Capítulo 4 – A Chama e o Vazio

A noite caiu como um presságio. Depois do ataque, a casa de Isadora ficou mergulhada em silêncio. O espelho quebrado, a madeira queimada pelas chamas negras e o sangue escuro de Kael ainda marcavam o chão como cicatrizes.

Ele estava deitado no sofá, o corpo ferido tentando se regenerar, mas o processo era lento — mais lento do que deveria.

Isadora se ajoelhou ao lado dele, limpando com cuidado os ferimentos. O cheiro de enxofre era fraco, misturado ao calor do sangue dele, que parecia pulsar com uma energia viva e estranha.

“Você deveria estar curado já”, ela sussurrou, a toalha manchada entre os dedos.

“Eles usaram magia antiga… amaldiçoada. Querem que eu apodreça de dentro pra fora.”

Isadora engoliu em seco. “Então vamos quebrar essa maldição.”

Kael virou o rosto para ela, os olhos enfraquecidos, mas ainda intensos. “Você já fez mais do que eu mereço.”

Ela tocou o rosto dele, como se aquela carícia pudesse segurá-lo ali, preso à vida. “Não é sobre o que você merece. É sobre o que escolhemos agora.”

Nas horas seguintes, Isadora pesquisou tudo o que pôde. Velhos grimórios que a mãe havia deixado — livros que, na infância, pareciam apenas fantasia, mas que agora brilhavam com uma verdade assustadora.

Ela encontrou um ritual: "a cura da conexão." Uma invocação de equilíbrio entre luz e trevas. Mas o preço…

“Aquele que desejar curar o abismo, deve abrir mão da própria sombra.”

Ela não sabia exatamente o que significava, mas sabia que faria qualquer coisa por ele.

Na madrugada, ela desenhou o círculo no chão com cinzas e sal. Acendeu velas negras e brancas ao redor de Kael, que mal conseguia manter os olhos abertos.

“Confia em mim?”, ela perguntou.

“Até o fim.”

Ela começou a recitar. As palavras fluíam em uma língua que ela não sabia, mas que saía de seus lábios como uma lembrança antiga, como se algo em seu sangue reconhecesse cada sílaba.

No centro do círculo, Kael arqueou o corpo, como se algo rasgasse por dentro. Gritos não humanos ecoaram do chão, das paredes, do próprio ar.

E então, veio a visão.

Ela viu o passado dele.

Kael, em forma humana, ajoelhado diante de uma mulher — olhos como os dela, sorriso como o dela — enquanto a mesma sombra que o atacara o arrastava para as profundezas.

Ela entendeu. Ele havia amado antes. E havia perdido.

A maldição não era só externa. Era interna. Era culpa.

Quando voltou a si, Kael respirava mais firme. Os ferimentos estavam selados. Ele estava vivo.

Mas Isadora… não conseguia se mover.

Ela acordou horas depois, na cama, Kael ao seu lado.

“Você fez um pacto com algo antigo”, ele disse. “Abriu mão de parte da sua alma pra me curar.”

Ela apenas assentiu, os olhos ainda pesados. “Valeu a pena.”

Kael se aproximou devagar, os dedos roçando os dela. “Você não sabe o que isso significa.”

“Significa que agora somos iguais. Meio sombras, meio luz.”

Ele não respondeu de imediato. Em vez disso, curvou-se e encostou os lábios na testa dela — um beijo que queimava e curava ao mesmo tempo.

Nos dias seguintes, a marca em Isadora mudou. Cresceu. Agora, as linhas se expandiam pelos ombros e desciam pela coluna, como se raízes quisessem afundar nela até o coração.

E com a marca, vieram os sonhos. Vivos, sombrios, intensos.

Ela via mundos desfeitos, desertos de almas perdidas, salões de pedra onde demônios gritavam em silêncio. E, sempre ao fundo, ela via uma versão de si mesma — mais fria, mais forte, com olhos negros como os de Kael.

Era o que ela poderia se tornar.

E Kael sabia disso.

“Você está mudando”, ele disse certa noite, observando-a de longe.

“Eu sei. Sinto isso dentro de mim. Uma... força.”

“Não é só força. É o vazio. O mesmo que me consumiu por séculos.”

Ela se aproximou. “Mas você aprendeu a resistir. Eu também vou.”

Ele segurou o rosto dela com as mãos. “E se eu não conseguir salvá-la de mim mesmo?”

Ela sorriu, com ternura e escuridão nos olhos. “Então vamos nos perder juntos.”

Naquela noite, eles se amaram pela primeira vez.

Não como humanos, não como criaturas do abismo, mas como algo novo — uma fusão de dor e desejo, luz e sombra.

Os corpos entrelaçados foram apenas reflexo do que acontecia em suas almas: uma entrega sem volta.

E enquanto as velas se apagavam, o mundo além da janela ficava mais escuro.

Porque o inferno havia percebido que Kael não era mais apenas um traidor.

Agora, ele era um traidor apaixonado.

E isso… era imperdoável.

Continua...

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