Renascida como Guardiã
A luz fluorescente do hospital era fria e impessoal, iluminando as paredes brancas e sem vida do quarto onde Alicia estava deitada. O monitor ao lado de sua cama emitia um bip constante e regular, medindo cada batida de seu coração com precisão impiedosa. Alicia sabia que o fim estava próximo. Ela podia senti-lo em seus ossos, nos pulmões que lutavam para encher de ar, no cansaço esmagador que a prendia na cama. Mas naquele momento, em meio àquele cenário sombrio, seus pensamentos estavam em outro lugar, em outra vida, em outro mundo.
Sua cabeça estava completamente raspada, resultado das sessões de quimioterapia que não haviam sido capazes de salvar seu corpo da leucemia que o devastava. No começo, perder o cabelo havia sido um choque — uma parte de sua identidade que parecia sumir aos poucos, como sua própria vida. Mas agora, com o tempo, ela quase se acostumara à sensação do lençol roçando o couro cabeludo nu. Era estranho, mas de certa forma libertador. Alicia sempre fora vaidosa, preocupada com a aparência, com os longos cabelos castanhos que antes escorriam como uma cascata pelos ombros. Agora, tudo isso parecia tão distante, como se pertencesse a outra pessoa, a outra versão dela mesma.
A única outra pessoa no quarto era sua irmã, Clara, sentada ao lado da cama, segurando uma das mãos de Alicia entre as suas. Clara tinha os olhos vermelhos e inchados, lágrimas incontidas escorrendo por seu rosto. O silêncio entre elas era quase palpável, preenchido apenas pelo som das máquinas e da respiração irregular de Alicia. Clara parecia estar lutando com as palavras, como se quisesse dizer algo, mas não soubesse por onde começar.
Alicia observou a irmã por um momento, vendo o quanto a doença também a afetara. Clara sempre fora a mais forte das duas, a que cuidava de tudo e de todos, mas agora ela parecia despedaçada, como uma criança perdida. Isso partia o coração de Alicia mais do que qualquer dor física que sentia.
Com um esforço que exigiu mais energia do que gostaria de admitir, Alicia esboçou um sorriso fraco e murmurou:
— Ei, você sabe que não fica bem fazendo essa careta, né?
Clara piscou, como se tivesse sido arrancada de um transe, e encarou a irmã. Seus lábios tremeram, e ela soltou uma risada fraca, embargada de emoção.
— Eu... eu sei — Clara respondeu, tentando controlar o choro. — Mas não consigo evitar.
— Então, pare de tentar. — Alicia disse, suavemente. — Já basta você ter que olhar pra minha cabeça careca. Você não precisa me torturar com essa cara de choro também.
Clara riu de novo, dessa vez com um pouco mais de força, apertando a mão de Alicia com mais firmeza. O som da risada dela, embora pequeno, aqueceu o coração de Alicia. Mesmo à beira do fim, ela queria ser capaz de aliviar o sofrimento da irmã, de fazer com que aqueles últimos momentos juntas não fossem apenas sobre tristeza e despedidas.
— Não é você quem deveria estar fazendo piada agora — Clara murmurou, enxugando as lágrimas com as costas da mão. — Não é justo.
Alicia deu de ombros, ou pelo menos tentou. O movimento foi limitado pela fraqueza em seus músculos.
— A gente tem que aproveitar o que dá, né? — ela disse, o sorriso ainda presente, mas os olhos carregados de uma verdade que ambas sabiam, mas evitavam dizer em voz alta.
Clara se inclinou para frente, segurando o rosto de Alicia com uma delicadeza que só irmãs são capazes de ter. Os olhos dela, tão cheios de amor e dor, encontraram os de Alicia, e por um momento o tempo pareceu parar. Alicia podia ver o medo no fundo daqueles olhos — o medo de perdê-la, o medo de ficar sozinha.
— Eu... eu não sei o que vou fazer sem você — Clara sussurrou, a voz quebrada. — Eu não quero... eu não quero te perder.
Alicia sentiu uma pontada no peito, mas não era física. Era uma dor emocional, profunda, que vinha da realização de que sua partida deixaria um buraco na vida de Clara que talvez nunca fosse preenchido. Ela queria poder prometer que tudo ficaria bem, que Clara superaria isso, que a vida continuaria. Mas sabia que qualquer palavra que dissesse agora soaria vazia.
— Você é forte, Clara — Alicia disse, com a voz suave. — Você sempre foi. E vai continuar sendo, mesmo sem mim.
Clara balançou a cabeça, discordando silenciosamente, as lágrimas ainda caindo. Alicia sentiu uma fraqueza crescente tomar conta de seu corpo, e sua visão começou a ficar embaçada. Era como se o cansaço estivesse finalmente vencendo. Mas, mesmo com o peso da morte se aproximando, sua mente ainda vagava para o livro que estava lendo enquanto estava no hospital. Era um romance de fantasia que ela amava, uma história cheia de magia, aventura e sacrifício.
Luthiel, a personagem secundária que sempre a fascinara, tinha sido sua favorita desde o início. Luthiel era corajosa, forte e, acima de tudo, leal. Mas Alicia sabia que o destino da personagem era trágico — ela morreria para salvar o reino e proteger o príncipe. Havia algo de profundamente injusto naquela história, algo que sempre a incomodara. Por que os personagens como Luthiel, que tinham tanto a oferecer, precisavam ser sacrificados para que outros brilhassem?
Alicia fechou os olhos por um momento, sentindo a exaustão se aprofundar. Mas, em vez de sentir o vazio que tanto temia, ela sentiu algo diferente. Uma sensação estranha, como se estivesse flutuando entre o sono e a vigília. E, de repente, um calor suave a envolveu, uma luz tênue que não pertencia ao hospital.
— Clara… — Alicia murmurou, os lábios quase imóveis. — Eu estou tão cansada...
Clara segurou sua mão com mais força, mas Alicia mal sentia o toque agora. Seus pensamentos estavam distantes, já não pertenciam mais àquele quarto, àquele mundo. Ao invés disso, sua mente foi invadida pelas imagens de Luthiel, pela história que tanto amara. Sentiu como se estivesse sendo puxada para dentro do livro, para dentro da pele da personagem que tanto admirava.
E, então, Alicia deu seu último suspiro.
Clara soluçou, chamando o nome da irmã. Mas Alicia já não estava mais lá. Ela havia partido — ou talvez, apenas começado.
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Atualizado até capítulo 23
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