ENQUANTO DORMEM OS DEUSES

ENQUANTO DORMEM OS DEUSES

PRÓLOGO

Cloto (aquela que fia o fio):

"Em eras que os homens já esqueceram,

quando os Deuses caminhavam entre os mortais

e o céu escutava os sussurros da terra…

os fios do Destino dançavam em harmonia."

Láquesis (aquela que mede o fio):

"Havia ordem. Havia temor.

Altares eretos, preces murmuradas ao vento.

As oferendas ardiam sob a lua cheia

e os nomes sagrados eram semente no coração dos homens.

Naquela época, antes do esquecimento,

antes que os Deuses fossem relegados aos livros e estátuas,

houve um amor.

Um amor que ousou.

Um amor que rompeu os tecidos que nem nós ousávamos tocar."

Átropos (aquela que corta o fio):

"Um Deus de asas douradas.

Uma mortal de alma viva.

Ambos cruzaram os limites do que era permitido.

E por isso... todos foram tocados.

A queda começou ali —

não por ira, mas por escolha.

Não por castigo, mas por consequência.

O tempo avançou.

Os templos silenciaram.

Os Deuses recolheram seus brilhos às sombras

e nós, que tudo vemos, entrelaçamos uma nova chance."

Cloto (retomando o fiar):

"Agora…

em outra era, em outra pele,

outros nomes caminham os mesmos passos.

Ainda não sabem, mas o fio que os une

foi tecido muito antes do primeiro olhar."

Láquesis (medindo o caminho que virá):

"Eles se reconhecerão.

Eles cairão, como antes."

Átropos (finalizando, mas ainda sem cortar):

"Mas desta vez, quem sabe…

o amor aprenda a permanecer.

E nós…

Estaremos observando.

Tecendo.

Esperando."

O sussurro das Moiras ainda ecoava no tecido invisível do mundo quando, em um palácio esquecido pelos olhos humanos, duas presenças eternas observavam o céu. Eros, o Deus de asas douradas, reclinava-se sobre uma escadaria de mármore, seus olhos voltados para o firmamento pontilhado de estrelas. Ao seu lado, Psiquê, envolta em um manto de seda translúcida, repousava a cabeça em seu ombro. O vento morno da noite serpenteava pelos corredores vazios, trazendo o perfume das flores que cresciam nas bordas do mundo, onde mais nenhum mortal ousava pisar.

Eros – O céu mudou... Comentou em voz baixa, quase como quem teme acordar os próprios astros. – Mudamos nós também? Ou foi apenas o mundo que se esqueceu?

Psiquê sorriu, com a serenidade de quem havia conhecido as profundezas do amor e da perda. – Talvez um pouco de cada, meu amor. Respondeu ela, acariciando as penas douradas de sua asa. – Os homens agora cultuam a si mesmos. Escreveram suas próprias epopeias. Erguem templos invisíveis à glória de suas próprias conquistas.

Eros fechou os olhos por um instante, como se cada palavra de Psiquê cravasse nele uma lembrança antiga. – Já não clamam pelos Deuses... Murmurou ele. – Já não imploram por favores nas noites de tempestade. Não deixam mais oferendas às margens dos rios. Não entoam mais nossos nomes nas alvoradas.

Psiquê assentiu, com tristeza. – Tornamo-nos lendas. Disse, enquanto acariciava a mão de seu amado. – Histórias que passam de boca em boca, mas que cada geração acredita menos. Em breve, até as histórias desaparecerão. Restarão apenas os ecos.

Por um momento, o silêncio se instalou entre eles, tão vasto quanto o céu que contemplavam.

Eros – E mesmo assim... Ele quebrou o silêncio, com um brilho suave no olhar – Ainda há amor entre eles. Ainda há olhares que se buscam no meio da multidão. Ainda há corações que aceleram ao primeiro toque. O amor persiste, Psiquê. Talvez nós tenhamos ensinado algo que nem a morte da fé pode apagar.

Psiquê virou-se para ele, tocando seu rosto com ternura. – Talvez o amor seja a única coisa que realmente transcende... Mesmo quando os altares ruíram, mesmo quando os templos se apagaram, o amor permaneceu. Frágil, sim. Mas também forte, de uma forma que nem sempre compreendemos.

