Capítulo 5 — Vozes no Espelho

O som dos sinos ecoava por toda Etheria. Três toques longos, um breve. Sinal de luto. Sinal de mudança.

Kael havia sido sepultado sob a Sala do Coração, o ponto central do Templo dos Guardiões. A cerimônia foi silenciosa. Nenhum feitiço, nenhuma música. Apenas rostos sérios e olhos fundos.

Arthur observava a pedra marcada com o nome de Kael. A runa final, que representava "guia", parecia queimar em sua mente. Ele sentia o peso da culpa, não apenas pela morte do mestre, mas pelo que estava se tornando. Algo dentro dele vibrava como um eco distante — uma batida que não era dele, uma voz que sussurrava por entre as rachaduras do seu espírito.

Elyra não compareceu ao enterro.

Naquela noite, o Conselho Restante se reuniu. Com Kael morto, restavam apenas três dos sete membros antigos: Elowen, Tyros e Irien. Varda representava o grupo como observadora, e Arthur foi convocado como portador do fragmento.

Mas o foco não estava nele.

Estava em Elyra.

Ela entrou na câmara com passos firmes. O arco nas costas, a postura reta, mas os olhos... os olhos estavam quebrados.

— Elyra de Valthor — disse Irien. — Você agiu contra as ordens do Conselho ao executar Varek sem julgamento. Tem algo a declarar?

Ela olhou diretamente para Arthur antes de falar.

— Fiz o que achei necessário. Varek era instável, perigoso. Cada segundo que respirava era uma ameaça.

— Isso não é decisão sua — disse Elowen com frieza. — Nem mesmo do portador do fragmento.

Arthur se manteve em silêncio, os punhos cerrados.

— Ela pode ter cometido um erro — disse Tyros. — Mas salvou vidas no ataque seguinte. Talvez Varek estivesse mesmo corrompido.

Irien cruzou os braços. — Talvez. Mas o problema não é o ato, é a confiança quebrada. E a confiança é o que mantém Etheria de pé.

— Concordo — disse Arthur finalmente.

Todos se viraram para ele.

— O que aconteceu com Varek foi um erro. Mas não só de Elyra. De todos nós. Confiamos em suposições. Agimos por medo. E pagamos o preço com a vida de Kael.

— Está pedindo perdão por ela? — indagou Irien.

Arthur fitou Elyra novamente. — Não. Estou dizendo que a punição dela não vai consertar nada.

Silêncio.

— Afastamento temporário das funções ativas — decretou Elowen. — E vigilância supervisionada. Ela permanece no Templo, mas não pode participar de missões.

Elyra não protestou. Apenas assentiu.

Mais tarde, Arthur a encontrou na antiga sala de treino, onde ela praticava movimentos com a espada, sozinha, sem magia. Apenas o som do metal no ar.

— Eles foram... justos? — ele perguntou.

Ela não parou de treinar. — Foram políticos. Não é a mesma coisa.

— Eu falei por você.

— Eu sei.

Houve um momento de silêncio.

— Você me odeia agora? — ela perguntou, sem encará-lo.

— Não. Mas confio menos. E isso é pior.

A lâmina dela vacilou por um instante.

Arthur se virou para sair, mas parou na porta.

— A próxima vez que mentir pra mim... vou saber antes da primeira palavra sair.

E se foi.

Na madrugada, Arthur acordou suando. Havia sonhado com o espelho novamente — mas desta vez, o reflexo falava com voz clara.

— Você sente, não sente? O templo está se esfarelando. E eles esperam que você os salve. Mas quem salva você?

Levantou-se, o peito arfando. Foi até a fonte de meditação no jardim interno. A água refletia o céu estrelado, mas algo o incomodava. Uma presença.

— Não está dormindo bem — disse Varda, sentada à sombra de uma árvore cristalina.

— Não durmo mais. Apenas descanso os olhos e luto no escuro.

Ela o observou por longos segundos.

— O reflexo falou com você, não é?

Arthur se virou, surpreso.

— Você sabia?

— Já vi isso antes. A presença do fragmento começa a criar versões alternativas de você mesmo. Possibilidades. Projeções. Às vezes... verdades que você não quer encarar.

— Ele diz que Elyra vai me trair de novo.

