Legado de Uma Noite
Narração: Sophie
Eu sempre fui uma pessoa previsível. Daquelas que gostam de ter a vida sob controle, onde tudo tem o seu lugar, sua lógica. Talvez por isso minha tia Clara vivesse dizendo que eu era "certinha demais". E, bem, ela não estava errada.
Meu nome é Sophie Duval. Na época eu tinha 21 anos, tenho cabelos cacheados, ruivos e olhos castanhos que sempre me fizeram parecer mais sonhadora do que realmente sou.
Depois que perdi meus pais, minha tia Clara foi tudo para mim. Ela me criou, me ensinou a lutar pelos meus sonhos e, mais do que isso, me ensinou a amar. Mas acho que o amor foi a única coisa que ela não conseguiu me ensinar a entender.
Eu tinha um namorado, Henrique. Alto, bonito, com aquele sorriso fácil que fazia meu coração acelerar toda vez que ele aparecia. Eu o amava de uma forma que nem sabia explicar. Ele era meu porto seguro, meu futuro, ou pelo menos era o que eu acreditava.
Naquele dia, acordei cedo, determinada a fazer algo especial para ele. Preparei um aperitivo que ele adorava, arrumei tudo em uma pequena marmita e fiquei satisfeita com meu esforço. Henrique sempre dizia que minha comida tinha "um toque mágico".
Minha tia Clara me observava da cozinha enquanto eu me arrumava, como sempre fazia quando eu tinha algo importante em mente.
— Está bonita, Sophie. — Ela sorriu, secando as mãos no avental.
— Obrigada, tia. Achei que seria bom fazer algo diferente hoje, uma surpresa.
— Você tem um coração grande demais, menina. Só espero que Henrique saiba disso.
Eu ri, ajeitando os cachos soltos no espelho.
— Claro que sabe. Ele me ama, tia.
— Ama, né? — Ela suspirou, cruzando os braços. — Só quero que você se lembre de uma coisa: não importa o quanto ame alguém, nunca esqueça de se amar também.
Revirei os olhos, rindo. Minha tia sempre foi protetora, mas às vezes parecia prever coisas que eu nem imaginava.
Peguei a marmita e, antes de sair, beijei sua bochecha.
— Volto antes do jantar.
— Vai com cuidado, Sophie.
Peguei o ônibus com a marmita no colo, olhando pela janela enquanto a cidade passava em flashes de cores e luzes. Sentia o coração acelerado, mas não era nervosismo; era felicidade. Eu queria ver o sorriso de Henrique quando ele me visse.
Quando cheguei ao prédio dele, bati à porta, mas ninguém atendeu. Estranhei. Henrique sempre estava em casa àquela hora. Peguei a chave sob o tapete, um hábito nosso, e entrei.
O apartamento estava quieto, mas algo parecia fora do lugar. Talvez fosse o perfume no ar, um aroma doce e desconhecido que não era meu.
— Henrique? — chamei, caminhando pelo corredor.
E foi então que eu vi.
A porta do quarto estava entreaberta, e através dela, eu o vi. Henrique estava na cama com outra mulher. Ela estava sobre ele, os dois riam, como se eu não existisse.
Minha mente parou. Não consegui pensar, apenas sentir. Um nó apertado na garganta, o estômago revirado, as mãos tremendo tanto que a marmita caiu no chão com um baque seco, espalhando o aperitivo pelo chão.
— Sophie? — Ele se levantou rapidamente, puxando o lençol para cobrir o corpo, mas seu rosto não mostrava arrependimento. Era apenas surpresa, quase irritação.
A mulher se virou, encarando-me com um sorriso debochado.
— Então essa é a Sophie? Achei que fosse mais... interessante.
Henrique não a corrigiu. Não disse nada. Ele apenas olhou para mim, tentando encontrar as palavras.
— Não é o que parece...
— Não é o que parece? — Minha voz saiu trêmula, mas alta o suficiente para cortá-lo. — Henrique, eu... eu confiei em você!
