Mamãe ta ferida.

A tarde passou como se o tempo tivesse, por algum milagre, desacelerado. Eu e Eva ficamos ali, na minha cobertura, conversando como se o mundo lá fora não importasse. Ela falava com calma, mas com uma força por trás das palavras que me fazia querer ouvir mais, saber mais, entender cada nuance da mulher que estava ali diante de mim.

Mas era impossível não voltar à cena na sala… Eva, com o cabelo ainda molhado, de roupão, se colocando entre Camille e Carla. A firmeza no olhar, a coragem. Como se dissesse: ninguém toca em quem é meu. Ela nem percebeu, mas foi isso que ela fez. Ela protegeu.

E eu? Me vi livre. Pela primeira vez, realmente livre do peso dos Carter's Associados. Dos jogos sujos. Do controle podre do meu pai. Ignorei cada ligação dele. Cada mensagem da minha mãe. Que se danem os dois. Nada mais me prendia.

Conversamos sobre tudo. Sobre nada. Sobre dor e sobre recomeços. Eu perguntei se ela nunca quis namorar, e ela soltou aquele sorrisinho tímido.

— A minha avó morreu há pouco tempo — ela começou, a voz ficando mais baixa. — Eu passei os últimos cinco anos cuidando dela. E… nunca achei o cara certo. Nunca sobrou tempo.

Assenti, com um meio sorriso.

— E se o cara certo estiver bem aqui, sentado ao seu lado?

Ela arqueou a sobrancelha, provocando:

— Aí ele é bem assanhado.

Eu ri. Um riso verdadeiro, quase adolescente, diferente de mim.

Meu celular vibrava sem parar na mesa. Mais uma vez. E mais uma.

— Você devia atender — ela disse, ainda sorrindo. — Fugir dos problemas não faz eles sumirem.

Bufei, mas estiquei a mão e peguei o aparelho. Já esperava ver “Pai” ou “Mãe” na tela, mas o que apareceu me gelou o sangue:

Amélia. Minha sobrinha tinha quatro anos e no seu celular tinha meu número, do tio Dilan, da mamãe e só, ela não ligava, mandava fotos, músicas de desenhos, compartilhava conosco sua alegria, éramos tios babões da nossa menina.

Atendi no mesmo segundo e coloquei no viva-voz.

— Amelinha?

— T-tio Ethan? — a vozinha infantil do outro lado da linha estava embargada, quase sem fôlego. — A mamãe… tá machucada.

Tudo dentro de mim parou.

— Como assim, meu amor? O que aconteceu? — falei levantando já e Eva no mesmo segundo levantou.

— O papai… papai bateu nela. De novo. Ela tá sangrando e chorando muito. Eu tô escondida. Tô no armário do banheiro… — ela soluçou baixinho. — Tô com medo.

Me aprontei num salto, a cadeira arrastando com força no chão. O coração batia como se quisesse sair pela garganta.

— Shhh, meu anjo. Escuta o titio. Não faz barulho, tá bem? Fica aí, quietinha, e não sai por nada. Eu tô indo. O titio vai te tirar daí. Eu prometo.

Eva já estava com os olhos arregalados.

— Uma criança? — ela perguntou, a voz tomada por espanto. — Ele… ele bateu na esposa dele com a filha em casa?

Assenti, sem conseguir falar nada.

— Eu vou com você. — ela disse firme, decidida. — Uma mulher tá ferida e uma criança com medo. Você vai precisar de mim.

Ela... Ela nem hesitou. Engoliu a própria dor. Esqueceu que estava tentando se curar de um incêndio literal e emocional, e se jogou no incêndio de outra pessoa. Como se já tivesse feito isso muitas vezes antes.

Sorri, apesar do caos que me consumia por dentro. Ela era incrível.

— Vamos, então.

A noite já estava escura quando o carro arrancou em alta velocidade pelas avenidas da cidade. O silêncio era cortado apenas pela buzina ou o som do motor. Meu punho estava cerrado no volante, a mandíbula travada. Ao meu lado, Eva estava séria, o olhar fixo na frente.

— Ela tem quantos anos? — perguntou, baixo.

— Quatro. A voz dela… meu Deus, Eva… ela parecia tão assustada.

— A gente vai tirá-la de lá. E tirar a mãe dela também, se for preciso. — respondeu como quem traçava um plano de guerra.

Quando virei na última rua antes do apartamento da minha irmã, senti o gosto metálico da raiva subir na garganta. Lembranças do passado, dos gritos da minha mãe, das portas batendo, das mentiras, dos olhares fingindo que nada acontecia, eles moravam no mesmo edifício e ali para mim só tinha minha irmã e Amélia de bom.

Não terá mais, minha irmã vai se libertar assim como eu.

Estacionei o carro com violência.  Estava todo apagado, como se tentassem esconder os horrores lá dentro.

— Fica atrás de mim. — disse a Eva. — Mas se a coisa sair do controle, corre para o carro.

— Não vou deixar uma criança para trás, Ethan. Nem uma mulher machucada.

Assenti. Ela era de verdade.

A porta estava aberta, Otto não estava ali, mas eu com certeza me acertaria com aquele maldito.

Nada na sala de estar.

— AMÉLIA! — gritei. — É o titio! Eu tô aqui!

De dentro, um barulho. Um baque. Depois, um choro sufocado.

Eva e eu nos entreolhamos.

Sem pensar, dei um passo para trás e arrombei a porta com o ombro. O som da madeira cedendo ecoou pela casa escura.

Entramos. O lugar cheirava a sangue, bebida e covardia, o lavabo da sala de jantar.

— AMÉLIA?

— Aqui! — a vozinha dela veio de dentro do banheiro.

Eva correu antes de mim, abrindo a porta com cuidado. Amélia estava encolhida no armário, os olhos inchados de tanto chorar.

— Shhh, meu amor, tá tudo bem agora… — Eva sussurrou, puxando a menina com delicadeza. — O titio tá aqui. Eu tô aqui.

Abracei minha sobrinha agarrado ao corpo de Eva, sentindo o corpozinho dela tremer.

E então vi minha irmã, caída no chão da sala, com o rosto inchado e um corte profundo na testa.

O sangue congelou nas minhas veias.

— Papai ainda tá aqui? — perguntei.

Ela assentiu com dificuldade, os olhos se enchendo de lágrimas.

— Ele foi pegar a arma… disse que ia acabar com tudo de uma vez.

Eva puxou Amélia com firmeza.

— Vamos tirá-las daqui. Agora.

E naquele instante, eu soube: essa guerra tinha acabado de começar.

E se ele ousasse encostar em mais um fio de cabelo delas…

… ia conhecer a pior versão de mim.

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Comments

Renata

Renata

miserável .. tem que sofre ..pior e que ela só tem o irmão noa pode contar com o pai e né a mãe

2025-04-08

1

Iracema Vianna

Iracema Vianna

Covarde esse cafajeste e ela é manipulada pelos pais fuleiros

2025-04-08

1

Matilde Nacimento

Matilde Nacimento

homem covarde tem que dar uma surra dele 😡

2025-04-08

0

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