Não se pode comprar tudo.

A confeitaria era pequena, mas era minha.

Minha e da minha avó.

Cada pedaço daquele lugar era feito de memórias. O cheiro de baunilha no ar, o calor do forno, as receitas rabiscadas em cadernos antigos com letras tremidas.

Não era só uma loja. Era um legado.

Minha infância foi marcada pela perda. Meus pais se foram cedo demais, e se não fosse minha avó, eu teria me afogado no luto. Ela me criou com amor e me ensinou que um lar não era sobre paredes, mas sobre as pessoas que o preenchiam.

E depois que um empresário ganancioso tirou as terras do meu avô, fazendo-o morrer de desgosto, minha avó se recusou a nos deixar afundar na tristeza.

Juntas, compramos essa pequena salinha. Com esforço, suor e um sonho.

Agora, anos depois, tudo ao redor havia mudado. A rua simples virou um amontoado de prédios comerciais, o barulho de máquinas de construção tomava conta das manhãs, e o cheiro doce dos bolos se misturava ao cheiro de concreto e fumaça de carros de luxo.

Mas eu não mudaria.

Não venderia.

Porque não seria mais o nosso sonho se estivesse em outro lugar.

E Ethan Carter podia enfiar a fortuna dele no próprio ego inflado.

Ele apareceu na minha porta como se já esperasse um "sim". Como se minha recusa fosse uma piada, uma distração momentânea no dia dele.

Alto, arrogante e vestindo um terno que provavelmente custava mais do que minha confeitaria faturava em um mês, ele cruzou a porta com a confiança de quem nunca soube o que é ouvir um “não”.

Só que eu não estava disposta a me curvar.

— Se veio comprar um doce, fique à vontade. Se veio falar sobre minha loja de novo, pode dar meia-volta.

Ele sorriu, como se achasse aquilo divertido.

— Eu nunca vou embora sem conseguir o que quero, Eva.

A prepotência escorria da voz dele como veneno. Como se tudo já fosse dele e eu só estivesse adiando o inevitável.

Mas ele estava errado.

Ethan Carter podia comprar prédios, empresas e até políticos, mas não me compraria.

E no final das contas, talvez eu fosse a primeira coisa que ele não pudesse ter.

E estava disposta a ensinar a ele como era perder.

O dia havia sido longo.

Depois de horas misturando massas, assando bolos e atendendo clientes, finalmente apaguei as luzes da confeitaria e prendi o avental na cintura. O cheiro doce de baunilha e açúcar ainda grudava em minha pele quando puxei a caixa branca sobre o balcão.

O bolo de aniversário de Angela estava pronto.

Ela era minha melhor amiga desde o colégio, minha irmã de coração. E hoje, ela e Matheus, seu namorado, fariam um jantar no apartamento deles para comemorar mais um ano de vida dela.

Eu provavelmente dormiria por lá. Não gostava de andar sozinha à noite, e o bairro onde moro não é dos mais seguros.

Mas ao sair para a rua, senti um arrepio na nuca.

O carro preto ainda estava ali.

Parado do outro lado da rua, vidros escuros, impenetráveis. O mesmo carro que estava estacionado ali quando fechei mais cedo para almoçar. O mesmo que vi de relance ao longo do dia, sem nunca ver quem estava dentro.

Meu estômago se revirou.

Nova York era cheia de carros assim, homens de negócios, motoristas esperando patrões, mas algo nele me incomodava. Uma presença invisível, mas pesada.

Agarrei a caixa de bolo com mais força e fui até minha bicicleta encostada no poste. Minhas mãos suavam enquanto destravava a corrente, como se a qualquer momento a porta daquele carro fosse se abrir.

Mas não abriu.

O motor roncava baixinho, ligado.

Respirei fundo. Talvez fosse só paranoia.

Subi na bicicleta e empurrei os pedais com força, tentando afastar o medo bobo.

Eu não ia ficar ali para descobrir.

⋅•⋅⊰⋅⊰⋅⊰⋅•⋅

Atravessar as ruas de Nova York à noite de bicicleta não era exatamente a cena mais segura do mundo, mas eu já estava acostumada. Em poucos minutos, cheguei ao prédio de Angela.

Matheus atendeu a porta e sorriu ao me ver.

— Achei que não vinha mais.

