o reencontro

Acho que aquele dia foi o mais quente desde que me mudei para os Estados Unidos. O tipo de calor que faz a maquiagem escorrer no canto dos olhos e cola os cabelos na nuca. Até o ar-condicionado do estúdio parecia ter desistido de lutar. O blazer? Impossível. Tirei e pendurei na cadeira. Aquilo ali já era tortura demais.

Fui até o banheiro. Meu rosto estava úmido, vermelho, com pequenas gotas de suor que ameaçavam desfazer meu esforço de parecer impecável. Retirei o batom, passei um novo vermelho sangue nos lábios. O espelho devolveu o meu reflexo — olhos firmes, sobrancelha arqueada, os cabelos longos escorrendo até quase a cintura. Despenteados, rebeldes, vivos como sempre foram. Molhei os dedos, passei nas pontas. Deixei-os soltos.

Fernanda, minha secretária, já tinha avisado:

— A entrevista com os dois fotógrafos está marcada para às quatro em ponto, senhora Joyce.

“Senhora Joyce”. Ela sempre fazia questão de me lembrar quem eu era agora. A chefe. A dona do estúdio. A mulher que construiu tudo do zero. Não a menina de anos atrás que se escondia em bibliotecas com um sorriso idiota no rosto.

Peguei o celular e mandei uma mensagem rápida para minha mãe:

“Mãe, vou chegar tarde hoje. Tenho entrevista e reunião. Não me espera.”

A resposta veio segundos depois:

“Ok.”

Sem coraçãozinho. Sem pergunta. Sem ponto final. Apenas “ok”. E tudo bem. Já me acostumei com isso também.

Enquanto os candidatos não chegavam, sentei no sofá da minha sala. Peguei o segundo livro da saga ACOTAR. O mesmo box que ele — ele — me deu anos atrás. A capa já estava gasta nas bordas. As páginas, um pouco amareladas. Mas aquele livro era meu amuleto silencioso. Onde quer que eu fosse, ele vinha comigo.

Era a história que a gente lia escondido, quando o mundo era só nós dois e a biblioteca da escola parecia um universo paralelo. Nós dois, os dedos entrelaçados por debaixo da mesa, dividindo fone de ouvido e sonhos adolescentes. Claro que era escondido. Claro que ninguém podia saber. Ele tinha vergonha de mim.

Balancei a cabeça. Fechei o livro.

“Não. Hoje não.”

Fui até a janela. A luz do fim da tarde se deitava sobre a cidade como um lençol dourado. Pássaros cortavam o céu. O vidro refletia meu rosto — firme, sóbrio. A versão de mim que sobreviveu àquilo tudo.

Foi quando Fernanda bateu na porta.

— Senhora, os dois já assinaram o contrato. Só falta a senhora mostrar o estúdio.

Não virei. Só levantei a mão, sinalizando para ela ir. Continuei com o corpo virado pra janela, como se a paisagem me dissesse algo mais importante do que ela. Suspirei. Vesti o colete da minha roupa, ajeitei a saia, olhei pro relógio: 16h01. Hora de ser a chefe. A profissional. A mulher inabalável.

Me virei.

E parei.

Congelada.

Meus olhos arregalaram. O coração tropeçou dentro do peito. O mundo inteiro encolheu em volta de mim.

Eles.

Eles estavam ali. Em carne, osso e erro.

Eduardo... e Lorenzo.

Meu corpo todo endureceu, como se uma couraça tivesse se formado nos meus músculos. Cruzei os braços. A expressão fechada se encaixou no meu rosto como uma máscara de ferro. Minha voz saiu firme, quase cortante:

— Vocês são os dois contratados, não são?

Eles assentiram. Eduardo, com aquele sorriso idiota e tranquilo de sempre. Como se nada no mundo o abalasse. Como se aquele reencontro não tivesse nenhuma importância.

— Oi Joyce. Quanto tempo. — ele disse. E eu... não respondi.

Não respondi, Eduardo.

Mas meus olhos... meus olhos caíram nos dele. Nos dele.

Lorenzo.

O mesmo cabelo loiro, agora mais bagunçado. O mesmo olhar de bad boy que me derretia anos atrás — mas agora, congelado. Ele empalideceu. Ficou branco como papel. Como se tivesse visto um fantasma. E viu. O pior de todos. O fantasma que carrega todas as escolhas erradas dele. Eu.

Ele não conseguia parar de olhar. Meus olhos nos dele, e eu sustentei. Sem piscar. Sem tremer.

E então... os olhos dele desceram.

Desceram até a minha mesa.

O livro.

O livro que ele me deu.

Vi a expressão dele tremer. Ele encolheu, um segundo só, mas eu vi. Um choque. Uma lembrança. Um “ela guardou isso”.

Sem hesitar, fechei o livro com firmeza e o guardei na gaveta. A gaveta da frente. A mais funda.

E então falei. Firme. Implacável.

— Aqui é trabalho. Nada de interação pessoal. Nem perguntas. Me acompanhem. Vou mostrar o estúdio.

Me levantei.

Como uma muralha.

Como se nenhuma palavra pudesse me ferir.

Como se nenhum passado tivesse força suficiente pra me arrastar de volta.

E caminhei. Com eles atrás de mim. Pisando no mesmo chão que eu.

Mas não. Eles não pisavam no mesmo lugar.

Porque eu estava à frente.

E não sou mais a mesma Joyce.

Não sou.

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