Capítulo — Roxana
Três meses depois.
Três meses.
Noventa dias.
2.190 horas.
131.400 minutos.
Esse é o tempo que estou livre.
Ou pelo menos é o que eu repito todas as manhãs diante do espelho, tentando convencer a mim mesma que ele não está mais atrás da porta. Que não há mais câmeras me observando até quando durmo. Que ninguém vai arrancar as cobertas da minha cama para ver se eu respirei errado.
Eu estou livre.
Mas, por dentro, continuo em guerra.
Como prova da minha nova vida — como um manifesto silencioso contra os anos de escravidão que suportei —, eu redesenhei meu corpo. As cicatrizes que ele deixou, cada marca da sua posse, foram cobertas por tinta. Arte. Significados que só eu e Mia conhecemos. Linhas negras, flores sombrias, símbolos antigos e mulheres de olhos vendados que sussurram segredos com os lábios costurados. Uma tapeçaria de dor transformada em poder.
Meus cabelos loiros?
Mortos e enterrados.
Agora carrego fios negros como a escuridão do porão onde fui presa. Negros como a raiva que arde em mim.
Os olhos, antes azuis — cor que ele dizia serem “iguais ao céu quando eu chorava” — agora são castanhos claros. Lentes que escondem qualquer resquício da mulher que ele moldou.
Roupas escuras tomam meu guarda-roupa.
Couro. Coturnos. Jaquetas pesadas.
Tudo que ele odiava.
Tudo que me faz sentir segura.
Os primeiros dias foram um inferno.
Sair de casa sozinha era como andar nua no meio de uma multidão.
A liberdade, apesar de desejada, era um campo minado. Cada passo podia ser um erro.
Cada esquina, uma emboscada.
Mas aos poucos, eu fui tomando posse do meu corpo. Da minha vida.
Aquela coleira invisível que me sufocava…
Ela se foi.
As meninas estão se adaptando bem à creche.
Elas riem agora.
Brincam.
Aprenderam a correr e gritar sem medo — como crianças normais.
É a primeira vez, em quatro anos, que elas convivem com outras crianças.
A primeira vez que ouço uma gargalhada delas sem que seja seguida de um pedido de desculpas.
O bom de serem tão novas é que talvez não se lembrem de tudo.
Talvez esqueçam o quarto trancado.
Os barulhos da noite.
O que ele tentou fazer com elas.
Talvez.
Ou talvez nunca esqueçam.
Eu não posso me dar ao luxo de esquecer.
Quando chegamos à nova casa, uma das primeiras coisas que fiz foi ensinar Mia a se defender. Defesa pessoal. Tiro ao alvo. Postura em combate. Tudo que ele me forçou a aprender, agora é minha arma. Nossa proteção.
A moto Kawasaki Ninja H2R que comprei foi meu segundo ato de rebeldia. Liberdade sobre duas rodas. Velocidade. Vento na cara. Uma lembrança de que posso ir embora quando quiser.
Mas também comprei um SUV preto, blindado. Para transportar minhas meninas.
A casa…
É mais do que uma residência.
É um santuário.
Embaixo da cozinha, escondido sob placas falsificadas de mármore, há um bunker.
Comida enlatada, armas, munições, água purificada, um gerador independente, um telefone via satélite.
Tudo milimetricamente preparado para uma fuga.
Porque eu sei que o inferno tem memória. E fantasmas, quando não enterrados, voltam.
O que me intriga até hoje é o tal amigo do tio Marcus.
Quem é ele?
Como conseguiu tanto, tão rápido, com tanta discrição?
A casa está em nome de uma mulher que ninguém encontra. A propriedade foi comprada em dinheiro. O sistema de segurança foi instalado por uma empresa que nem aparece no Google.
Essa pessoa — esse “amigo” — tem conexões, poder, dinheiro… e uma sombra que parece me observar sem se mostrar.
Mas hoje é um marco.
Hoje, eu começo meu novo emprego.
