Sonhos despedaçados.

Casei aos dezoito. Com o “homem perfeito”. Pobre como eu, mas cheio de sonhos. Trabalhador, carinhoso... dizia que eu era sua princesa. E eu, burra de amor, acreditei.

Mas os contos de fadas têm prazo de validade quando escritos com mentiras.

A primeira agressão veio dois meses depois do casamento. Uma discussão boba, uma resposta atravessada minha... e o estalo na bochecha ecoou mais alto que meu grito. Fiquei ali, paralisada, achando que tinha provocado, que talvez... tivesse merecido. Foi o que ouvi tantas vezes depois.

"Mulher obediente não apanha."

"Você deve ter feito algo."

"É o seu fardo, filha. O casamento é sagrado."

Minha própria mãe — sim, porque a minha família enterrada em uma falsa paz, religião, me disseram que a separação era pecado. Que o sofrimento purificava. Que, com paciência, ele mudaria.

Ele só mudou para pior, além das agressões, a traição, humilhações, no começo em casa, depois na rua e assim fui evitando sair, sempre quieta em casa com medo que alguém visse.

Engravidei com seis meses de casada. E pensei que aquilo seria redenção. Que a paternidade transformaria o monstro de volta no homem por quem me apaixonei. Mas Angeline veio com um diagnóstico que ele chamou de maldição. Paralisia cerebral. Três palavras que destruíram as poucas migalhas de esperança que me restavam.

"Ela é amaldiçoada"

Ele surtou. Me chamou de inútil. Me disse que Deus estava me castigando. E ali, com a barriga crescendo e o medo aumentando, eu percebi: eu não lembrava mais quantas vezes ele me bateu. Só sabia contar às vezes em que não dormi chorando.

Angeline nasceu. Um anjo frágil, puro, tão linda... e três meses depois, ele foi embora. Disse que não suportava ver uma filha "defeituosa", e uma mulher que mais parecia um trapo. Jogou a aliança no chão, cuspiu perto dos meus pés e saiu.

E eu?

Eu respirei aliviada.

Sim, sem um centavo. Sem apoio. Com um bebê que exigia tudo de mim. Mas, pela primeira vez em quase um ano e meio, o silêncio da casa não me dava medo. Era libertador.

Naquele momento, sozinha, com Angeline no colo, eu jurei que ninguém mais pisaria na minha alma com botas sujas. Eu não sabia como. Mas ia lutar. E vencer.

Nem que fosse rastejando.

As rodas do carrinho de Angeline rangiam a cada buraco da calçada. Era como se a cidade fizesse questão de lembrar que ela não foi feita para gente como eu. Mas eu continuava. Um passo de cada vez. Um empurrão a mais. Com o sol forte batendo no meu rosto, o suor escorrendo pelas costas, e aquele peso constante no peito que já não me doía como antes. Virou parte de mim.

Vi minha mãe de longe. Cabelos presos num coque simples, a bolsa de tecido no ombro, os mesmos olhos que um dia me diziam “vai ficar tudo bem”. Ela me viu também. Por um segundo. Eu senti. Porque ela desviou o olhar como se olhar para mim fosse pecado. Como se eu fosse a vergonha que ela nunca quis admitir que pariu, para eles ter um filho com uma deficiência foi maldição, além do divórcio que já era um terrível pecado.

Meu pai estava alguns passos à frente, como sempre. Caminhando com as mãos para trás, postura ereta, altivo, impenetrável. Ele não olhou. Nunca olhava. Ele era o tipo de homem que se orgulhava de seguir os preceitos da fé, mesmo que isso significasse abandonar a filha por ter “fracassado” no casamento.

Tudo bem, eu disse a mim mesma. Tudo bem.

Continuei andando. Entrei no prédio das autoridades locais. Subi as escadas carregando o carrinho nos braços porque, claro, o elevador estava quebrado — de novo. Esperei quase três horas para ser atendida. Quando finalmente sentei diante da assistente social, meu corpo já estava exausto, mas minha voz saiu firme.

Expliquei tudo. A situação de Angeline. A ausência do pai. Os medicamentos, os exames, as terapias que não dava pra pagar. E ela me olhou com um certo pesar que eu já conhecia — aquele olhar que diz “temos tantos casos parecidos”, mas, por sorte ou misericórdia, conseguiu aprovar uma pequena ajuda. O suficiente para comprar fraldas, alguns remédios e um leite especial.

