Uma boa notícia em meio a dor.

    Acordei com o som suave da respiração de Angeline. Às vezes, ela fazia um pequeno chiado, como se o frio apertasse até os pulmões. Eu me levantei devagar, checando se ela estava confortável. Sua respiração era mais pesada naquela manhã, e uma leve secreção escorria pelo nariz.

Ela não tossia como outras crianças — seu corpinho não tinha força para isso. Quando algo incomodava sua garganta, era mais um gemido abafado, um esforço que me doía mais do que qualquer barulho. Peguei o pano limpo e limpei seu rostinho com cuidado, em movimentos suaves, como a fisioterapeuta ensinou. O ar frio piorava tudo, e o aquecedor não funcionava. De novo.

Passei a mão pelos olhos. Mal dormi. Entre as trocas de fraldas, a medicação e os cuidados com a alimentação dela, meu corpo parecia feito de areia prestes a desmoronar. Mas Angeline... ela era minha força. Minha flor delicada no meio do caos.

Fui até a cozinha. Não havia pão, nem leite. Só o resto do mingau de ontem. Pensei em comer, mas preferi guardar para ela. Eu já estava acostumada com o gosto da fome. Era o que menos doía.

E então o celular vibrou. A tela rachada mostrava uma mensagem que me arrepiou:

"Maria, bom dia. A Dra. Lavinia quer recebê-la hoje às 9h no escritório. Caso possa vir, avise."

Meu peito aqueceu. Um fio de esperança. Um sopro de vida.

Senti algo pulsar dentro do meu peito. Um calor. Uma esperança. Um respiro. Hoje... hoje talvez tudo mudasse.

Não pensei duas vezes. Corri para o pequeno armário e vesti minha melhor roupa — que, na prática, era só a menos gasta. Uma calça escura um pouco folgada, uma blusa de gola alta com as mangas puídas e o casaco que ganhei de uma senhora da vizinhança. Não era bonito, mas pelo menos era quente.

Arrumei o cabelo em um coque baixo, passei um protetor labial emprestado e respirei fundo. Fui até o bercinho de Angeline, que já me olhava com aqueles olhinhos tão doces… como se soubesse que algo diferente pairava no ar. Vesti sua roupa mais quentinha, prendi bem as mantas no carrinho, peguei os remédios e saí.

A rua ainda estava úmida da noite. O céu acinzentado deixava tudo mais triste. Caminhei firme, mesmo com o estômago gritando. Precisava chegar a tempo.

E foi na esquina da farmácia que vi.

Ele.

O pai da minha filha.

Com uma mulher bem vestida do lado. Duas crianças correndo em volta deles. Aparentemente felizes. Ele ria. Pegava um dos meninos no colo. E, por um segundo, olhou pra mim.

Passou por mim como se eu fosse o poste da esquina.

Sem culpa.

Sem peso.

Sem sequer abaixar os olhos.

A mulher ao lado dele me encarou de cima a baixo e virou o rosto, como se meu reflexo do outro lado da calçada sujasse a imagem perfeita deles. Olhei para mim — blusa velha, olheiras profundas, o cabelo sem brilho, as mãos marcadas de tanto carregar sacolas e curativos.

Doeu. Não vou mentir. Por um instante, pensei em voltar para casa.

Mas então olhei para ela.

Angeline.

Dormindo no carrinho, enrolada como uma flor que se recusa a murchar.

Minha filha.

Minha vida.

E foi ali que, sem ninguém notar, eu ergui a cabeça e prometi: vou vencer por você.

Continuei andando.

Com fome, com frio, com medo.

Mas com esperança.

Porque agora... eu não estava mais sozinha.

Cheguei ao prédio imponente com as mãos suadas e o coração apertado. O carrinho de Angeline fazia um barulho agudo no piso de mármore da recepção, e por um segundo pensei em voltar. Mas não voltei. Eu tinha prometido à minha filha — e a mim mesma — que não desistiria.

Fui recebida com um sorriso caloroso pela estagiária da outra vez, que me reconheceu de imediato e me conduziu até uma sala arejada, com uma janela ampla de onde se via quase toda a cidade. E então ela entrou. Lavinia Rossi.

Era linda, elegante, com aquele tipo de presença que faz qualquer um parar de falar. Mas, ao contrário do que imaginei, ela não olhou de cima. Não houve soberba. Somente... ternura.

— Você é a Maria? — perguntou, se aproximando. Eu assenti com a cabeça e, antes que qualquer palavra saísse da minha boca, fui envolvida por um abraço.

Um abraço de alguém que não me conhecia... mas me acolheu.

— Obrigada por vir — ela disse baixinho, se afastando o suficiente para olhar nos meus olhos. — E obrigada por lutar por sua filha.

Acredito que ela tenha percebido que eu não tinha comido. Talvez meu hálito denunciando que eu não comia desde o dia anterior. Talvez o jeito como segurei o carrinho, como quem protege o que tem de mais precioso, mesmo sem forças. Ela não disse nada, mas pediu com um olhar gentil que a estagiária trouxesse algo. Um lanche simples, mas cheiroso, e então Lavinia puxou a cadeira ao meu lado.

— Não quero que coma sozinha. Eu também estou com fome, é um segredo, mas estou grávida. — disse com um sorriso leve, tirando uma fruta da própria bolsa. E ali, pela primeira vez em muito tempo, eu comi sem culpa. Sem vergonha.

Ela me fez sentir humana quando minha alma gritava que eu era um lixo.

Depois, escutou tudo. Cada palavra que eu consegui pronunciar entre pausas e lágrimas. Contei sobre o casamento, as agressões, os olhares dos meus pais, a solidão no hospital, o diagnóstico da Angeline, o abandono. Ela me ouviu como se cada detalhe importasse. E, no fim, pegou minha mão e disse com firmeza:

— Nós vamos vencer. Por você. E pela Angeline.

Abri minha bolsinha de pano e tirei as notas amassadas, aquele pequeno valor que economizei com tanto sacrifício.

— Eu... sei que não é muito, mas... é tudo que tenho. Se puder me ajudar só com a audiência, eu...

— Maria — ela me interrompeu com gentileza, colocando minha mão de volta sobre o colo. — Será gratuito. Tudo. Você precisa se preocupar com a sua filha, não com honorários. Deixe isso comigo.

Não consegui conter as lágrimas. Chorei baixinho, com o rosto escondido nas mãos, enquanto sentia um calor no peito que eu não conhecia fazia tempo. Era gratidão. Era a sensação de que alguém, enfim, estava comigo nessa guerra.

E naquele instante, eu soube... algo estava mudando.

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Comments

Maria Cristina Cris

Maria Cristina Cris

Escritora é muito triste dói na alma saber que tem muitas mulheres que passa por isso e família vira as costas 😢😢😢😢

2025-04-14

4

Claudia Teixeira

Claudia Teixeira

que triste a história da Maria, infelizmente sabemos que acontece todo dia

2025-04-15

1

Raimunda Neves

Raimunda Neves

Gente que estória triste, lagrimei lendo esse capítulo, /Cry//Cry//Cry//Cry//Cry//Cry/

2025-04-17

0

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