Eros riu suavemente, aquele riso que parecia carregar o peso e a leveza de mil primaveras. – Ainda assim, é doloroso. Saber que somos esquecidos. Saber que o brilho das estrelas que acendemos um dia agora é confundido com a fria matemática dos homens.

Psiquê – O esquecimento também é parte da história, meu amor. Ela o consolou. – É preciso ser esquecido para que se possa renascer de outra forma. Nada permanece o mesmo para sempre.

Eros olhou para ela, como se buscasse nos olhos da amada uma âncora para sua imortalidade tão solitária. – Como nós. Disse ele. – Mudamos tanto... e ainda assim, aqui estamos. Ainda te amo como da primeira vez que toquei tua alma.

Psiquê sorriu, e seu sorriso era um poema escrito nas bordas do infinito. – E eu a ti. Somos, Eros, o que resta quando tudo o mais desaparece.

Eles ficaram ali, entre o tempo e o silêncio, assistindo os astros moverem-se lentamente no céu esquecido. E em meio à vastidão da noite, Psiquê tornou a pousar sua mão sobre a dele. O silêncio macio pairava entre eles, preenchido apenas pelo rumor das estrelas.

Eros traçava círculos preguiçosos na palma da mão de Psiquê, como se quisesse redesenhar nela todas as constelações.

Eros – No fim, o amor vence tudo. Murmurou ele, com um sorriso sereno.

Psiquê inclinou o rosto, os olhos brilhando de uma ternura antiga, e respondeu. – O amor... sim, ele é a centelha que move o mundo. Mas sem alma, meu amor... – Disse, pousando a mão sobre o peito dele. – Sem amadurecimento, o amor se perde. Ele queima cedo demais, consome-se, e vira cinza antes de ser eternidade.

Eros a fitou, como quem enxerga mais do que as palavras deixam escapar. Um sorriso começou a dançar no canto de seus lábios, aquele sorriso travesso que Psiquê conhecia bem demais.

Ela estreitou os olhos, desconfiada. – O que foi? Perguntou, divertida.

Eros – Nada... Respondeu ele, fingindo inocência, mas o brilho nos olhos o traía.

Psiquê soltou uma risada leve. – Eros... Advertiu, cruzando os braços. – Eu conheço esse seu olhar. Está tramando alguma coisa.

Ele fingiu um ar ofendido, depois se aproximou mais, até que seus rostos quase se tocassem. – E se fizéssemos uma aposta? Sugeriu, a voz carregada de encanto.

Psiquê arqueou uma sobrancelha, já rindo. – Uma aposta?

Eros assentiu, os olhos dourados cintilando. – Escolheremos dois mortais. Um fio de amor, ainda frágil... Ele tocou um fio invisível no ar. – E veremos o que prevalece. Se o amor bastar por si só, sem interferências, ele sobreviverá. Se precisar de amadurecimento... Eros deu de ombros, como quem lança os dados ao vento. – Você terá razão.

Psiquê mordeu o lábio inferior, como quem pondera, mas havia um brilho desafiador em seus olhos. – E o que apostamos?

Eros sorriu, com a doçura de quem já sabia a resposta. – Apostamos nossas verdades. E talvez... um pouco dos nossos próprios destinos.

Psiquê inclinou a cabeça, observando-o em silêncio por um longo instante. Na profundidade daquele desafio, ela sentiu mais do que o jogo. Sentiu o eco de tudo o que já haviam vivido. Sentiu o amor. Vivo, pulsante, mas também vulnerável.

Ela sorriu, com a ternura de quem ama até as imperfeições do outro. – Eu aceito. Disse. – Para provar a você... Suas palavras deslizaram no ar como seda e lâmina ao mesmo tempo. – Que até o amor precisa crescer.

Eros riu, entregando-se, puxando-a para seus braços. – Então que comece nossa aposta, minha alma.

E, nas alturas silenciosas onde os olhos dos Deuses ainda repousavam, um novo fio começou a brilhar. Fino. Frágil.

Prometendo mundos.

Prometendo ruínas.

Prometendo amor.

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