Saí com Angeline nos braços e os papéis na mão. Um misto de alívio e vergonha. A cidade seguia seu ritmo impiedoso lá fora.

E foi então que eu vi.

Um prédio de vidro espelhado, fachada elegante, vasos de flores impecavelmente alinhados. E ali, uma placa dourada com letras refinadas:

LAVÍNIA ROSSI – A MAIS NOVA ADVOGADA DO GRUPO ROSSI X ROMANO.

Justiça também é para quem precisa.

Aquilo me travou no lugar. Meu reflexo no vidro era quase uma piada: rosto cansado, cabelo preso às pressas, camiseta lavada à mão e as olheiras mais profundas do que minha fé. Mas havia algo naquela placa... naquela promessa silenciosa. Algo que me fez segurar Angeline com mais força.

O não eu já tinha. E a dor também.

Mas ali, pela primeira vez em muito tempo, eu senti uma faísca. E às vezes... uma faísca é tudo o que uma mulher em ruínas precisa para tentar se reconstruir.

Empurrei a porta.

E entrei.

O saguão era amplo, iluminado por luz natural, com um leve aroma de café e lavanda no ar. Pessoas esperavam sentadas em cadeiras elegantes, todas com olhares cansados, histórias pesadas e as mãos apertadas no colo. Eu me juntei a elas, sentindo o peso da minha vida sobre os ombros, enquanto Angeline dormia no carrinho ao meu lado, como um anjo que descansava depois de mais uma luta.

Chamaram meu nome.

Fui conduzida até uma sala menor, com uma mesa de madeira clara e uma jovem atrás dela — cabelos presos em um coque frouxo, um crachá com o nome Isadora pendurado no peito. Ela parecia nervosa, mas sorria com uma ternura que me deu algum conforto.

— Pode se sentar, dona Maria — disse ela, com gentileza. — Estamos fazendo triagens para encaminhar casos que a doutora Lavinia poderá atender pessoalmente. São muitos, então estamos ouvindo todos com muito carinho, tá bom?

Assenti, ajeitando a blusa simples e tentando não parecer menor do que já me sentia.

— Pode me contar um pouco do seu caso?

Respirei fundo. A voz quase falhou no começo, mas quando comecei a falar... as palavras vieram como uma avalanche. Falei do casamento. Da violência. Do abandono. Do diagnóstico da minha filha. Da solidão. Do medo. Do alívio de vê-lo ir embora. Da pequena ajuda que consegui naquele dia, e do quão grande ela foi para mim.

Isadora me escutou em silêncio. Os olhos marejados, o coração visível no olhar.

— Meu Deus… — sussurrou ela ao final. — Você é tão forte… me desculpa, é que… às vezes a gente ouve tanto sofrimento aqui, mas o seu... tocou diferente.

Eu sorri, tímida. Pela primeira vez em muito tempo, não era um sorriso triste.

— A doutora Lavinia vai querer ver isso. Ela é maravilhosa, sério… um coração raro. Ela tem um carinho especial por causas de família. Luta com unhas e dentes, essa família se envolve de verdade. Eu vou passar seu caso diretamente para ela, pessoalmente.

Senti meu peito aquecer.

— Obrigada — murmurei, emocionada. — De verdade. O que você está me dizendo… já é mais do que muita gente fez por mim, a audiencia é em duas semanas e se não achar um advogado vou perder minha única chance.

Ela sorriu com doçura.

— Você merece ser ouvida. Agora me passa um telefone para contato, por favor?

Peguei um papel da bolsa e anotei o número. Meu único celular, antigo, com a tela trincada, mas ainda funcionando como um fio de esperança.

— Aqui. Pode ligar a qualquer hora — disse, com a voz mais firme. — Vou aguardar. Ansiosa.

Isadora segurou o papel como se fosse uma promessa.

E eu saí dali... sentindo que, talvez, só talvez, alguma coisa estivesse prestes a mudar.

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Comments

Camila games 11

Camila games 11

por favor autora nao demora p atualizar, já to morrendo de curiosidade!!!!!😁🙏

2025-04-14

3

Leni Rocha

Leni Rocha

Como agente faz pra conter as lágrimas porque o metrô tá cheio essa hora da manhã... Ufaaaa./Cry/

2025-04-15

1

Luciana Silva Dias

Luciana Silva Dias

ai ai ja estou chorando aqui que dó e raiva dessa família

2025-04-17

1

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