-AURORA-
Na manhã seguinte, acordei antes do despertador.
O céu ainda estava cinza, e uma brisa fresca entrava pela fresta da janela que eu havia deixado entreaberta. O mundo lá fora parecia calmo — em contraste com o redemoinho que ainda girava dentro de mim.
Vesti um moletom leve, prendi o cabelo em um coque despretensioso e desci até a cozinha. A mansão ainda dormia. Apenas a cozinheira, dona Carmela, estava ali, preparando o café com a eficiência de sempre.
— Bom dia, menina Aurora. — disse ela, com um sorriso gentil. — Dormiu bem?
— Mais ou menos. — respondi, pegando uma xícara. — Sonhei com gente que não deveria estar nos meus sonhos.
Ela riu, sem fazer perguntas, como sempre. Discreta, mas atenta. Sabia mais do que deixava transparecer.
Sentei-me à bancada, mexendo o café lentamente. A colher girava no líquido escuro com a mesma repetição dos meus pensamentos. E, inevitavelmente, voltava para ele.
Alexander.
Ele não deveria ocupar tanto espaço na minha cabeça. Mas ocupava.
Era como uma música em volume baixo, constante. Não atrapalhava, mas estava sempre lá. E quanto mais eu tentava ignorar, mais notava sua presença.
Peguei o celular e, sem pensar muito, entrei nas redes. Nenhuma novidade. Nenhuma mensagem. Nenhum sinal dele. Claro. Alexander Walter não era o tipo de homem que deixava rastros digitais — ao menos, não onde todos pudessem ver.
Mas minha curiosidade já estava desperta. E isso era um problema.
Passei o resto da manhã no jardim, tentando me distrair com um livro. Mas as palavras se embaralhavam diante dos olhos. Não era falta de atenção — era excesso de presença.
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- ALEXANDER -
O dia começou cedo para ele.
A reunião com os italianos no porto estava marcada para as sete em ponto. Formalidade, controle de fronteira e a velha diplomacia envolta em ameaças veladas. Mas sua mente, por algum motivo que o irritava, não estava inteiramente ali.
Mesmo ao lado de homens que podiam pôr um preço em qualquer cabeça, sua atenção desviava.
E não deveria.
Ao sair do galpão, já com o sol alto, acendeu um cigarro e ficou alguns minutos parado, olhando o mar. A brisa trazia o cheiro de sal e óleo — familiar, quase confortável.
Mas não bastava para dissipar a lembrança dela.
Aurora.
O nome agora tinha um peso diferente. Uma sombra que se arrastava por trás das sílabas, como um eco que não queria cessar.
Ele sabia se controlar. Era mestre nisso. Mas não era cego. E ela... ela não fazia ideia do que poderia provocar se não tivesse tanto controle.
Ou pior — talvez soubesse.
E isso tornava tudo ainda mais perigoso.
Entrou no carro, fechou os olhos por alguns segundos antes de dar a partida. A imagem dela sentada no sofá, o cruzar sutil das pernas, a maneira como o observava de relance — tudo voltava com uma nitidez que beirava a tortura.
“Você cresceu.” Disse, e agora se odiava por isso.
Porque cresceu demais. E ele, talvez, não tivesse se preparado para lidar com a mulher que nasceu daquela lembrança adormecida. Uma mulher que carrega com sigo um sobrenome de prestígio.
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- AURORA -
O final da tarde tingia o céu com tons alaranjados quando batiam à porta de vidro do escritório do meu pai. Eu já ia subir para me arrumar quando ouvi vozes abafadas lá dentro — uma delas inconfundível.
Alexander.
Parei no alto da escada, instintivamente me mantendo fora de vista, mas atenta. A porta estava apenas encostada. O suficiente para deixar escapar trechos de uma conversa que, mesmo sem querer, prendi a respiração para ouvir.
— Queria que estivesse presente, Carlo. — disse Alexander, com sua voz sempre baixa, firme. — A festa é para marcar minha volta. Mas também… para lembrar quem ainda está do nosso lado.
Um silêncio se estendeu por alguns segundos. Então ouvi a risada baixa do meu pai, quase nostálgica.
— Você voltou mais direto do que nunca. — respondeu ele. — Está certo. Estarei lá. Sempre estive, não é?
— Sempre esteve. E isso conta muito mais do que qualquer aliança de papel.
Mais algumas palavras inaudíveis, o som de um copo sendo colocado na mesa — provavelmente um whisky — e, por fim, a confirmação que eu ainda não sabia que estava esperando:
— Leve Isadora. E Aurora também.
Meu coração parou por um segundo.
Meu nome, na voz dele, soou diferente. Quase... calculado. Como se tivesse sido escolhido com precisão cirúrgica. Como se dissesse mais do que a frase comportava.
Me afastei em silêncio, descendo um degrau com leveza felina, disfarçando quando a porta finalmente se abriu. Meu pai saiu primeiro, com um leve sorriso no rosto. Atrás dele, Alexander cruzou o batente com a postura de sempre — calmo, composto, como se tudo estivesse sob controle. Porque estava.
— Aurora. — disse ele ao me ver no corredor. — Boa tarde.
— Don Alexander. — respondi, formal, mas com a pontinha do lábio marcada por um meio-sorriso. — Estava procurando meu pai.
