O Sabor da Rotina

— Bom dia — disse, tentando disfarçar o peso nas palavras.

— Bom dia! — respondeu uma cliente habitual, pegando seu café como sempre, sem perceber o vazio por trás do olhar da dona da doceteria.

A "Delicatta" era o seu pequeno refúgio, seu projeto de vida, construído com açúcar, sonho e economia apertada.

Mas naquela manhã, o cheiro de canela e baunilha não parecia mais ter gosto.

Desde o diagnóstico, tudo estava levemente borrado.

Os sentidos funcionavam, mas era como se ela estivesse observando a vida através de um vidro embaçado.

Cada risada, cada som da rua, cada mordida em um pedaço de bolo…

Tudo parecia distante, quase falso.

Ela misturava a massa de cupcakes sem perceber que estava usando o dobro de fermento.

Esquecia os nomes dos clientes que conhecia há meses.

Às vezes, perdia o foco e encarava um ponto fixo na parede por minutos.

Mas ninguém percebia.

Melissa sempre foi gentil demais para ser questionada.

Delicada demais para carregar um fardo desses.

Até que algo diferente aconteceu.

Pouco antes do almoço, o sino da porta tocou novamente.

Ela não viu ninguém entrar.

Olhou ao redor, confusa.

— Alô? — chamou, indo até o balcão da frente.

Nada.

A rua do lado de fora estava vazia. Nenhum cliente. Nenhuma alma.

Mas ela sentiu.

Um arrepio subindo pela nuca.

Uma presença.

Como se algo — ou alguém — estivesse ali, parado, a observando com olhos que ela não conseguia ver.

— Deve ser o sono — murmurou para si mesma, voltando ao fogão.

Só que a sensação não passou.

Quando virou-se, ele estava ali.

No canto da doceteria, de pé, encostado à parede, com as mãos nos bolsos e um olhar fixo nela.

Melissa deu um pequeno sobressalto, os dedos quase derrubando a espátula de silicone.

— Desculpe… não ouvi você entrar — disse, tentando recuperar o ar.

O homem era alto, de pele pálida contrastando com os cabelos dourados bagunçados.

Seus olhos, porém… eram o que mais chamavam atenção.

Azuis como o céu antes da chuva, penetrantes e inumanamente intensos.

— É comum — ele respondeu com a voz baixa, quase como um eco. — Ninguém costuma me notar.

Ela franziu a testa, intrigada.

O tom dele não era brincadeira, tampouco timidez.

Era… estranho. Vazio. Como se houvesse algo quebrado no som da própria voz.

— Bem… posso te ajudar com algo?

— Você me viu — ele disse, ignorando a pergunta. — Como?

Melissa o encarou, confusa.

— Claro que vi… você está na minha frente.

— Mas ninguém vê.

Ela recuou um passo, o coração acelerando.

— Está me assustando…

O homem a observava como se ela fosse um enigma, algo precioso e impossível.

— Você é diferente. Tem… algo. Algo que já não pertence mais a este mundo.

— Quem é você?

Ele não respondeu de imediato. Apenas caminhou lentamente até o balcão, sem tirar os olhos dela.

— Você pode me chamar de Gabriel.

E, naquele instante, antes que Melissa pudesse reagir, o sino tocou de novo.

Ela piscou.

E ele havia desaparecido.

Como se nunca tivesse estado ali.

A espátula ainda tremia na sua mão.

E a sensação de que o destino tinha acabado de entrar — e sair — por aquela porta, se cravou fundo no seu peito.

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