— E você acredita?

Arthur ficou em silêncio.

— A dúvida é uma semente perigosa — ela completou. — Se você a rega, ela vira um monstro.

No dia seguinte, uma nova urgência.

Elowen reuniu Arthur, Varda, Tyros e Soryn.

— O segundo fragmento foi localizado.

Todos se entreolharam.

— Onde? — perguntou Soryn.

— Na Montanha Esquecida. Mas não está sozinho. Uma criatura o guarda. Algo antigo... e corrompido.

Arthur sentiu uma pontada no peito. Um tremor sutil.

— Eu senti algo na noite passada — disse ele. — Como se o fragmento estivesse me chamando.

Elowen assentiu. — Está se conectando com os outros. Isso era esperado.

— Quando partimos?

— Amanhã. Ao amanhecer.

Enquanto preparava seus equipamentos, Arthur encontrou uma pequena adaga entre os pertences de Kael. Tinha o símbolo dos Guardiões gravado no cabo. Pegou-a sem pensar, como se fosse um lembrete de que os erros têm preço.

Varda surgiu em seguida.

— Você vai liderar a missão?

— Não me deram opção.

— Talvez seja hora de parar de aceitar isso.

Ele a olhou.

— Como assim?

— Você é o portador. Mas ainda age como aprendiz. Tem poder para decidir. Para contrariar. Usar ou recusar. Mas teme o que isso pode fazer com você.

Arthur considerou as palavras. E viu que eram verdade.

Antes de partir, foi até Elyra. Encontrou-a no jardim de treinamento, fitando os ventos noturnos.

— Vamos para a Montanha Esquecida — disse ele.

— Vai sozinho?

— Com Varda, Soryn e Tyros. Mas não com você.

Ela assentiu. Não reclamou. Apenas disse:

— Volte inteiro.

Arthur hesitou.

— Ainda confio em você. Mas não como antes.

Ela sorriu com tristeza.

— E eu ainda acredito em você. Mesmo que não devesse.

A viagem até a Montanha Esquecida foi longa e perigosa. Ventos cortantes rasgavam o solo, e criaturas feitas de ossos e relâmpago atacaram duas vezes antes da chegada. No topo, uma fortaleza de pedra negra guardava o fragmento. E uma criatura.

Era um colosso de carne e ferro, com três rostos — um sorrindo, um chorando, um gritando. Chamava-se Ravarn, o Guardião da Fratura.

— Ele foi criado para guardar os Códices — explicou Tyros. — Mas enlouqueceu com o tempo.

Arthur enfrentou Ravarn sem hesitar. A luta durou horas. A cada golpe, o reflexo do Outro Arthur se tornava mais claro em sua mente. Ele sussurrava.

— Libere tudo. Use o fragmento por completo. Destrua, não proteja.

Mas Arthur resistia.

Com a ajuda de Varda e Soryn, conseguiram enfraquecer Ravarn. Tyros foi gravemente ferido, mas sobreviveu. Quando Ravarn caiu, o segundo fragmento ficou exposto — flutuando acima de uma escultura quebrada de Etheria.

Arthur se aproximou.

— Tem certeza? — perguntou Varda.

— Não. Mas é necessário.

Ele estendeu a mão.

E o fragmento o tocou.

Foi como ser atingido por uma tempestade interior.

Mil vozes gritaram. Memórias que não eram suas. Dores, perdas, possibilidades.

Ele caiu de joelhos, sangrando pelos olhos.

Mas resistiu.

E sobreviveu.

Quando se levantou, seus olhos estavam diferentes. Um deles agora brilhava em dourado puro — o sinal da fusão do segundo fragmento.

— Você conseguiu — disse Soryn.

Mas Arthur não respondeu. Porque, dentro da mente dele... o Outro agora falava claramente.

— Agora somos dois, Arthur. E estou aqui. Sempre.

Ao retornarem ao Templo, foram recebidos com honras. Mas algo estava diferente.

Elyra o observou de longe, como se visse um estranho.

Varda o estudava em silêncio.

E, à noite, ao encarar novamente o espelho, Arthur não viu mais apenas um reflexo.

Viu duas versões de si mesmo.

E uma delas... sorriu.

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