ousava tocar, pulsando com o sopro da criação. E ao lado dela, suspenso no ar por fios invisíveis, pairava o Véu da Observação: um manto de névoa viva, ondulando em brisas que não pertenciam a nenhum mundo, através do qual os Deuses espreitavam o mundo mortal, como quem espreita sonhos contidos numa gota de orvalho. Bastava um gesto, e o véu se abria como águas calmas, revelando a dança dos mortais sob o olhar eterno.
Em torno do salão, pilares de um branco iridescente subiam rumo ao infinito, talhados não em pedra, mas em eras. Cada um era uma história que respirava, espadas, serpentes, flores, trovões, testemunhas mudas daquilo que foi, e daquilo que ainda viria a ser. E no alto, onde o teto deveria estar, abria-se apenas o céu: ora estrelado, ora carregado de auroras, dependendo do humor dos que ali se reuniam.
No Salão Etéreo, o tempo não caminhava: ele se curvava. Ali, todo sussurro era canto, toda ausência, presença, e todo olhar, um destino à espera. Foi para esse palco majestoso que os Deuses haviam sido convocados por Eros e Psiquê. A atmosfera carregava o peso de eras esquecidas e a urgência dos Deuses em permanecerem vivos no imaginário humano.
Zeus, imponente em seu trono, foi o primeiro a falar. – O que queres, Eros, com essa convocação inesperada?
Eros se aproximou, confiante, um sorriso provocador brincando em seus lábios. – Minha amada e eu divergimos sobre uma questão antiga, mas fundamental: o que sustenta o amor verdadeiro?
Psiquê também se aproximou com passos firmes, o olhar sereno. – Eros acredita que o amor se basta. Eu, que caminhei até o fim do mundo por esse amor, sei que ele só floresce com a maturidade da alma.
Eros sorriu para a amada e pegou sua mão. – Por isso propomos uma aposta. Um casal mortal será observado. Sem interferência. Apenas o Destino guiará seus passos. Se se amarem, a razão será de quem tiver sua verdade comprovada.
Zeus os observou com um olhar entediado. Seu sorriso cínico tomando forma. – Amor? Isso vem e vai como as estações. Um jogo bonito, mas não digno da minha atenção. Que decidam entre si. Não me oponho, nem apoio.
Hera, sentada ao lado de Zeus, o observou com um olhar irritado, quase amargurado. Após ouvi-lo, levantou-se, sua altivez projetando-se em suas palavras. – O amor deve ser sagrado. Não um jogo. Um lar se constrói com compromisso, não com apostas. Ela fez uma pausa dramática e seu olhar recaiu sobre Psiquê. Após observá-la por alguns instantes, compreendendo a verdade por trás daquela aposta, assentiu com um pequeno gesto de cabeça. – Mas entendo o valor de tua busca, mortal tornada Deusa. Se as regras forem justas, não me oponho.
Afrodite, que acompanhava a conversa com crescente entusiasmo, deu um passo à frente. – Que delícia de ideia! Um casal mortal preso aos fios do Destino, provando o poder do amor! Seu olhar voltou-se para Eros, carregado de ternura e orgulho. – Mas, claro, não poderei me envolver... pelo bem da imparcialidade. Os Deuses a encararam, e ela suspirou dramaticamente. – Muito bem. Prometo me conter. Ainda que meu coração arda por tomar partido.
Atena, que a tudo observava em silêncio, ergueu a mão, pedindo permissão para falar. – Alguém precisa garantir que essa disputa não se torne um caos. Eu me ofereço como juíza. Minha espada pesa mais pela verdade do que pela emoção. Sua voz soou firme, carregada da segurança de quem preza a justiça. – E proponho que Afrodite também o seja, só assim para garantir que realmente se mantenha imparcial.
Afrodite a encarou, o olhar um misto de deboche e interesse. – Se assim os Deuses quiserem, também serei juíza.
Deméter se aproximou de Atena e Afrodite, sua voz tranquila, reverberando sua autoridade suavemente. – Se o amor é o tema, então que Perséfone seja a terceira juíza. Ela conhece as profundezas do amor, tanto na luz quanto nas sombras.
Perséfone que os observava silenciosamente, seu olhar trazendo a mistura entre a doçura e o abismo, respondeu. – Aceito. O amor que aprendi com Hades me mostrou que até o que floresce na morte pode ser eterno. Serei justa.
Os demais Deuses concordavam com breves acenos e sorrisos. Apesar da convocação, nem todos estavam presentes, somente aqueles cuja curiosidade tocara. Apolo observava a tudo em um canto mais afastado. O amor era um tema delicado para ele e seus sentimentos, naquele momento, o faziam desprezar tal aposta.
Dionísio que sempre carregava um sorriso no rosto, divertia-se com o rumo que aquela reunião estava assumindo. Sempre gostou de apostas, especialmente quando via uma oportunidade de jogar seus próprios jogos. Mas naquele momento, nada revelou. Hades acompanhava sua esposa em silêncio. Ele entendia o significado que se escondia atrás daquela aposta. Hefesto seguia indiferente. Não se importava muito com o desenrolar do amor, acreditava que já teve sua cota e que não lhe cabia a história dos demais.