Ele assentiu com leveza.
— Já estávamos terminando.
Meu pai passou o braço por meus ombros, sem notar a tensão sutil entre mim e o Don. Ou talvez notasse — mas, como todo bom homem da velha guarda, sabia quando não se meter.
— Ele nos convidou para a festa de boas-vindas esta noite. — disse meu pai. — Uma recepção elegante. Só os próximos.
Alexander não disse nada. Apenas me olhou.
Por um segundo longo demais.
E, naquele segundo, soube que o convite não foi casual. Nem educado. Foi intencional.
— Estaremos lá. — garanti, com firmeza e naturalidade. — À altura da ocasião.
Ele assentiu, os olhos ainda presos aos meus.
— Espero que sim.
E então, simplesmente se afastou, caminhando em direção à saída com a tranquilidade de quem já sabia que todos os movimentos estavam perfeitamente orquestrados.
Quando a porta se fechou atrás dele, meu pai suspirou:
— Que homem. O mundo muda, mas Alexander continua igual. Um enigma.
Continuei parada ali, encarando o vazio onde ele estivera segundos antes.
Não era um enigma. Não para mim.
Era um presságio.
Minutos depois, ouvi os saltos apressados ecoando no mármore do hall e o timbre animado da voz dela:
— Mamãe, papai, cheguei! Trouxe vinho — e fofoca!
Desci as escadas devagar, sorrindo antes mesmo de vê-la. Clara era uma força da natureza. Linda, exagerada, caótica de um jeito charmoso. Trabalhara por anos em Milão como estilista, mas agora mora em sua casa juntamente com seu marido.
— Aurora! — gritou ao me ver, correndo até mim com os braços abertos.
Nos abraçamos forte.
— Você está ainda mais linda, que saco! — reclamou, me olhando de cima a baixo. — Que pele é essa? Que cabelo é esse? Está se alimentando de almas inocentes?
—Você sabe que só gosto das impuras. — retruquei, rindo.
Ela jogou a bolsa no sofá e começou a andar pela casa como se nunca tivesse ido embora.
— O que perdi? Por que tanta movimentação? Vocês parecem prestes a receber a realeza.
Fiquei em silêncio por um momento. Peguei duas taças, servi o vinho que ela trouxera e sentei ao lado dela, hesitante.
— Alexander voltou.
O nome caiu no ar com o peso que carrega.
Clara piscou, confusa. Depois, arregalou os olhos.
— O Alexander?
Assenti.
— Sim. O Don. Depois de anos na Rússia. Ele está de volta.
Clara soltou uma risada incrédula, balançando a cabeça.
— E vocês vão recebê-lo com festa? Como se ele fosse um diplomata sueco e não... bem, ele mesmo?
— É uma festa em homenagem à volta dele. Organizada por ele mesmo. Meu pai foi convidado. Isadora também. E... eu.
Ela arqueou uma sobrancelha, farejando algo no meu tom de voz.
— “E… eu”, é? Fala. O que aconteceu?
Tomei um gole demorado do vinho antes de responder.
— Ele me olhou, Clara. Não como alguém que vê uma conhecida. Mas como quem observa uma mudança. Como quem mede distâncias. Como quem compara uma lembrança com uma realidade nova demais pra ignorar.
Clara me encarou por um longo tempo. Depois, soltou um suspiro cético.
— Aurora… esse homem... ele é como veneno em frasco de cristal. Bonito por fora, letal por dentro.
— Eu sei. — disse. E sabia mesmo. Mas isso não mudava o que estava pulsando embaixo da pele.
Ela se levantou, pegou minha mão e puxou.
— Vai se arrumar. Quero te ver deslumbrante. Já que vai brincar com o perigo, que esteja ao menos perfeita pra isso.
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No quarto, abri a caixa onde o vestido esperava há semanas. Um modelo vermelho brilahnte, tomara que caia, e uma fenda na coxa como uma promessa sussurrada. Nada vulgar — só o bastante para deixar claro que eu sabia exatamente quem era. E que, se jogasse, não seria como criança.
Clara entrou enquanto eu ajeitava o vestido sobre o corpo.
— Meu Deus. Ele vai ter um colapso. — murmurou.
— Não é por ele. — menti, com um sorriso irônico. — É por mim.
Ela riu, me ajudando com o zíper.
— Claro, claro. E eu só bebo vinho porque é antioxidante.
Enquanto passava um batom cor rubi, olhei meu reflexo por alguns segundos a mais. Os olhos estavam mais intensos. Os traços do rosto mais definidos. E algo ali — no fundo do olhar — não era só vaidade.
Era preparo.
Era guerra.
Vesti um par de brincos de pérola, discretos. Perfume atrás das orelhas, um toque de delineador nos olhos. Prendi o cabelo em um coque baixo, com algumas mechas soltas propositalmente.
Clara cruzou os braços, me analisando como se eu fosse uma obra de arte perigosa.
— Você está pronta.
— Acho que estou. — disse. E era verdade.
Porque esta noite, não seria apenas uma festa.
Seria uma apresentação silenciosa.
De mim para ele.
De mulher para homem.
De igual para igual.
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Atualizado até capítulo 37
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