Duas batidas na porta. Sem esperar qualquer resposta, ela se abre, invadindo o silêncio da sala.
Levantei os olhos dos papéis, sem mexer a cabeça, segurando a caneta entre os dedos.
— Desculpa interromper, mas o senhor Torres está aqui pra falar com você — disse Nádia, com a voz hesitante.
— Me dê dois minutos — respondi, tentando manter o tom neutro.
— Tudo bem.
Ela respondeu com um tom levemente tenso e fechou a porta com cuidado, mas o som ainda reverberou pela sala.
Diante de mim, a pasta aberta exibia o contrato que Garro havia enviado para revisão. Mal comecei a reler os números quando a porta foi escancarada com tanta força que bateu na parede, quebrando o silêncio antes mesmo de se passarem os dois minutos que pedi.
Meu pai entrou sem qualquer cerimônia, como se não tivesse acabado de quase destruir minha porta. Nádia surgiu logo atrás, com os olhos arregalados e um olhar que parecia um pedido de desculpas silencioso. Seus lábios curvavam-se em uma expressão que era quase culpa.
É raro meu pai perder a compostura e agir como um troglodita. Geralmente, essa versão especial dele é reservada para mim e meus irmãos, sempre que não agimos como ele espera. Sempre que não correspondemos às suas expectativas.
No ambiente de trabalho, ele costuma se esforçar para manter a imagem de um empresário respeitável e um pai dedicado.
— Sei que você deve estar muito ocupada, mas precisamos conversar — anunciou ele, com a voz firme e controlada.
Suspirei e assenti, fechando os papéis.
— Tudo bem. Nádia, traz um café pra nós, por favor.
— O meu, sem açúcar — pediu ele, sem sequer olhar para ela.
— Certo, senhor Torres — respondeu Nádia, desaparecendo no corredor.
Meu pai desabotoou o paletó com um movimento calculado e se sentou diante de mim. Ele ainda exalava aquele charme discreto, mesmo com os cabelos grisalhos e as linhas de expressão marcando o rosto. Cruzou as pernas e apoiou a mão no queixo, avaliando-me em silêncio.
— Imagino que você saiba por que estou aqui.
Passei a mão pelos cabelos, buscando tempo enquanto ajustava minha postura.
— Suponho que tenha a ver com o que aconteceu na sua festa de noivado.
— Com licença. — Nádia entrou novamente, equilibrando a bandeja com os cafés. Colocou-os na mesa e recebeu um sorriso rápido meu, que ela retribuiu antes de sair, claramente ansiosa para evitar o que sabia ser uma conversa tensa.
Meu pai respirou fundo, encarando-me com uma dureza que fazia tempo que não via.
— Sua atitude foi totalmente inaceitável. Você não pode ter esse tipo de comportamento.
Mantive a coluna ereta, esforçando-me para não reagir imediatamente.
— Minha atitude foi condizente com a situação. O senhor não me preparou para aquele jantar. Não esperava vê-lo pedindo aquela mulher em casamento.
— Estou cansado disso. — Sua voz soou mais firme, cortante. — Tenho o direito de escolher com quem quero estar. Passei muitos anos sozinho, e me permiti me apaixonar de novo. Isso é tão difícil de aceitar?
— Difícil de aceitar? — Um riso amargo escapou, antes que eu pudesse conter. — Logo por essa mulher? Uma desconhecida! Não sabemos nada sobre ela, nem o passado, nem a família. E claramente, ela não está à sua altura.
Os olhos dele endureceram. Um silêncio carregado pairou entre nós antes que ele murmurasse, como um aviso:
— Cuidado com o que vai dizer.
— Por quê? — retruquei, cruzando os braços, a raiva borbulhando sob a superfície. — Vai continuar fingindo que ela é perfeita? Que é puro acaso ela ter se aproximado de um homem rico como o senhor? Talvez deva aprender algo com ela. Quem sabe eu consiga progredir na vida seduzindo homens poderosos.
O tapa veio como um raio. A força não foi apenas física, mas emocional. Minha cabeça virou com o impacto, e o lado direito do meu rosto começou a arder imediatamente. O choque foi maior que a dor, paralisando-me por um instante.
— Maria Júlia, cala a boca! — Sua voz trovejou, rouca de raiva, mas também de algo mais profundo, talvez arrependimento. — Estou farto das suas grosserias, arrogância e prepotência. Você fala como se fosse superior, mas só chegou onde está porque teve meu apoio. Laura alcançou tudo com o próprio mérito, algo que você parece não compreender.
Ergui os olhos lentamente, as lágrimas ardendo mais pela humilhação do que pela dor. Meu queixo tremia, mas não desabei.
