O som dos sinos ecoava por toda Etheria. Três toques longos, um breve. Sinal de luto. Sinal de mudança.
Kael havia sido sepultado sob a Sala do Coração, o ponto central do Templo dos Guardiões. A cerimônia foi silenciosa. Nenhum feitiço, nenhuma música. Apenas rostos sérios e olhos fundos.
Arthur observava a pedra marcada com o nome de Kael. A runa final, que representava "guia", parecia queimar em sua mente. Ele sentia o peso da culpa, não apenas pela morte do mestre, mas pelo que estava se tornando. Algo dentro dele vibrava como um eco distante — uma batida que não era dele, uma voz que sussurrava por entre as rachaduras do seu espírito.
Elyra não compareceu ao enterro.
Naquela noite, o Conselho Restante se reuniu. Com Kael morto, restavam apenas três dos sete membros antigos: Elowen, Tyros e Irien. Varda representava o grupo como observadora, e Arthur foi convocado como portador do fragmento.
Mas o foco não estava nele.
Estava em Elyra.
Ela entrou na câmara com passos firmes. O arco nas costas, a postura reta, mas os olhos... os olhos estavam quebrados.
— Elyra de Valthor — disse Irien. — Você agiu contra as ordens do Conselho ao executar Varek sem julgamento. Tem algo a declarar?
Ela olhou diretamente para Arthur antes de falar.
— Fiz o que achei necessário. Varek era instável, perigoso. Cada segundo que respirava era uma ameaça.
— Isso não é decisão sua — disse Elowen com frieza. — Nem mesmo do portador do fragmento.
Arthur se manteve em silêncio, os punhos cerrados.
— Ela pode ter cometido um erro — disse Tyros. — Mas salvou vidas no ataque seguinte. Talvez Varek estivesse mesmo corrompido.
Irien cruzou os braços. — Talvez. Mas o problema não é o ato, é a confiança quebrada. E a confiança é o que mantém Etheria de pé.
— Concordo — disse Arthur finalmente.
Todos se viraram para ele.
— O que aconteceu com Varek foi um erro. Mas não só de Elyra. De todos nós. Confiamos em suposições. Agimos por medo. E pagamos o preço com a vida de Kael.
— Está pedindo perdão por ela? — indagou Irien.
Arthur fitou Elyra novamente. — Não. Estou dizendo que a punição dela não vai consertar nada.
Silêncio.
— Afastamento temporário das funções ativas — decretou Elowen. — E vigilância supervisionada. Ela permanece no Templo, mas não pode participar de missões.
Elyra não protestou. Apenas assentiu.
Mais tarde, Arthur a encontrou na antiga sala de treino, onde ela praticava movimentos com a espada, sozinha, sem magia. Apenas o som do metal no ar.
— Eles foram... justos? — ele perguntou.
Ela não parou de treinar. — Foram políticos. Não é a mesma coisa.
— Eu falei por você.
— Eu sei.
Houve um momento de silêncio.
— Você me odeia agora? — ela perguntou, sem encará-lo.
— Não. Mas confio menos. E isso é pior.
A lâmina dela vacilou por um instante.
Arthur se virou para sair, mas parou na porta.
— A próxima vez que mentir pra mim... vou saber antes da primeira palavra sair.
E se foi.
Na madrugada, Arthur acordou suando. Havia sonhado com o espelho novamente — mas desta vez, o reflexo falava com voz clara.
— Você sente, não sente? O templo está se esfarelando. E eles esperam que você os salve. Mas quem salva você?
Levantou-se, o peito arfando. Foi até a fonte de meditação no jardim interno. A água refletia o céu estrelado, mas algo o incomodava. Uma presença.
— Não está dormindo bem — disse Varda, sentada à sombra de uma árvore cristalina.
— Não durmo mais. Apenas descanso os olhos e luto no escuro.
Ela o observou por longos segundos.
— O reflexo falou com você, não é?
Arthur se virou, surpreso.
— Você sabia?
— Já vi isso antes. A presença do fragmento começa a criar versões alternativas de você mesmo. Possibilidades. Projeções. Às vezes... verdades que você não quer encarar.
— Ele diz que Elyra vai me trair de novo.
— E você acredita?