Ele passou a mão pelos cabelos, impaciente, como se eu fosse a culpada por estar ali.
— Sophie, você está exagerando. Não é nada sério.
Nada sério. Aquelas palavras me atingiram como um golpe. O que tínhamos não era sério? Tudo o que eu sentia, tudo o que construí, era só um detalhe para ele?
— Exagerando? — Minha voz saiu quase um sussurro. Eu estava em choque, como se minha alma tivesse sido arrancada do meu corpo. — Então, isso é tudo para você? Nada sério? Seu filho de uma puta! — Xinguei, como um desabafo.
Sem olhar para trás, saí do apartamento. Não ouvi mais nada. O barulho da porta se fechando atrás de mim foi a única coisa que pareceu real naquele momento.
Eu andei. Andei sem rumo, sem saber onde ir, com o peso de uma dor que parecia impossível de carregar. A marmita, o aperitivo, tudo ficou para trás. Tudo.
E então, no meio da confusão da cidade, avistei um lugar que nunca tinha visto antes. Uma boate.
Sem pensar, entrei.
A boate era um universo completamente diferente do que eu conhecia. Luzes piscavam em ritmos alucinantes, e o som grave da música fazia meu peito vibrar. Eu nunca tinha entrado em um lugar assim antes, mas, naquela noite, nada importava.
Caminhei até o bar, ainda sentindo o gosto amargo da traição de Henrique. O garçom me olhou com uma mistura de curiosidade e ceticismo.
— O que vai ser? — ele perguntou, tentando soar indiferente, mas seu olhar denunciava que eu não pertencia ali.
— Algo forte. O que tiver.
Ele levantou as sobrancelhas, mas não disse nada. Quando o copo apareceu à minha frente, bebi sem pensar. O líquido queimou minha garganta, mas trouxe uma sensação entorpecente que eu precisava desesperadamente.
Pedi outro. E outro.
O álcool começou a agir rápido, tornando tudo ao meu redor mais distante, quase surreal. Eu queria esquecer Henrique, esquecer o cheiro daquela mulher, esquecer o som da risada dele enquanto ela o tocava.
Mas esquecer era difícil.
— Ei, mocinha, você precisa desacelerar. — A voz do garçom cortou minha concentração.
— Não é da sua conta — murmurei, levantando o copo novamente.
Narração: Damián
A noite sempre fora meu território. Enquanto outros dormiam, eu negociava, lidava com problemas, comandando o submundo que sustentava minha boate e outros empreendimentos mais discretos. Meu nome é Damián Castelli. Um homem de negócios, e de perigos.
Meu escritório fica nos fundos da boate, longe das luzes piscantes e do caos. Ali, resolvia questões que exigiam atenção. Como a dívida de um fornecedor que insistia em atrasar entregas.
— Damián, por favor, eu só preciso de mais tempo... — ele implorava, sentado na minha frente, suando frio.
— Tempo é um luxo, Sr. Valente. E luxos custam caro. Você acha que pode falhar comigo e sair ileso? — Minha voz era calma, mas carregada de ameaça.
Ele gaguejou, tentando formular uma resposta, mas eu o cortei.
— Pago meus fornecedores para manter minha reputação intacta. Se você não consegue fazer o mesmo, talvez precise de um lembrete mais convincente.
Antes que ele pudesse responder, meu telefone tocou. Era um dos seguranças, avisando que havia “algo interessante” acontecendo no salão.
— Vá embora. E não apareça novamente sem o dinheiro — ordenei, dispensando Valente com um gesto impaciente.
Quando saí do escritório e entrei no salão, o ambiente me envolveu: luzes, música alta, pessoas dançando como se não houvesse amanhã. Mas algo me chamou atenção imediatamente.
No bar, uma jovem. Visivelmente alterada, bebendo sem parar, com uma expressão de dor mascarada por um sorriso amargo. Seus cabelos ruivos brilhavam sob as luzes, destacando-a como se fosse feita para ser notada.