— Fiquei até tarde fechando a loja — forcei um sorriso, ainda sentindo o peso do olhar invisível do lado de fora. — Felizmente trouxe o bolo.

— Isso é o que importa! — Ela apareceu atrás dele, os olhos brilhando. — Eu sabia que podia contar com você.

Angela me puxou para dentro, e o calor do apartamento me envolveu de imediato.

No sofá, Lucas, o melhor amigo de Matheus, me cumprimentou com um aceno preguiçoso enquanto mexia no celular.

— Ei, Eva.

— Oi Lucas

A mesa estava repleta de amigos e conversas animadas. Angela ria alto enquanto Matheus passava o braço ao redor da sua cintura, puxando-a para um beijo rápido. Lucas, do outro lado, bebia direto da garrafa e lançava comentários sarcásticos, arrancando risadas de todos.

O bolo, centro das atenções, estava perfeitamente decorado com creme de chocolate e morangos frescos. Minha avó teria se orgulhado.

— Um brinde à aniversariante! — Matheus ergueu a taça.

Todos levantamos as nossas, brindando à vida, ao amor e, no meu caso, à teimosia.

O tradicional “Parabéns” ecoou no pequeno apartamento. Angela fechou os olhos, fez um pedido e soprou as velas com um sorriso satisfeito.

O clima era acolhedor, mas meu coração ainda carregava o peso do carro parado na rua.

Depois de muita conversa e comida, Angela e eu nos afastamos para a varanda. A brisa noturna trazia o cheiro da cidade misturado com o aroma doce do bolo que ainda pairava no ar.

— Então… — Angela se virou para mim, apoiando-se no parapeito. — Você tem certeza de que não quer vender?

Soltei um suspiro leve, já esperando a pergunta.

— Angela…

— Olha, eu entendo a parte emocional, de verdade — ela ergueu as mãos, como se quisesse evitar uma discussão. — Mas um milhão de dólares, Eva? Você sabe o que poderia fazer com isso?

Antes que eu pudesse responder, um movimento na rua chamou minha atenção.

O carro preto.

De novo.

Dessa vez, não apenas passou lentamente pela rua, mas o vidro abaixou.

E não era Ethan Carter atrás do volante.

O homem tinha feições duras, uma barba rala e olhos analíticos. Ele não sorriu, não acenou, apenas olhou diretamente para mim antes de o carro desaparecer na esquina.

Meu estômago revirou.

Não era um perseguidor comum.

Era alguém enviado por Ethan?

— Eva? — Angela chamou minha atenção, vendo minha expressão tensa.

— Ele não vai desistir — murmurei.

— O comprador?

Assenti.

Angela suspirou, cruzando os braços.

— Você precisa tomar cuidado. De verdade. Esses homens de negócios não aceitam bem um não, e além dele tem outro grande investidor bem interessado, meu pai falou que você não devia vender para ele, mas não sei o nome.

— Eu sei, não vou vender para ninguém.

— Mas… — Ela hesitou e mordeu o lábio. — Eu ainda não consigo acreditar que você recusou um milhão de dólares.

Ri baixinho, apesar da tensão.

— E eu ainda não consigo acreditar que você achou que eu aceitaria.

Angela revirou os olhos, mas sorriu.

— Seu coração sempre fala mais alto, não é?

— Sempre.

— Mesmo que isso signifique continuar sem uma casa própria?

— Mesmo assim.

Ela soltou uma risada leve e me abraçou de lado.

— Então espero que sua teimosia te leve a algum lugar incrível, Eva.

Olhei para o céu, deixando o vento frio da cidade bagunçar meus cabelos.

— Já me levou. A Doce Tentação não é só um lugar. É o meu lar.

E por mais que Ethan Carter tentasse, ele nunca poderia comprá-lo.

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Comments

Renata

Renata

quem será este outro empresário que quer comprar a loja dela

2025-04-04

2

Maria Helena Macedo e Silva

Maria Helena Macedo e Silva

Clara é outra colega que estava no aniversário da Ângela ou foi uma troca de nomes?🤔
sentimentos e lembranças não tem preço mas quem valoriza🤝😏💝💖

2025-04-11

0

Michele Bonfim

Michele Bonfim

A.teimosia dela já trouxe o verdadeiro amor kkkk, só que ambos ainda não sabe kkk

2025-04-03

2

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