Arthur ficou em silêncio.
— A dúvida é uma semente perigosa — ela completou. — Se você a rega, ela vira um monstro.
No dia seguinte, uma nova urgência.
Elowen reuniu Arthur, Varda, Tyros e Soryn.
— O segundo fragmento foi localizado.
Todos se entreolharam.
— Onde? — perguntou Soryn.
— Na Montanha Esquecida. Mas não está sozinho. Uma criatura o guarda. Algo antigo... e corrompido.
Arthur sentiu uma pontada no peito. Um tremor sutil.
— Eu senti algo na noite passada — disse ele. — Como se o fragmento estivesse me chamando.
Elowen assentiu. — Está se conectando com os outros. Isso era esperado.
— Quando partimos?
— Amanhã. Ao amanhecer.
Enquanto preparava seus equipamentos, Arthur encontrou uma pequena adaga entre os pertences de Kael. Tinha o símbolo dos Guardiões gravado no cabo. Pegou-a sem pensar, como se fosse um lembrete de que os erros têm preço.
Varda surgiu em seguida.
— Você vai liderar a missão?
— Não me deram opção.
— Talvez seja hora de parar de aceitar isso.
Ele a olhou.
— Como assim?
— Você é o portador. Mas ainda age como aprendiz. Tem poder para decidir. Para contrariar. Usar ou recusar. Mas teme o que isso pode fazer com você.
Arthur considerou as palavras. E viu que eram verdade.
Antes de partir, foi até Elyra. Encontrou-a no jardim de treinamento, fitando os ventos noturnos.
— Vamos para a Montanha Esquecida — disse ele.
— Vai sozinho?
— Com Varda, Soryn e Tyros. Mas não com você.
Ela assentiu. Não reclamou. Apenas disse:
— Volte inteiro.
Arthur hesitou.
— Ainda confio em você. Mas não como antes.
Ela sorriu com tristeza.
— E eu ainda acredito em você. Mesmo que não devesse.
A viagem até a Montanha Esquecida foi longa e perigosa. Ventos cortantes rasgavam o solo, e criaturas feitas de ossos e relâmpago atacaram duas vezes antes da chegada. No topo, uma fortaleza de pedra negra guardava o fragmento. E uma criatura.
Era um colosso de carne e ferro, com três rostos — um sorrindo, um chorando, um gritando. Chamava-se Ravarn, o Guardião da Fratura.
— Ele foi criado para guardar os Códices — explicou Tyros. — Mas enlouqueceu com o tempo.
Arthur enfrentou Ravarn sem hesitar. A luta durou horas. A cada golpe, o reflexo do Outro Arthur se tornava mais claro em sua mente. Ele sussurrava.
— Libere tudo. Use o fragmento por completo. Destrua, não proteja.
Mas Arthur resistia.
Com a ajuda de Varda e Soryn, conseguiram enfraquecer Ravarn. Tyros foi gravemente ferido, mas sobreviveu. Quando Ravarn caiu, o segundo fragmento ficou exposto — flutuando acima de uma escultura quebrada de Etheria.
Arthur se aproximou.
— Tem certeza? — perguntou Varda.
— Não. Mas é necessário.
Ele estendeu a mão.
E o fragmento o tocou.
Foi como ser atingido por uma tempestade interior.
Mil vozes gritaram. Memórias que não eram suas. Dores, perdas, possibilidades.
Ele caiu de joelhos, sangrando pelos olhos.
Mas resistiu.
E sobreviveu.
Quando se levantou, seus olhos estavam diferentes. Um deles agora brilhava em dourado puro — o sinal da fusão do segundo fragmento.
— Você conseguiu — disse Soryn.
Mas Arthur não respondeu. Porque, dentro da mente dele... o Outro agora falava claramente.
— Agora somos dois, Arthur. E estou aqui. Sempre.
Ao retornarem ao Templo, foram recebidos com honras. Mas algo estava diferente.
Elyra o observou de longe, como se visse um estranho.
Varda o estudava em silêncio.
E, à noite, ao encarar novamente o espelho, Arthur não viu mais apenas um reflexo.
Viu duas versões de si mesmo.
E uma delas... sorriu.
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Atualizado até capítulo 25
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