O celular vibrou mais uma vez. A tela acendeu. Mais uma mensagem. Mais uma ameaça.
Minhas mãos tremiam só de olhar, mas eu já nem lia. Era como se as palavras dançassem diante dos meus olhos, cravando garras invisíveis em minha mente, me sufocando.
Levantei antes mesmo do sol nascer. A casa estava em silêncio — aquele silêncio sagrado de um domingo ainda adormecido.
Calcei um tênis qualquer, coloquei a primeira roupa que vi e, com a bolsa no ombro, desci as escadas como quem foge de si mesma.
Dentro do elevador, respirei fundo. Não fazia ideia de para onde ir... até que meu corpo, mais do que minha cabeça, decidiu por mim.
A confeitaria.
Meu lugar seguro. Meu pedaço de mundo.
Mesmo de portas fechadas, era ali que eu me sentia viva.
Destranquei a porta, entrei em silêncio e deixei a luz natural do início da manhã invadir o ambiente.
O cheiro adormecido da farinha, do açúcar e do café me recebeu como um abraço antigo.
Caminhei até a cozinha. A bancada de mármore frio me encarava, limpa, vazia. Um convite.
Precisava criar algo.
Não para vender.
Mas para respirar.
Algo forte. Intenso. Como os sentimentos que eu não conseguia mais guardar.
Fechei os olhos.
Deixei que minha angústia guiasse meus dedos.
Puxei o chocolate amargo — 70% cacau. Quente, intenso, amargo na medida certa... como os últimos dias.
Derreti-o lentamente em banho-maria, sentindo o cheiro se espalhar. Em seguida, separei um pouco de creme de leite fresco e licor de amarula — queria algo cremoso, com um toque sensual. Afrodisíaco.
Piquei morangos bem maduros e polvilhei açúcar mascavo sobre eles. Levei ao fogo com um toque de canela, cravo e uma pitada ousada de pimenta caiena.
Sim, pimenta.
A ardência no fim da língua.
O aviso silencioso de que ali havia perigo... como Ethan, seria a sobremesa que me lembraria dele mesmo em segredo.
Quando os morangos caramelizados estavam prontos, despejei a mistura no fundo de taças de vidro. Por cima, coloquei uma generosa camada da ganache de chocolate com amarula.
Ainda não era suficiente.
Precisava de mais textura, mais ousadia.
Triturei castanhas-de-caju caramelizadas com flor de sal — o crocante salgado que contrasta com o doce, o que desperta.
Finalizei com raspas de laranja-sanguínea e um fio de mel com pimenta-rosa, que deixei descansar por semanas num potinho escondido no fundo da despensa.
Observei a taça pronta sob a luz suave da manhã.
Era bonita, sim. Mas era mais que isso.
Era uma confissão.
De desejo, de dor, de força.
Levei uma colher à boca. O sabor explodiu: quente, doce, picante, salgado, ácido.
Um turbilhão.
Exatamente como eu.
Sorri sozinha, ali na cozinha vazia.
Talvez não pudesse calar o medo.
Mas podia temperá-lo.
E naquele domingo, isso já seria o suficiente.
A colher escorregou da minha mão e caiu no fundo da taça com um som abafado. Sorri. O sabor ainda dançava na minha língua e aquecia meu peito como um segredo bem guardado. Pela primeira vez em dias, senti orgulho. Aquela criação… era um pedaço meu. Um pedaço real.
Foi quando ouvi o som insistente vindo da minha bolsa.
Meu celular.
Pisquei, surpresa.
Peguei o aparelho e a tela acendeu com dezenas de chamadas perdidas e notificações. Todas da Angela.
Suspirei antes de atender. Já sabia que vinha bronca.
— Eva! Pelo amor de Deus, onde você tá? — A voz dela veio alta, aliviada e furiosa ao mesmo tempo.
— Tô na confeitaria — respondi, tentando amenizar o tom. — Calma, não briga comigo. Eu só… precisava de um tempo. Eu criei uma coisa linda, Angela, você precisava ver…
— Tá escurecendo, Eva! A gente tá te procurando desde de manhã! Estivemos aí, você não atendeu. Você não pode simplesmente sumir assim!
— Eu já tô saindo… Realmente não vi vocês chamarem — comecei a dizer, mas parei. Franzi o cenho. — Espera…
Algo não estava certo. Um cheiro forte… um calor estranho.
— Que barulho foi esse? — Angela perguntou do outro lado da linha.
— Tem fumaça… — sussurrei, me erguendo devagar. — Tá vindo da confeitaria.
— Fumaça? De onde, Eva?
— Tô na cozinha… com a porta fechada — falei, já sentindo a garganta arranhar.
Abri a porta e uma onda densa de fumaça invadiu meu rosto. Tosses escaparam com violência do meu peito.
— Tem fogo! — gritei. — Fogo, Angela!
— SAI DAÍ! EU VOU PEDIR AJUDA AGORA! EVA, ME ESCUTA!
Mas a ligação se perdeu no meio do barulho, do calor, da fumaça sufocante. O celular escorregou da minha mão e caiu no chão. Me abaixei tentando pegá-lo, mas já não conseguia enxergar direito.
Desesperada, procurei a saída, tateando com os olhos ardendo, o coração disparado. Mas antes… corri até a prateleira, peguei o meu livro de receitas. Aquele caderno velho com a capa de tecido florido. Tudo que eu tinha, toda minha história, tudo que eu era estava ali.
A fumaça era espessa. Tossi, tropecei em algo e caí de joelhos, batendo contra o chão duro. Meus braços protegiam o livro como se fossem escudos. Estava tonta. A cabeça girava.
Era isso?
Ali, no meio do fogo, eu ia desaparecer? Antes tivesse vendido, isso deve ser coisa deles, essa gente que coloca o dinheiro acima de tudo, agora morrerei em meio as cinzas que sobrariam da minha velha confeitaria.
Fechei os olhos…
Mas então — um barulho.
Passos. Fortes. Determinados.
Braços me envolveram, firmes e quentes, quem será?
Senti meu corpo ser erguido e o cheiro me dominou, como se eu fosse leve, como se o mundo ao redor não estivesse desmoronando.
Um suspiro escapou dos meus lábios, entre o medo e o alívio.
Alguém me tirava do meio do fogo.
E, mesmo sem ver… só o sentindo sabia quem era.
Meu coração sabia exatamente quem estava mais uma vez me salvando e dessa vez eu agradeceria da forma correta.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
Iracema Vianna
Autora tem que dar um fim nesse cafajeste inescrupuloso, esse enviado do demônio
O Ethan tem que dar um fim nele
2025-04-05
2
Matilde Nacimento
autora voltar aqui e postar mais capítulos pra nós pq estou ansiosa pra os próximos capítulos 👏👏👏
2025-04-05
2
Michele Bonfim
Hummm agora ela vai agradecer de forma correta ....que beleza
2025-04-05
1