Eu sabia reconhecer desastres antes que acontecessem. E aquela garota era um desastre prestes a explodir.
— Elle a bu assez. (Ela já tomou o suficiente)— anunciei, ao me aproximar do balcão.
Narrando: Sophie
Eu bebia sem parar até que senti uma presença atrás de mim. Era algo que gelou minha espinha, como se o ar ao meu redor tivesse mudado. Uma voz grave, fria e imperativa soou ao meu lado.
— Elle a bu assez. (Ela já tomou o suficiente)
Virei o rosto, o corpo ainda instável, e encontrei o dono daquela voz. Ele era alto, ombros largos, um rosto firme e implacável, com olhos tão escuros que pareciam enxergar além do que eu deixava transparecer. Seu terno impecável denunciava poder, mas havia algo mais: perigo.
— Quem é você pra decidir o quanto eu devo beber? — retruquei, meu tom desafiador escondendo o desconforto que sua presença causava. Em dias normais jamais teria coragem de falar com alguém nesse tom, mas eu estava bêbada e descontrolada.
— Alguém que não quer problemas no meu bar, ma chère.
O dono da boate. Claro. Fazia sentido. Seu olhar era de quem controlava tudo e todos à sua volta.
— Ótimo. Agora vá incomodar outra pessoa.
Ele estreitou os olhos, claramente irritado. Com um gesto rápido, pegou meu copo e o afastou do alcance da minha mão.
— Ça suffit ( Já chega ).
Eu ri, mas foi um riso amargo, carregado de dor e álcool.
— Você acha que pode controlar tudo? Porque, se acha, vou te contar um segredo: ninguém pode.
— Talvez você só tenha se cercado de pessoas erradas, petite fille.
— É mesmo? — Eu me inclinei na direção dele, desafiando sua postura rígida. — E o que você entende sobre mim ou sobre quem eu escolho?
Ele não respondeu imediatamente. Seus olhos escureceram, e por um momento, ele parecia... curioso.
— Não muito. Mas você está se afundando, e isso é... pitoyable ( patético ).
Patético. Aquela palavra me atingiu como uma bofetada, mas eu não recuei.
— Patético é achar que tem o direito de julgar alguém que você nem conhece.
— Talvez você devesse conhecer alguém que não tenha medo de dizer a verdade — disse ele, com um leve toque de desafio em seu sotaque francês.
Eu o encarei, sentindo o calor subir pelo meu rosto. Talvez fosse a bebida, talvez fosse o jeito dele de me olhar como se pudesse me desmontar com um único gesto.
— Você acha que sou bonita? — perguntei, a voz saindo mais baixa do que eu pretendia.
Ele franziu o cenho, claramente surpreso pela pergunta.
— O que isso importa agora?
— Importa pra mim. Porque, aparentemente, eu não sou boa o suficiente para ninguém.
Antes que ele pudesse responder, me inclinei mais perto, as mãos tremendo, e o beijei.
Foi um ato impulsivo, desesperado, e ele ficou imóvel por um segundo. Mas, então, suas mãos firmes seguraram meus braços, afastando-me com força.
— Tu es folle? (Você é louca?)— A frase saiu num tom seco, mas o sotaque francês deixou o insulto soando mais perigoso do que agressivo.
Eu ri, mas minha garganta estava apertada.
— Talvez eu seja.
Ele me encarou por longos segundos, e eu vi algo mudar em seus olhos. Era algo sombrio, algo perigoso, mas que parecia me prender ainda mais.
Antes que eu pudesse dizer algo, ele segurou meu braço com firmeza.
— Vem comigo.
— O quê? Me solta!
— Não quero escândalos no meu bar, entendez-vous? (entendeu?) — Sua voz era baixa, mas não menos autoritária, cada palavra carregada de um controle que me deixava sem reação.
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Atualizado até capítulo 39
Comments
Gislaine Duarte
eita já gostei dele 🤣
2024-11-19
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