A noite cai como um manto de veludo sobre o Castelo Abreu, e as luzes douradas da grande sala de jantar iluminam as sombras que dançam nas paredes de pedra. Sentada à longa mesa, sou apenas uma silhueta solitária diante de um jantar intocado. O silêncio se espalha pelo cômodo como um velho conhecido, pesado e íntimo, preenchido apenas pelo estalar da lareira acesa ao fundo.
A comida diante de mim esfria sem que eu tenha tocado nela. Meu apetite morreu no tribunal esta tarde, junto com a esperança de uma resposta imediata. Laila ainda não está nos meus braços e nem de baixo do mesmo teto que eu.
Meu celular vibra sobre a mesa, a tela se acendendo com um nome que me faz sorrir de canto.
Imperatriz.
Apenas uma pessoa a chamo assim.
Atendo.
— Oi, Naya.
— Minha mana, por favor, não me venha com esse tom tranquilo.
Rio, mas é uma risada vazia.
— Está tudo bem, Naya.
— Suraya… — A voz dela se torna suave, mas firme. — Não disfarça para a rainha do disfarce. Eu te conheço melhor do que ninguém. Nada está bem para você agora.
Respiro fundo, sentindo o peso da verdade em suas palavras. Com Naya, nunca precisei fingir. Minha irmã do meio, minha confidente, a que nunca me abandonou. Muitos à julgam, só eu eu sei o preço que ela teve que pagar por mim.
— O tribunal foi um inferno, como esperado. Esther está jogando sujo. E Laila… — minha voz falha.
— Ela hesitou?
— Sim... Eu já esperava isso.
O silêncio do outro lado da linha diz tudo. Naya entende. Ela sempre entende.
— Escuta, Suraya, você tem que ser paciente. Laila cresceu ouvindo mentiras sobre você. Vai levar tempo até que ela perceba a verdade. Mas vai acontecer. Você é a mãe dela. Esse vínculo nunca se quebra.
Fecho os olhos, segurando o telefone com força.
— Às vezes, não tenho tanta certeza. Já vai quase dois anos maninha..
— Então, eu terei certeza por você. — Ela suspira. — E, por favor, tenta não se afogar nisso. Sei que você está aí, sozinha nesse castelo, remoendo tudo. Vai sair um pouco. Faz algo que te distraia.
Meu olhar vaga pela imensidão do salão, pela mesa vazia, pelas janelas que refletem apenas minha própria sombra. Talvez ela tenha razão.
— Na verdade, fui convidada para uma estreia de teatro no centro. Estou pensando em ir.
— Ótimo. Vá. E não deixe que te engulam viva lá fora.
Sorrio.
— Você diz isso como se fosse fácil.
— Você não é uma mulher fácil, Suraya. Nunca foi. Por isso vai vencer.
— Boa noite, Viúva do Magnata.
— Boa noite, Imperatriz.
Desligo o telefone e, por um momento, o silêncio volta a preencher a sala. Mas agora, ele parece um pouco menos sufocante. Volta e meia estava eu trocando-me após o banho, precisava honrar o convite que me foi feito.
O Espetáculo - "O Dote da Traição"
O Teatro ProdArtes é uma joia no coração de Santa Eulália, com suas colunas clássicas e luzes brilhantes que recortam a escuridão da noite. Meu carro estaciona discretamente na entrada lateral, longe do alvoroço da imprensa que sempre fareja meus passos.
Quando entro, sou recebida pelo diretor da peça, um homem magro de óculos redondos chamado Frederico Vasquez. Seu olhar é nervoso, mas sua voz é confiante.
— Senhora Abreu, é uma honra tê-la aqui. Sabemos que esta história pode ser… sensível para a senhora, mas espero que veja nossa adaptação como uma homenagem.
Apenas assinto, sem confirmar nada. Ver minha própria história transformada em espetáculo não era algo que planejei para esta noite.
Tomo meu assento na área reservada e observo as cortinas se abrirem.
A peça se chama "O Dote da Traição".
A história se desenrola no palco com uma intensidade sufocante. Uma jovem, Amira, é vendida pelo pai para um casamento arranjado como pagamento de uma dívida de jogo. O marido, um homem mais velho e poderoso, esconde segredos sombrios, e a vida dela se torna um labirinto de manipulações, violência e segredos de família.
A cada cena, sinto algo se revirar dentro de mim. Os olhos da atriz brilham com a mesma determinação que um dia queimou nos meus. O peso da submissão, a luta por liberdade, a traição de todos ao redor.
Eles podem ter mudado os nomes, os detalhes. Mas essa é a minha história.
Quando as cortinas caem, o teatro explode em aplausos. Fico imóvel por um momento, presa na sensação de ter sido arrancada do tempo e jogada de volta em minha própria dor.
Afinal, quem permitiu que essa história fosse contada?
O Passado em Carne e Osso
Saio pela entrada principal, evitando os olhares que me seguem no teatro. Mas a multidão lá fora não me dá trégua.
Flashes. Microfones. Vozes demais.
— Suraya Abreu, o que achou da peça? Foi fiel à sua história?
— Acha que retratar sua vida no palco é uma forma de arte ou exploração?
— Como está o julgamento da guarda de sua filha?
Minha expressão permanece neutra. Nada a declarar. Não vou alimentar essa fome por escândalo.
Então, no meio do caos, vejo ele.
Um rosto perdido no tempo.
Heitor.
O mundo ao meu redor parece desacelerar. O som das perguntas se torna distante, como se uma barreira invisível nos separasse de tudo.
Meu primeiro amor.
Vinte anos. Vinte anos desde a última vez que vi esses olhos.
Ele não mudou tanto. O tempo deixou marcas sutis, fios grisalhos no cabelo escuro, um olhar mais profundo, mais experiente. Mas é ele.
E, pelo choque em seu rosto, ele sente o mesmo.
Meu peito aperta. Heitor foi o primeiro a me amar. E o primeiro a me abandonar.
Ele se move na minha direção, e por um instante, penso em fugir. Mas sou Suraya Abreu. Eu nunca fujo, que "estória é essa de pensar em fugir!".
Ficamos frente a frente, a multidão continuando seu próprio ritmo, alheia ao choque do passado explodindo entre nós.
— Suraya… — Sua voz é rouca, familiar demais.
— Heitor.
Nenhuma outra palavra é necessária.
Porque no instante em que nossos olhos se encontram, eu sei: ele ainda tem um pedaço meu.
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Atualizado até capítulo 136
Comments
Angela S Silva
cade os fios brancos? não achei esse Heitor tão bonito assim
2025-03-30
1
Helena Maximo
Aí minha ansiedade tomara que esse apareça pra estar do lado dela pra somar ...........
2025-02-16
2
MarceloSousa
ele é um 😻
2025-02-16
1