— Eu só quero o seu bem — murmurei, forçando cada palavra através da garganta apertada. — Me preocupo com o senhor.
Ele balançou a cabeça, um gesto de cansaço e frustração.
— Guarde suas preocupações para si mesma. Sei o que é melhor para mim. Laura será minha esposa, e você terá que tratá-la com respeito. Consegue fazer isso?
Segurei as mãos fechadas com tanta força que as unhas ameaçavam perfurar a pele. Não dei a ele a satisfação de uma resposta.
— Quer se casar com uma golpista? Ótimo. Desejo felicidades. Agora, se me der licença, tenho trabalho a fazer.
Ele hesitou, a expressão oscilando entre arrependimento e teimosia. Quando falou novamente, sua voz estava mais baixa, quase contida.
— Me desculpe pelo tapa. Não deveria ter perdido o controle.
Mantive o olhar fixo em algo além dele, recusando-me a ceder à vulnerabilidade.
— Não importa. Aqui é meu local de trabalho. Quando entrar por essa porta, quero que seja para falar apenas de negócios.
Ele lançou o olhar para minha mesa e puxou a pasta com o contrato, girando-a para si, de forma que pudesse ler.
— Já que quer falar de negócios, então falaremos de negócios.
Ele declara com uma frieza que ignora tudo o que aconteceu antes, e isso só aumenta minha raiva.
Sinto minhas unhas se cravarem ainda mais contra a palma da mão.
— Esses documentos são sobre a multinacional?
— Sim. Estou revisando a viabilidade financeira e ajustando custos.
— E o relatório já está pronto?
— Ainda não, mas estará até o fim do dia. Vou renegociar os prazos e propor ajustes no contrato.
Ele assentiu, relaxando um pouco.
— Espero que não deixe essa oportunidade passar.
— Nunca lhe dei prejuízo. Sei fazer o meu trabalho.
Ele se levantou lentamente, a expressão vacilando entre arrependimento e teimosia.
— Isso é algo em que podemos concordar. Eu sempre soube que, um dia, você reconheceria que tudo o que fiz foi pelo seu bem. Você sempre teve muito potencial, e eu soube como lapidá-lo.
— Claro, anos de estudos, noites em claro e trabalho árduo, mas, sem dúvida, o mérito é todo seu.
— Peço desculpas por ter perdido o controle.
— Entendo. Agora, se me permite, tenho muito trabalho a fazer.
Sem mais uma palavra, ele se virou e saiu, deixando a sala mergulhada em um silêncio ensurdecedor.
Trabalhei o resto do dia mergulhada em um silêncio que parecia tão pesado quanto as paredes ao meu redor. Concluí a revisão do contrato e enviei a nova proposta, tudo com a mesma precisão metódica de sempre. Por fora, minha expressão era impassível, um retrato perfeito de profissionalismo. Por dentro, entretanto, o caos reinava. Cada movimento, cada tecla pressionada no teclado, parecia carregar o peso de uma batalha interna que eu não podia permitir transparecer.
Minha mente não parava. As palavras do meu pai ecoavam, se entrelaçando com a ardência ainda latente no lado do meu rosto. Que tipo de "apoio" ele tanto se gabava de oferecer? Quando eu era mais jovem, cheia de ideias e sonhos, ele foi o primeiro a desmerecê-los. Desenhou barreiras, apontou limitações, como se quisesse me forçar a caber em um molde que ele havia criado.
Agora, depois de tudo que estudei, do tanto que me dedico, vivo praticamente em função dessa empresa, sacrificando fins de semana, noites, até mesmo feriados. E ainda assim, nada parece suficiente. Eu sou quem equilibra as finanças, quem analisa riscos e busca acordos, enquanto ele alimenta seus sonhos de grandeza. Ele é o visionário, mas eu sou a âncora. Sem mim, tudo desmoronaria. E, ironicamente, é Rodrigo Garro, com sua presunção e charme barato, quem recebe os créditos.
Minha mão apertava a caneta com tanta força que a ponta começou a raspar o papel. Respirei fundo, tentando acalmar o tremor nos dedos.
— Com licença, Maju — a voz de Nádia me puxou de volta. — Mandaram esses papéis para você avaliar. São de campanhas menores.
Olhei rapidamente para ela, tomando cuidado para que meu cabelo continuasse cobrindo o lado direito do meu rosto. Tinha passado uma nova camada de maquiagem, mas não queria arriscar que alguém percebesse.
— Pode deixar na mesa, já vou olhar — respondi, esforçando-me para soar natural.
Nádia hesitou por um instante, seus olhos parecendo notar algo errado, mas ela logo voltou à sua postura profissional.
— Você quer que eu providencie algo para você comer? Já é tarde e você ainda não almoçou.
