S/N
Ele quebra o contato visual abruptamente, levantando-se e se afastando de mim. O silêncio tenso paira no ar enquanto ele desaparece em outro cômodo, deixando-me confusa e desconcertada com o que acabou de acontecer.
A ausência dele na sala parece deixar um vazio, uma lacuna de perguntas não respondidas. Sento-me no sofá desgastado, tentando decifrar as entrelinhas daquele breve momento de contato e retirada. Tudo seria mais fácil se ele apenas respondesse as minhas perguntas e me dissesse o porque eu estou aqui. Mas de uma coisa eu tenho certeza, quando o meu tornozelo melhorar, não esperarei um segundo a mais para fugir daqui!
Minutos depois, ele retorna, guardando o mesmo celular descartável — de antes — num dos bolsos de sua roupa militarizada. Em suas mãos, duas latas de feijão enlatado são carregadas e colocadas perto da lareira para serem aquecidas, enquanto o som dos trovões lá fora intensifica a atmosfera.
O homem permanece de costas, alheio à minha luta contra o frio. Tentando me aquecer, eu me abraça, mas as minhas roupas molhadas se tornam um obstáculo. O tremor perpassa o meu corpo, e seus dentes parecem bater levemente enquanto me perco em pensamentos sobre o que aconteceu na festa.
A incerteza sobre a presença da polícia intensifica-se. Me pergunta se as autoridades já sabem onde estou e se estão a caminho. A cabana, antes um refúgio, torna-se uma ilha isolada na tempestade, e a dúvida sobre o desenrolar dos eventos paira no ar, tão palpável quanto o frio que me envolve.
Ele pega a faca do seu coldre novamente e começa a abrir as latas. Em silêncio, ele se levanta e se aproxima de mim, oferecendo a comida que parece estar quente, mas não consigo sentir fome no momento, apenas recuso, balançando negativamente a cabeça.
— Estou sem fome. – Digo.
Ele estende mais o braço, ainda persistindo.
— Não.
Ele finca a faca com força ao meu lado, no braço de sofá, e volta a aproximar a lata com raiva nos olhos.
— Ou você come essa merda ou eu enfio na sua boca e te faço engolir.
Arregalo os olhos, e com receio, pego a lata das suas mãos, surpresa pelas suas palavras. Ele se vira e pega a outra lata, sentando no chão, encostado no sofá e logo começa a comer, levantando um pouco o capuz, porém, eu não vejo porque ele está de costas.
Olho a aparência dos feijões e franzo o nariz com o cheiro. Parece que estava guardado há meses, mas a validade ainda está no prazo. Deixo a lata ao meu lado enquanto escuto o som da madeira estralando na lareira e a chuva atingindo o telhado da cabana.
— Eu me chamo S/n... – Digo, mesmo sabendo que a última coisa que ele quer é conversar comigo. — S/n Sinclair.
Sorrio, pensando no quão ridículo o meu sobrenome é, principalmente porque vem de uma família soberba que se importa mais com o dinheiro do que com os próprios filhos, a minha mãe é claramente um exemplo disso.
— Antes de ser sequestrada, eu estava fazendo um show. Acredita? – Rio comigo mesma. — Estava cantando uma clássica, e eu nem gosto de música clássica.
Ele se mantém em silêncio, mas sei que escuta as minhas palavras.
— Eu estava há cinco dias no meu quarto, justamente porque a minha mãe me fez treinar a voz durante dez horas para tudo ser perfeito ontem. Mas aqueles homens claramente estragaram os planos dela. – Novamente, Sorrio, enquanto uma lágrima solitária me escapa. Eu só queria saber se ela e o meu pai estão bem.
Pego novamente a latinha, enquanto, com receio, começo a comer, sentindo o meu estômago se embrulhando, mas de longe, é a refeição mais quente que já comi na minha vida, e não por ter sido aquecida, mas porque não foi feita num restaurante caro com chefes renomados... Foi feito por um desconhecido que me mantém presa e praticamente me ameaçou duas vezes, mas isso me faz sentir mais livre do que eu era quando estava com a minha mãe.
— Essa foi a conversa mais longa que eu já tive... – Enxugo a lágrima, enquanto me calo e volto a comer.
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Atualizado até capítulo 54
Comments
Dia Cassexe
É muito triste quando filhos se tornam mero objectos, neste caso bem valioso pois gerava lucros. E os pais se esquecem do que do amor, carinho e atenção que tb fazem parte do pacote para criação dos filhos.
2024-05-08
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