Hera deu um passo a frente e os demais Deuses se silenciaram. – Que assim seja! Vamos observar esse casal mortal e acompanhar o desenvolvimento do seu amor. Atena, Afrodite e Perséfone serão responsáveis por julgar quem tem razão: se Eros e o amor por amor, ou se Psiquê que defende que o amor depende do amadurecimento da alma para persistir. As juízas deverão jurar, sobre a Chama Eterna, serem imparciais nessa aposta.
A Chama Eterna reluzia no centro do salão. Afrodite, Perséfone e Atena se dirigiram até o centro, posicionando suas mãos direitas sobre a chama:
– “Diante do Olimpo, sob o olhar das Moiras, juramos: Que nem palavra, nem gesto, nem pensamento influenciará os caminhos dos mortais escolhidos. Observaremos em silêncio, julgaremos com equidade. Pois o amor verdadeiro deve surgir livre, ou não será amor." A chama respondeu ao juramento, tornando-se dourada. Assim, o juramento foi selado.
***
O silêncio que se seguiu ao juramento foi profundo, espesso como o véu entre os mundos. Mas então, um som sutil, quase imperceptível, como o fio de uma agulha atravessando o tecido do tempo, cortou o ar. A luz vacilou. A atmosfera escureceu como se o próprio tempo tivesse parado para ouvir. Um vento gelado serpenteou pelo salão, fazendo as tochas dançarem. Três figuras surgiram no limiar: uma jovem de olhos agudos como lâminas recém-forjadas, uma mulher de meia-idade com olhar implacável e postura de juíza, e uma anciã curvada, de dedos longos como raízes de árvores milenares. Eram as Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos, as Tecelãs do Destino. Mesmo os Deuses se calaram. Até Zeus, o trovão encarnado, se endireitou em seu trono com a solenidade de quem reconhece forças maiores que a sua.
Átropos foi a primeira a falar. Sua voz era o estalo de galhos secos sob a neve, e reverberava em algo mais profundo que o som. – Vejo que ousam brincar com o tear. Ela não gritou. Não precisava. Cada sílaba caía como sentença.
Láquesis, de queixo erguido e olhos de pedra polida, tomou a palavra em seguida. – Falam do amor como se fosse laço simples. Amor é nó eterno, emaranhado que prende ou sufoca. Amor não é brincadeira para imortais entediados.
Cloto, a mais jovem, aproximou-se com passos graciosos, trazendo em mãos um novelo que cintilava com fios dourados e prateados. – Querem provar um ponto? Apostar com vidas humanas? Pois saibam: o Destino não é palco. Não é argumento. É Lei. Ela ergueu o fio. Ele vibrava no ar, tenso, vivo. – Uma vez traçado, nem o próprio Olimpo o desfaz. Nem nós o desfazemos, se já cumpriu sua curva.
Átropos avançou um passo. Seus olhos, velados por um tecido escuro bordado com símbolos arcaicos, pareciam ver além da matéria. – Ainda assim... houve juramento. E o juramento, quando feito diante do fogo sagrado e ouvido pelos que guardam os limiares, nos é visível. Ela ergueu a mão. Os dedos brilharam com runas tão antigas quanto o tempo. – Portanto, ouviremos. Mas saibam que ao tocar o Destino, não há retorno. Não há misericórdia.
Láquesis fitou Atena, Afrodite e Perséfone com olhos que pesavam eras. – Vocês que juraram serem juízas, lembrem-se: justiça não é paixão, nem desejo. Justiça é o fio que não se parte, mesmo sob tensão. Vigiamos o tear. E os desvios não passarão despercebidos.
Cloto sorriu, um sorriso que não era ternura, mas o presságio do início. – Tecerei o princípio. Mas não direi o fim. Nem como será trançado o meio. Isso... será descoberto. No sofrimento. Na escolha. Na renúncia. No amor, talvez. Ou no abismo.
As três caminharam lentamente até o centro do salão. Cada passo parecia dobrar o tempo sobre si mesmo. Quando Cloto lançou o fio no ar, ele dançou como serpente de ouro, girou, brilhou, pulsou... e desapareceu. Fora lançado ao mundo mortal.
Por um instante, nem mesmo os Deuses ousaram respirar. Era como se o próprio tempo tivesse prendido o fôlego. A cada passo das Moiras, a eternidade pesava sobre os ombros de todos, lembrando que, diante do Destino, até as majestades do Olimpo eram frágeis. Eram elas, e só elas, que teciam o início, o entrelaço e o fim. Nem Zeus ousaria contrariar sua vontade.
Átropos, já de costas para o trono, falou uma última vez. Sua voz agora era brasa sobre pele. – Lembrem-se: os mortais não são peões em jogos divinos. São fagulhas. Soprem com descuido... e restará apenas cinza.
Láquesis completou, firme. – Nós vigiamos. Sempre vigiamos.
Cloto sussurrou por fim, já prestes a desaparecer. – E o tear... nunca se esquece.
Com essas palavras, as três se dissolveram como névoa densa, envoltas em um silêncio mais profundo do que o anterior, um silêncio que não era vazio, mas prenúncio. A aposta estava lançada. E o Destino... desperto.
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Atualizado até capítulo 24
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