— Não, obrigada. Estou sem fome. Mas, se puder, traga algumas bebidas para mim.
— Claro. O que você gostaria?
— Tequila, vinho e uísque — disse, encarando-a com firmeza.
Ela piscou, surpresa, mas assentiu. — Vou providenciar.
Assim que ela saiu, virei minha atenção para os contratos. Eram simples, rotineiros, mas algo na cláusula de um deles chamou minha atenção. Era uma cláusula de ajuste de orçamento, comum em contratos de longo prazo. Permitia variações no orçamento sem necessidade de aprovação prévia, desde que dentro de uma margem razoável.
Examinei os outros contratos. Nenhum tinha a mesma cláusula. Um lampejo de ideia tomou forma.
Peguei os contratos restantes e, com mãos firmes e olhar calculista, adicionei a mesma cláusula a todos. Foi um ajuste sutil, uma margem de reajuste pequena o suficiente para não levantar suspeitas. Mas, no fundo, era mais do que isso.
Era minha chance de provar algo. Não para o meu pai, não para a empresa, mas para mim mesma. Mostrar que, com ou sem o apoio dele, eu era perfeitamente capaz de tomar as rédeas e fazer algo grandioso.
Minha mandíbula estava tensa enquanto terminava as alterações. Cada assinatura futura seria um lembrete silencioso de que eu não precisava que ele me guiasse.
Assim que finalizei o último ajuste, mandei enviar os contratos. Senti uma pontada de alívio misturada com exaustão enquanto recostava na cadeira. Não tive tempo de relaxar por muito tempo; cerca de vinte minutos depois, Nádia entrou na sala com as sacolas e garrafas que eu havia pedido.
Ela parou à minha frente, pousando os itens sobre a mesa com um olhar levemente repreensivo. — Eu sei que você disse que estava sem fome, mas não consegui ignorar. Trouxe salada de salmão daquele restaurante que você adora. Se pretende beber, pelo menos não faça isso de barriga vazia.
Um sorriso pequeno, quase imperceptível, se formou nos meus lábios. A preocupação dela sempre tinha um jeito de furar minha barreira emocional. — Obrigada, Nádia. Você é fantástica.
Levantei-me com alguma hesitação, abrindo uma das gavetas da minha mesa. De lá, puxei duas taças escondidas no fundo, ainda impecáveis. Enquanto as colocava sobre a mesa, continuei: — Acabei de enviar os contratos. Parece que conseguimos um excelente negócio. Que tal beber comigo para comemorarmos?
— Eu não sei, Maju… — Nádia hesitou, cruzando os braços, mas eu já estava ocupada examinando os rótulos das garrafas.
— Vinho ou uísque? — perguntei com um tom casual, sem tirar os olhos das opções diante de mim.
— Acho melhor não — respondeu ela, com a voz baixa, quase nervosa.
Sem insistir diretamente, abri a garrafa de vinho e servi uma quantidade equilibrada em ambas as taças. Peguei uma delas e estendi a outra em direção a ela. Nádia hesitou por um momento antes de pegar a taça, os olhos me analisando como se tentasse decifrar algo.
— Sabe, Nádia — comecei, girando levemente o vinho na taça antes de bebericar. — Nesta vida, se você não escolhe o que quer, os outros acabam escolhendo por você. Acredite, isso não se aplica apenas a bebidas.
Ela arqueou uma sobrancelha, um sorriso pequeno escapando de seus lábios, e se sentou na cadeira em frente à minha. Passamos alguns minutos conversando. Eu não lhe contava tudo, mas com ela era impossível esconder certas coisas. Nádia era quem lidava com boa parte dos compromissos da minha vida, e, mais do que isso, ela parecia entender as nuances do que eu deixava de dizer.
Quando o relógio marcou meu horário de saída, fechei os arquivos restantes e agradeci pelo dia. — Pode ir, Nádia. O restante eu cuido.
Ela me lançou um último olhar antes de sair, um misto de preocupação e compreensão. Depois que ela se foi, fiquei encarando minha agenda por alguns segundos, indecisa. Ir para a casa do Santiago ou voltar direto para casa? Santiago provavelmente me distrairia, mas minha mente estava ocupada demais. Por fim, decidi ir para casa. Apesar de ainda estar chateada com meu pai, queria passar algum tempo com os meus irmãos. Talvez, por um momento, o barulho familiar deles pudesse trazer um pouco de calma à tempestade que fervia dentro de mim.
Caminhava lentamente pelo estacionamento, o som abafado dos meus passos ecoava no concreto vazio. A bolsa pendia no meu ombro, o blazer dobrado cuidadosamente sobre o antebraço. Na outra mão, o celular. Eu revisava mensagens, os olhos fixos na tela enquanto os dedos se moviam com precisão. A tensão do dia ainda vibrava em meus ombros.
