Cael Ferraz,
Ficar em um hospital é como viver numa realidade paralela. As luzes são sempre brancas demais. As vozes baixas demais. Os dias longos demais. É tudo tão limpo e organizado que chega a sufocar. Mas nada sufocava mais do que a verdade.
Fiquei ali, naquela cama, por mais três semanas após acordar. Segundo os médicos, era necessário um período de observação antes de liberarem minha alta. Fraturas, hematomas internos, e a principal: uma lesão na coluna que limitava os movimentos das minhas pernas. Eu, que costumava andar de um lado para o outro na empresa, controlar reuniões, resolver crises, agora precisava de ajuda, até para ir ao banheiro.
Durante os primeiros dias, tentei manter alguma esperança. Pensava que talvez fosse algo temporário. Que meu corpo só estivesse em choque. Mas os exames eram claros, e os médicos eram sempre evasivos, como se tivessem medo de me destruir com palavras diretas. Só Lorena era direta. Direta demais.
Ela vinha todos os dias. Sempre arrumada, maquiada, como se o hospital fosse uma passarela. Trazia flores algumas vezes, outras apenas sua presença amarga. Sorria diante dos enfermeiros, mas quando estávamos a sós, o tom mudava. Frio. Desprezível. E cada vez mais impaciente.
— Aceite logo, Cael. Quanto mais rápido você parar de se iludir, menos vai sofrer — ela me disse uma noite, enquanto fingia ajeitar o travesseiro atrás da minha cabeça com arrogância.
Mas como se aceita algo assim? Como se aceita não ter mais controle sobre o próprio corpo?
Na quarta semana, finalmente me deram alta. O médico responsável me explicou os cuidados que eu deveria ter, o tipo de alimentação, os horários dos remédios e a fisioterapia que, segundo ele, era mais uma forma de adaptação do que de recuperação.
— Infelizmente, senhor Ferraz, seu caso é grave. A chance de recuperação é extremamente baixa. Tecnicamente o senhor está paraplégico.
Não chorei mais. Só encarei o teto enquanto ela falava, sentindo uma parte de mim morrer em silêncio.
Na manhã da alta, Lorena apareceu com um sorriso largo no rosto e um vestido vermelho vivo que me pareceu, no mínimo, inadequado para o momento.
— Olha o que eu trouxe pra você, amor — disse, estendendo a mão para o enfermeiro que a acompanhava. Ele segurava uma cadeira de rodas preta, com detalhes cromados. — Seu presente de recomeço. Linda, não é?
Meu peito apertou. Olhei para a cadeira como se fosse uma prisão com rodas. Não consegui sorrir. Apenas desviei o olhar e agradeci aos enfermeiros que me ajudaram a sentar nela com cuidado.
— Pronto, senhor Cael. Vamos levá-lo até o carro — disse um deles.
Lorena observava de longe, com os braços cruzados e um leve sorriso. Aquilo me incomodou. Ela parecia estar satisfeita.
O caminho até o carro foi em silêncio. O barulho das rodas contra o chão ecoava em minha cabeça. Quando entramos no veículo, ela dirigiu com calma, mas sem dizer uma palavra. O silêncio entre nós era carregado de tudo que não era dito.
Chegamos em casa pouco antes do meio-dia. A mansão estava do mesmo jeito. Intocada. Imensa. Fria.
Assim que descemos, ela foi até o porta-malas, pegou a cadeira e me ajudou a sentar. De novo, aquele toque sem calor. Como se estivesse empurrando um objeto.
— Vamos logo, não quero ficar o dia inteiro nisso — disse, com impaciência.
A entrada da casa parecia ainda maior agora. Aquelas escadas enormes que um dia eu subia com passos firmes, agora eram barreiras intransponíveis.
— Vamos usar a entrada lateral — ela completou, já caminhando.
Uma das funcionárias, a única que ainda restava, abriu a porta dos fundos. Lorena passou na frente, empurrando a cadeira com pressa. Me senti uma encomenda.
Dentro do quarto, ela foi até a cama e jogou os travesseiros de qualquer jeito.
— Vai precisar de ajuda pra subir, né? — perguntou com desprezo.
— Sim… — respondi, sentindo a vergonha subir pelo rosto.
Ela se aproximou, agarrou meus braços com firmeza e me puxou de um jeito que fez minha coluna doer.
— Cuidado… — murmurei.
— Se reclamar, te deixo no chão — ela disse, com um sorriso de escárnio.
Me jogou de lado na cama, como quem larga um saco de roupas.
— Pronto. Agora se ajeita como quiser — ela disse, e saiu do quarto batendo a porta.
Fiquei ali, deitado, olhando para o teto. A respiração pesada. O peito apertado. E o gosto amargo da humilhação.
A casa, que um dia foi meu refúgio, agora era um cativeiro. E a mulher que chamei de esposa, meu pior castigo.
Alguns minutos depois, ela voltou com uma bandeja. Achei que fosse comida, mas era só uma garrafa de água e um pote com comprimidos.
— Os remédios estão aqui. Se quiser comer, peça algo pelo interfone. Não sou sua enfermeira — disse, colocando tudo em cima da cômoda, longe do meu alcance.
— Você… pode me ajudar a chegar até ali? — perguntei, com a voz embargada.
Ela me encarou por alguns segundos, riu baixo e respondeu:
— Não. Se vira.
Saiu novamente, deixando a porta aberta. Fiquei ali, tentando pensar em uma forma de alcançar a cômoda sozinho. Mas tudo doía. Cada tentativa era um fracasso.
A sensação de inutilidade crescia dentro de mim como uma maré.
No fim da tarde, ouvi risadas vindo da sala. Ela tinha colocado música alta. Música animada. Como se estivesse comemorando alguma coisa.
E talvez estivesse mesmo.
Naquela noite, ela não apareceu mais no quarto. A funcionária trouxe um prato frio e me ajudou a comer. Pedi a ela, com vergonha, que colocasse a cadeira ao lado da cama caso eu precisasse ir ao banheiro. Ela fez tudo com cuidado, com um olhar que misturava pena e compaixão. Ela aproveitou e me deu meus remédios.
— Senhor Cael… qualquer coisa, é só me chamar, tá bom? — disse, antes de sair.
— Obrigado… de verdade.
Quando fiquei sozinho de novo, olhei para o teto. Tentei mover os dedos dos pés. Nada. Nenhum sinal.
Fechei os olhos e senti as lágrimas virem. Em silêncio. Sem soluços. Apenas a certeza de que eu não era mais quem fui.
A mulher ao meu lado estava feliz com isso. E eu sabia, no fundo, que ainda ia sofrer muito mais. Eu não tenho ninguém, não tenho mais meus pais comigo. Meus amigos de trabalho, não deixariam seus afazeres para vir aqui me ajudar. Eu estava literalmente sozinho. E além de tudo, preferia me virar sozinho aqui, do que eles me olharem com olhar de pena e nojo, assim como ela.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
Aldamira Paes Gonzaga
o autora o homem tem dinheiro ele pode pagar os melhores médicos para cuidar dele né
2025-04-28
5
Erlete Rodrigues
porque não contrata enfermeiros para cuidar dele ❓
2025-04-30
1
Maria Sena
Gente, essa filha do capeta com a narja acha que tudo que ela tá fazendo não vai ter retorno, pura ilusão. A lei do retorno não tem piedade com ninguém.
2025-05-03
0