capítulo 2 Sementes da Escuridão

Isadora não conseguia dormir naquela noite.

Ela ficou horas deitada, encarando o teto manchado, ouvindo o som do mundo lá fora — a chuva batendo suave na janela, o latido de um cachorro ao longe, o motor de um carro solitário passando na rua molhada. Tudo tão normal… exceto pela presença sentada à sua janela.

Kael.

O demônio não se mexia. Parecia esculpido em sombra. Os olhos dele brilhavam suavemente no escuro, como brasas famintas que se recusavam a apagar. Mas mesmo ali, envolto em escuridão, ele não era ameaçador. Pelo contrário — havia algo reconfortante na forma como ele simplesmente… existia. Como se estivesse guardando-a.

“Você não dorme?”, ela sussurrou, ainda deitada, com os olhos semicerrados.

Kael respondeu depois de um longo silêncio. “Não como vocês. O sono é humano. Sonhar… é um luxo que perdi há milênios.”

Ela se virou na cama para encará-lo. “E o que fazia antes de mim? Ficava vagando? Causando dor?”

“Sim. Era o que fui criado para fazer. Mas era vazio. Mecânico. A dor alheia me alimentava, mas não me preenchia. Eu era só um reflexo do sofrimento humano.” Ele a observou por alguns segundos. “Você foi… diferente.”

Ela não disse nada. Apenas encarou aquele ser de olhos incandescentes e alma quebrada, e por um momento, viu nele o mesmo tipo de dor que carregava. Mas ao contrário da dela, ele nunca aprendeu a esconder.

“Por que agora?”, ela perguntou, baixinho. “Por que você sentiu algo por mim, e não por todos os outros que você já viu sofrer?”

Kael hesitou. Quando respondeu, sua voz era quase um sussurro. “Porque você não gritava. Sua dor... não era revolta. Era resistência. Silenciosa, paciente. Como um rio que continua correndo mesmo que todas as margens tenham desabado. Eu nunca vi isso.”

“Isso é força?”

“É algo além.”

Na manhã seguinte, Isadora tentou voltar à rotina. Tomou banho. Preparou café. Vestiu seu uniforme da cafeteria. E Kael — Kael a observava em silêncio, como uma sombra fiel que não ousava tocá-la sem permissão.

“Você vai me seguir até lá?”, ela perguntou, servindo duas xícaras como sempre. Uma agora para ele.

Kael aceitou a bebida, embora não precisasse. “Se quiser, eu fico.”

Ela deu de ombros. “Pode vir. Mas me promete uma coisa.”

“Qualquer coisa.”

“Não faça ninguém sofrer.”

Kael a observou longamente. “Nem se for por você?”

Ela parou por um segundo, surpresa. Depois, desviou o olhar. “Principalmente se for por mim.”

A cafeteria era pequena, mas charmosa. Paredes forradas com quadros antigos, cheiro constante de canela e café, e uma playlist suave que preenchia o ambiente sem incomodar. Os clientes habituais sorriram para Isadora como sempre. E ela, como sempre, sorriu de volta. A diferença é que, desta vez, ela sabia que estava sendo observada por olhos do outro mundo.

Kael sentou-se em um canto, onde a luz do sol não tocava diretamente. A maioria das pessoas parecia ignorá-lo. Alguns o olhavam brevemente e depois desviavam o olhar, como se algo os fizesse esquecer que ele estava ali. Um instinto antigo, talvez — de que o que se esconde na sombra, deve permanecer ignorado.

Isadora o observava entre uma mesa e outra, com uma curiosidade crescente. Ele não falava com ninguém. Não tocava em nada. Apenas a observava. Como se estar perto dela fosse suficiente.

Naquele dia, algo estranho aconteceu.

Uma mulher entrou na cafeteria — alta, elegante, vestida de preto como um luto eterno. Os olhos dela eram escuros demais para serem naturais. Assim que ela cruzou a porta, Kael se enrijeceu.

Isadora notou a tensão dele imediatamente. A mulher se aproximou do balcão, sorrindo.

“Bom dia, querida”, disse com voz sedosa. “Um chá de hibisco, por favor.”

Isadora serviu com gentileza, mas algo nela se arrepiou. A mulher tinha um olhar... invasivo. Como se estivesse vendo além da pele. Além da alma.

Quando ela saiu, Kael estava em pé.

“Ela não é humana”, disse.

“Quem era ela?”

Kael olhou para a porta, como se esperasse que ela voltasse a qualquer instante. “Uma mensageira. Do outro lado. Eles já sabem que estou aqui.”

“Ela vai voltar?”

“Provavelmente com reforços.”

Isadora sentiu o chão se mover sob seus pés. Pela primeira vez, sentiu medo real. Não por ela, mas por Kael. Ele a havia salvado da solidão, mesmo sem perceber. E agora, por causa disso, estava sendo caçado.

“Se você for embora, eles param de vir?”

Kael a olhou. “Sim.”

Ela o encarou por longos segundos. Então, disse: “Então você fica.”

Ele se aproximou dela, devagar, como se temesse quebrá-la. “Você não entende o que isso significa.”

“Entendo o suficiente.”

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!