— Maju.
A voz me trouxe de volta. Ergui a cabeça de imediato, os olhos piscando uma vez para ajustar o foco à luz pálida do fim de tarde. Ele vinha em minha direção: Rodrigo Garro, com aquele andar calculado e o sorriso que sempre parecia um pouco ensaiado demais.
— Olá, Garro. Tudo bem? — Perguntei, mantendo o tom neutro, embora o cansaço transparecesse nas bordas das palavras.
— Melhor agora. — Ele respondeu com um sorriso que buscava alguma empatia, mas não encontrou mais do que minha expressão calma, quase indiferente. Ele continuou: — Queria ter tido a chance de conversar com você antes, mas hoje foi uma loucura. Posso? — Apontou para a bolsa e o blazer em um gesto educado, mas forçado demais para o meu gosto.
— Claro. Hoje foi corrido para todo mundo. — Respondi, entregando-lhe os itens sem protestar, embora algo em mim se recusasse a baixar completamente a guarda.
Enquanto caminhávamos, ele ajeitou os óculos e puxou conversa novamente:
— Seu pai me convidou para jantar na casa de vocês. Vamos revisar o discurso e fazer alguns ajustes. Pensei que, se você não estiver de carro, posso te dar uma carona.
— Agradeço, mas não será necessário. Estou de carro. Nos vemos lá. — Indiquei com um leve aceno de cabeça em direção à minha Mercedes preta, estacionada algumas vagas à frente.
Ao chegarmos, ele devolveu a bolsa e o blazer com gestos precisos, quase cerimoniais. Abri a porta traseira e os acomodei ali, sentindo o leve aroma de couro no interior do carro.
— Maju — começou ele, hesitando por um instante, como se medisse as palavras. — Sobre a conferência no próximo mês... Seu pai pediu para que eu fosse representá-lo, mas pensei que, se você concordar, seria bom irmos juntos. Acho que representaríamos bem a empresa.
Estreitei os olhos levemente, analisando a proposta.
— Meu pai não comentou nada comigo. — Cruzei os braços, o olhar fixo no dele. — Não tenho interesse na conferência, mas, se for importante para a empresa e ele decidir que devo ir, então estarei lá.
Ele assentiu, visivelmente desconfortável com a minha resposta contida.
— Claro... Eu só achei que seria uma boa ideia.
— Não é uma ideia ruim. — Consultei o relógio no meu pulso, encerrando a conversa com um tom definitivo. — Fica assim, então.
— Nos vemos no jantar. — Ele se despediu com um sorriso que parecia mais alívio do que simpatia.
Entrei no carro, fechando a porta com um leve clique, e dei-lhe um breve aceno antes de arrancar.
Enquanto o motor roncava e eu deixava o estacionamento para trás, a pergunta pairava na minha mente: O que será que esse sujeito está tramando?
Rodrigo Garro. Um homem alguns anos mais velho que eu, cuja presença parecia sempre carregar um propósito oculto. Meu pai o conhecera em uma palestra e, desde então, o proclamara como um prodígio. Agora, Garro era sua sombra, seu braço direito, quase como um filho — talvez até mais próximo do que eu e meus irmãos jamais fomos.
Era intrigante, quase doloroso, perceber como meu pai o admirava. Garro era o ideal que ele sempre tentou esculpir em nós: a obediência cega, a ambição desmedida, a reverência absoluta.
A verdade é que meu pai parecia conhecer mais sobre a vida dele do que sobre a nossa. Enquanto ele vivia para o trabalho — e agora para Laura, sua adorável noivinha —, nós, seus filhos, éramos relegados ao segundo plano, reduzidos a projetos inacabados.
O que queríamos era tão simples e tão inalcançável: sermos apenas filhos. Desejávamos um diálogo, uma conversa que não fosse sobre sucessão, metas ou estudos. Queríamos que ele nos perguntasse o que queríamos da vida, em vez de ditar o caminho como uma sentença.
Mas isso era pedir demais. E talvez fosse por isso que a figura de Rodrigo Garro me incomodasse tanto: ele era o reflexo perfeito do que meu pai desejava, enquanto nós éramos sombras de suas expectativas desfeitas.
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Atualizado até capítulo 99
Comments
rosicley
ola autora não gostei do que o pai dela fez ,ia ser muito bom se Maju deixasse a empresa do pai e caminha- se por conta própria e mostrasse pra ele que e ela que carrega a empresa ,e deixar ele quebra a cara
2025-01-11
4
A.Maysa
capítulo tenso...mais concordo com você maju esse cara é muito esquisito, fica esperta com ele
2025-01-11
1
Maria Andrade
estou ansiosa por mais capítulo
2025-01-11
2