Isso não ficará assim

O quarto era silencioso, exceto pelos sons regulares do monitor cardíaco. A luz amarelada da luminária de parede dava um ar calmo àquele cenário devastado. O caos estava lá, presente, em cada roxo na pele da minha irmã, no curativo em sua testa que cobria os dez pontos, na palidez exausta do seu corpo. Mas agora… estava contido.

Meus olhos, no entanto, pararam em Eva.

Ela estava ali, sentada com Amélia dormindo em seu colo, uma mão acariciando os fios macios da menina, e o olhar sereno — embora eu soubesse que por dentro ela estava tão em pedaços quanto nós.

Dilan entrou no quarto com uma sacola nas mãos. Sem alarde, estendeu um sanduíche e uma garrafinha de suco pra ela.

— Você precisa comer alguma coisa — disse ele, baixo.

Eva sorriu. Aquele sorriso... Deus. Era gentil. Suave. Quase tímido. E ainda assim, tão firme. Tão forte.

— Obrigada — sussurrou, como se aquele gesto fosse muito mais do que comida.

Ela era a mistura mais contraditória e perfeita que eu já tinha visto. Linda, frágil e inquebrável.

Meu olhar voltou para minha irmã. O médico tinha acabado de sair. Disse que ela estava fora de perigo físico, mas que… as marcas no rosto eram só a superfície.

A mente dela.

O psicológico.

Deveriam ser cuidados. Era isso que me tirava o ar.

Porque era frequente. Aquilo tudo. Os hematomas nas costelas, o roxo antigo sob os braços. Ela apenas… sobreviveu por muito tempo. E agora, talvez pela primeira vez, fosse começar a viver.

Amélia se mexeu no colo de Eva, resmungando baixinho. Quando abriu os olhos e me viu, esticou os bracinhos sonolentos.

— Titio…

Me levantei na hora, e Eva gentilmente a entregou para mim. Eu a segurei com cuidado, e ela apoiou a cabeça no meu ombro, soltando um suspiro cansado. Dilan se aproximou e passou a mão nos cabelos dela.

— Você foi muito corajosa hoje, princesa — ele disse.

— Você salvou a mamãe, sabia? — completei, olhando nos olhos grandes e escuros dela.

Ela não disse nada. Só me abraçou mais forte.

Minutos depois, Scarletty abriu os olhos. E chorou.

Muito.

Dilan e eu nos aproximamos. Ela se assustou um pouco ao ver Eva ali, adormecida em uma poltrona.

— Quem é ela…? — sussurrou com a voz rouca.

Olhei para Eva, dormindo com os ombros encolhidos pelo frio da noite. E sorri com um peso no peito.

— É a pessoa que salvou minha humanidade.

— Ela parece uma princesa… — Amélia murmurou, sonolenta, ainda no meu colo.

— É… — concordei. — E vai voltar com a gente pra casa.

Pouco depois, Eva acordou com os olhos um pouco assustados. Assim que Scarletty se ajeitou na cama, ela se ofereceu com um carinho que me fez engolir em seco:

— Se quiser, posso te ajudar com um banho. Com calma… só se quiser.

Minha irmã sorriu. Um sorriso quebrado, mas verdadeiro.

— Eu quero, sim. Obrigada.

Mas a calmaria… não durou.

A porta do quarto foi escancarada com força, batendo na parede e fazendo todos nós estremecermos.

Entraram minha mãe e meu pai. Os dois com os olhos ardendo em fúria, como se fossem donos da verdade, como se tudo aquilo fosse um absurdo e nós, os vilões da história.

Minha mãe olhou para Eva como se ela fosse lixo.

Meu pai me encarou como se quisesse me matar.

— O que vocês pensam que estão fazendo? — minha mãe disparou, com o tom venenoso de sempre.

A tensão no ar virou uma lâmina.

E eu soube que a guerra agora era declarada.

Dessa vez, a voz que ecoou pelo quarto não foi a minha;

Nem de Dilan;

Nem de Eva;

Foi Scarletty.

Ela se ergueu na cama com os olhos arregalados, o rosto inchado pela dor e pelas lágrimas, mas a voz… forte, como se cada sílaba viesse carregada de anos de silêncios engolidos.

— CHEGA! — ela gritou. — EU APANHEI DEMAIS!

O pai e a mãe pararam no meio do passo, surpresos com a explosão da filha. Mas ela não parou.

— Eu aguentei por vergonha, por medo, por vocês! Aguentei calada porque me diziam que ele era “um bom homem”, que “tinha um nome a zelar”! — ela gritou com a voz falhando. — Mas ele quase me matou, quase matou a minha filha… E vocês ainda estão aqui fingindo que isso é NORMAL?

— Você está exagerando — nossa mãe rebateu com desdém, ajeitando os ombros como se tivesse vindo de um jantar chique. — Otto é um homem de negócios, importante, deve ter ficado nervoso. Nenhuma mulher que se preze expõe a própria família desse jeito!

— Você está defendendo ele? — Scarletty gritou, as lágrimas voltando com força. — Ele me chutou enquanto eu caía no chão! Fez minha filha se esconder em um armário com medo de morrer, e se Ethan não viesse eu teria morrido.

Dilan se aproximou, o punho cerrado, mas respeitou o momento da irmã. Sabia que ela precisava dizer tudo.

Nosso pai então falou, com a voz grave, orgulhosa e inflexível:

— Isso é uma vergonha. Um divórcio? Absurdo. Você vai destruir nossa reputação. Se for adiante com isso, está deserdada.

O silêncio que seguiu foi sufocante.

Scarletty não hesitou.

Não chorou.

Apenas… riu. Uma risada curta, amarga, mas livre.

— Obrigada, pai. De verdade.

— Está debochando de mim, garota? — ele resmungou, a testa franzida.

Ela olhou para ele com uma dor antiga nos olhos.

— Obrigada… por finalmente me libertar dessa família podre. Porque agora eu não sou mais sua filha. E acabou.

A mãe arregalou os olhos.

— Não ouse falar assim com seu pai, sua ingrata!

Mas fui eu quem deu um passo à frente dessa vez e junto com Dilan me coloquei entre eles:

— Ela não está sozinha. Nem agora, nem nunca mais. E se vocês ousarem cruzar o caminho dela ou da Amélia de novo… não vão ter onde se esconder do que eu sou capaz de fazer.

Dilan assentiu ao meu lado

Eva, do outro canto, abraçava Amélia com delicadeza mostrando a janela.

E, naquele instante, ficou claro quem era a verdadeira família de Scarletty.

Aquela que protegia, que amava e que não cobrava silêncio em troca de sobrevivência.

O império dos poderosos…

Estava ruindo.

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Comments

Eliana Esguerçoni

Eliana Esguerçoni

Nossa que família podre , e pensar que existe pessoas assim é triste 😞

2025-04-08

2

Matilde Nacimento

Matilde Nacimento

Nossa por conta de status que deixa a filha apanhar que triste

2025-04-08

0

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