Professora de Artes Visuais na Universidade de Riverst City.
A melhor universidade do estado.
Segundo os jornais locais, um refúgio da elite — e um ninho de cobras bem disfarçado.
Eu estava ansiosa.
Até entrar na sala do Reitor.
A secretária saiu para buscar os documentos.
E ele ficou comigo.
Sozinhos.
Faz quarenta minutos.
Quarenta longos minutos de “conversa” interrompida por uma mão enrugada subindo pela minha perna.
A mão de Nicolos St. Anderson, reitor da universidade.
Aparentemente respeitado.
Na prática, um maldito velho nojento com poder demais e moral de menos.
Ele está me tocando.
Tocando minha perna como se estivesse acariciando um troféu.
Sua respiração fede a nicotina velha e ego inflado.
O ar da sala é sufocante. Meus dedos apertam os braços da cadeira com tanta força que acho que deixei marcas.
Respiro fundo.
A fúria me inunda.
A vontade de quebrar cada osso do corpo dele é quase insuportável.
Aguente, porra.
Você precisa desse emprego.
As meninas precisam de você.
Não estrague tudo.
Regra número 1:
Permaneça nas sombras.
Não chame atenção.
Você não pode voltar a ser caçada.
— Estou de volta, senhorita Roxana. Vamos mostrar seu escritório e as salas em que irá lecionar. — A voz da secretária me resgata do transe.
Dou um suspiro interno de alívio.
Levanto imediatamente, ignorando o olhar de desgosto que Nicolos lança para a secretária — como se ela tivesse estragado seu brinquedinho.
Ele me oferece um sorriso viscoso.
Eu o encaro com frieza e devolvo um sorriso tenso e calculado.
— Obrigada pela oportunidade, senhor. — Digo com voz firme, sem emoção.
Não dou chance para mais nada. Me viro e sigo a secretária sem olhar para trás.
A mulher — alta, cabelos grisalhos presos num coque elegante — anda com passos rápidos, quase militares. Eu a sigo, ainda sentindo o cheiro do reitor em minha pele, como uma sujeira que não consigo lavar.
Percebendo minha dificuldade em acompanhar seus passos com minhas pernas curtas e costelas ainda doloridas, ela desacelera. Me olha com gentileza.
— Desculpe, querida. Estamos tentando tirar esse lixo há algum tempo. Mas parece que o "Grande Rei" o quer aqui, o que torna tudo… impossível. — Ela sussurra, com nervosismo evidente.
Eu paro.
"Grande Rei"?
Meu cérebro trava por um segundo.
Que merda é essa?
Isso é uma universidade ou uma sociedade secreta medieval?
Tem coroações, também?
Aulas de rituais satânicos às sextas-feiras?
— “Grande Rei”? — repito, franzindo a testa.
Ela sorri sem graça.
— É como os alunos chamam o reitor do conselho superior. Ninguém sabe o nome dele. Só que ele não aparece em lugar nenhum, mas tudo o que acontece passa por ele. É quase como se… ele fosse dono da cidade.
— Que merda. — murmuro.
Será que esse "Grande Rei" é o tal amigo do meu tio?
A dúvida martela, mas engulo em seco.
Não posso me envolver.
Não agora.
— Só quero uma vida tranquila — digo para mim mesma. — Uma vida normal. Sem homens. Sem assassinatos. Sem me esconder ou vigiar cada esquina.
A mulher ao meu lado me olha de canto de olho, provavelmente me achando estranha.
Mas ela não faz ideia.
Ninguém faz.
A única coisa que quero…
É criar minhas filhas em paz.
Tatuar minha alma com novos significados.
E enterrar o passado tão fundo que nem o inferno consiga encontrá-lo.
Mas uma coisa me diz que Riverst City não é tão normal quanto parece.
E que o meu passado, por mais que eu tente…
Já começou a farejar o rastro da minha liberdade.
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Atualizado até capítulo 38
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