Já faz algum tempo desde que despertei neste novo corpo. Ainda estou me adaptando, observando cada movimento ao meu redor. Confiança? Não é algo que posso me permitir — não neste mundo onde todos usam máscaras.
Hoje haveria uma excursão com o grupo de treino pela cidade. Acordei antes mesmo do sol tocar o horizonte, o coração inquieto. Algo me dizia que o dia não seria comum.
Vestimos uniformes padronizados. Era estranho estar entre tantos garotos rindo e falando alto, quase me esquecia do fardo que carregava. Caminhar pelas ruas vibrantes da cidade era revigorante. As pedras da calçada, as barracas coloridas da feira, os aromas de pães recém-assados e especiarias... Era a vida pulsando, diferente da prisão de pedra e silêncio da mansão.
Passávamos pela feira quando, de repente, um grito rasgou o ar:
— PEGA LADRÃO!
O grupo parou. Olhei em volta até que a multidão se abriu, revelando uma mulher em farrapos correndo com pedaços de bolo nos braços. Um dos garotos ao meu lado — impulsivo e faminto por reconhecimento — lançou-se atrás dela e a imobilizou em poucos segundos. A multidão aplaudiu. A mulher caiu de joelhos, os bolos desfeitos no chão.
Ela começou a chorar. Não lágrimas bonitas ou encenadas — era um choro feio, desesperado. Todos a olhavam com desprezo ou pena. Eu apenas a observava, em silêncio.
Mas havia algo nela... Algo útil.
— Esperem! — minha voz cortou o murmúrio. Todos se calaram. Aproximei-me da mulher.
— Por que roubou?
— Meus filhos... Eles não comem há dois dias... Eu juro... só queria alimentá-los...
Não senti pena. Senti potencial.
— Venha comigo. Darei abrigo. Mas terá que trabalhar para mim.
Os guardas hesitaram. Paulo me lançou um olhar reprovador, mas não interferiu. A mulher olhou-me com olhos arregalados, depois abaixou a cabeça.
— Sim... sim, milady. Serei leal. Serei o que quiser...
Seu nome era Esther. E o destino reservava surpresas: ela era filha de um barão falido, arruinado por dívidas e vícios. Uma nobre caída. Para mim, isso era ouro. Esther sabia andar entre os nobres, conhecia os jogos de aparência, a dança das palavras e dos olhares.
Levei-a comigo para a mansão. Ana torceu o nariz com tanto ódio que quase pude ver suas palavras não ditas queimarem no ar. Mas não ousou protestar — o conde estava presente, e isso a acorrentava por hora.
Sabia que ela esperaria o primeiro deslize para destruir Esther.
Os dias passaram. Esther tornou-se minha sombra. Atendia às minhas ordens sem questionar. Silenciosa, eficiente, com uma dignidade contida que escondia um espírito ferido — perfeito para moldar.
Certa manhã, fui ao campo de treino como sempre. A areia quente sob os pés, o barulho das espadas de madeira ecoando. Mas naquele dia... havia alguém ali.
Ricardo.
Meu irmão.
Estava conversando com Paulo. Quando nossos olhares se cruzaram, senti a tensão no ar mudar.
Ele caminhou até mim, ríspido:
— O que está fazendo aqui?
— Treinando. — Respondi sem piscar.
— Treinando? Desde quando?
— Já faz um tempo...
Ricardo me encarou com desconfiança.
— Vou falar com nosso pai.
E foi embora.
Não entendi o real motivo de sua presença. Curiosidade? Ciúmes? Controle?
Ao final do dia, quando voltei para casa, fui recebida na entrada da mansão. O conde me esperava. Ao lado dele, Ricardo.
— A partir de hoje, não precisa mais ir ao campo de treino — disse o conde, com tom definitivo.
— Tudo bem. Eu gosto de treinar. — Minha resposta os surpreendeu.
Ricardo franziu a testa. Diogo, o mais novo, parecia sem entender nada.
— Você é uma dama! — disse Ricardo, exaltado. — Se continuar assim, vai manchar o nome da nossa família!
— Quero continuar. — Interrompi antes que o conde falasse.
— Por quê? — perguntou o conde, agora curioso.
— Porque gosto. E ainda preciso melhorar minhas habilidades com arco e flechas. Além do mais... há muitas mulheres soldados hoje em dia. Isso não vai manchar o nome da família. Vai protegê-lo.
O silêncio que se seguiu foi como uma lâmina suspensa no ar.
Ricardo cruzou os braços, a raiva queimando sob sua pele.
— Não concordo com isso.
Eu estava em apuros. Nenhuma justificativa que eu desse parecia suficiente. Mas não podia recuar. Não podia voltar à condição de prisioneira na própria casa. Ficar entre paredes era me jogar na boca da Ana e de sua filha.
Apenas uma escolha me restava: persistir, lutar, resistir.
E provar que uma dama, mesmo com sangue azul, também pode fazer sangrar.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
Ray anunciaçao
ate parece que se importa com ela
2024-09-23
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