O grito de Malu ecoava nos ouvidos de Zéper como um raio rompendo o silêncio:
— Corre!
Rúbia, mesmo sem entender a dimensão do que estava acontecendo, puxou o primo pelo braço. Malu já estava em movimento, os pés leves flutuando pelo chão como se seguissem uma dança antiga, impossível de aprender — só se nasce sabendo. Zéper hesitou por uma fração de segundo, os olhos cravados na criatura que surgira do nada, envolta em uma fumaça escura que cheirava a mofo, sangue e lembranças enterradas.
Mas o corpo dele... O corpo não hesitou.
Antes mesmo de sua mente se organizar, seus músculos se moveram sozinhos, pulando o corrimão da escada do casarão com a leveza de um caçador que salta para o bote. Rúbia gritou alguma coisa atrás, mas já estava longe demais para ser ouvido.
Malu corria na frente. Cada passo dela parecia calculado pelo próprio ar. O lenço verde-escuro balançava atrás do pescoço como um rastro encantado, e Zéper, sem perceber, ajustou o passo para segui-la. Seus pés sabiam. Seu corpo lembrava. Mesmo que sua mente ainda estivesse em nevoeiro.
Atrás deles, a criatura rugia, e com ela, vinham outras. Mais sombras surgiam dos cômodos da mansão Floriano — deformadas, famintas, e com um cheiro de maldição antiga. Os olhos de Zéper piscavam e viam mais do que os olhos comuns enxergavam. Ele via os ecos, os vultos, o que estava por trás do Véu.
— Rúbia, esquerda! — gritou Malu.
Ela não respondeu. Só virou. Seu rosto estava pálido, mas firme. Algo dentro dela também despertava, mesmo que estivesse confuso, envergonhado, e cheio de mágoa.
Malu freou num pulo quase felino, bateu os pés no chão e se virou, encarando a primeira sombra que se aproximava. Seus olhos brilharam num tom prateado, e suas mãos giraram no ar como se puxassem algo do próprio vento.
— Você não vai tocá-los. — sua voz saiu rouca, quase cantada.
As sombras hesitaram.
O ar ao redor dela mudou. Uma leve vibração tomou o ambiente, e, por um instante, até Zéper sentiu a urgência de parar. Algo ancestral ali havia acordado. Um zumbido baixo, quase um lamento de espírito, dançava ao redor de Malu.
Ela girou sobre os calcanhares, os braços se abrindo num arco, e das palmas abertas saiu um brilho negro com bordas esverdeadas. Era como observar uma mariposa gigante abrindo suas asas — mas feitas de energia, dor e memória.
— Quem é você? — sussurrou Rúbia, estagnada pelo que via.
— Alguém que lembra o que o mundo tenta esquecer. — respondeu Malu, sem desviar os olhos da criatura.
Zéper, por sua vez, virou-se para outra sombra que avançava por trás. Ele não pensou. Apenas agiu. Seus braços se ergueram numa postura estranha, meio agachado, o tronco torcido como se fosse atacar de lado.
A sombra avançou com um urro. Zéper deslizou para o lado com uma precisão instintiva, girando o corpo no ar e desferindo um chute com o calcanhar, direto na lateral da “cabeça” disforme da criatura. O som foi seco. A sombra grunhiu, cambaleou — e se desfez numa névoa escura.
Ele caiu com os dois pés juntos, uma perna estendida, a outra dobrada. A posição era... predatória. Natural.
Rúbia, chocada, nem piscava.
— O que foi isso? — disse ela, a voz tremendo.
Zéper estava ofegante. Não sabia o que tinha feito. Mas sentia... Sentia como se tivesse caçado antes. Como se tivesse nascido para aquilo.
— Eu... não sei. Eu só... soube o que fazer.
Malu sorriu de canto.
— Isso é o que somos.
De repente, um estouro explodiu no salão principal da casa. A porta da frente arrebentou em pedaços. O homem da escuridão estava ali.
— ENCONTREI VOCÊS! — gritou ele, com uma voz que parecia conter mil ecos, mil almas, mil condenações.
Zéper sentiu algo dentro do peito ferver. A marca em seu pescoço queimou. Literalmente. Ele gritou e caiu de joelhos, enquanto imagens inundavam sua mente: o rosto de uma mulher chorando, o som de um sino, o cheiro de terra queimada.
— Mãe...?
— Zeper, levanta! — gritou Malu, agora à frente dele, os braços abertos, protegendo-o com o próprio corpo.
A voz do homem da escuridão ecoou novamente, mas desta vez, mais suave, quase carinhosa:
— Malu... a mariposa. Que pena, está do lado errado da história... E você, vespa... ainda tão adormecido. Mas já começou a picar, não é?
Zéper se ergueu devagar. Seus olhos, acinzentados, ganharam um brilho âmbar profundo. Ele olhou para Malu, depois para Rúbia. E então, encarou o homem.
— Eu não sei quem você é... mas se veio atrás de mim, vai sair mordido.
As mãos dele se fecharam em punhos. O ar ao redor tremeu. Havia algo pulsando no peito de Zéper — uma fúria contida, primitiva. Algo que dormia há quinze anos e agora urrava para sair.
— Malu... — disse ele com a voz firme. — Preciso que confie em mim.
Ela assentiu.
— Sempre confiei.
Zéper respirou fundo. Se concentrou. Suas pernas dobraram, braços abertos como se estivesse prestes a atacar de lado, e seu tronco inclinou como um animal prestes a picar.
O homem da escuridão sorriu.
— Então venha, filhote da morte...
Zéper explodiu em movimento.
Um borrão. Um grito. Um impacto.
Malu seguiu logo atrás, as mãos lançando rajadas de luz escura que cortavam as sombras como vento afiado. Rúbia, com o coração aos pulos, correu para o canto da sala, protegendo-se atrás de um móvel tombado, chorando em silêncio e vendo o impossível acontecer.
A batalha se instalou como um vendaval. Zéper se movia como a vespa que o inspirava: veloz, feroz, técnico, instintivo. Seus ataques eram precisos — chutes angulados, cotoveladas letais, saltos curtos, giros agressivos. Ele era um borrão venenoso em meio às trevas.
Malu era o oposto. Evadia com fluidez, envolvia os inimigos com rajadas ilusórias, confundia-os com formas que dançavam no ar. Seus movimentos eram como de uma mariposa — inconstantes, hipnóticos, mas letais. Ela era a noite viva.
O homem da escuridão recuou por um instante, observando.
— Tão jovens... tão potentes... tão... meus.
Mas quando tentou avançar de novo, Malu levantou a mão.
— Não hoje.
Ela abriu o lenço do pescoço e o jogou no ar. O tecido girou, reluzindo numa cor que não existia. E então caiu... como um selo.
O chão tremeu. Um círculo antigo, que nem ela sabia como sabia, brilhou abaixo dos pés do homem.
— O que... você fez?! — gritou ele.
— Ganhei tempo.
Um clarão. Uma onda de energia. As sombras foram lançadas contra as paredes. O homem da escuridão rugiu de fúria, mas a luz o empurrou. A sala inteira foi envolta num brilho ancestral.
E, então, silêncio.
O homem e seus asseclas sumiram... por ora.
Zéper caiu de joelhos. Malu também. Ambos ofegantes, exaustos, suados e tremendo.
Rúbia saiu do canto, lentamente, como quem pisa num mundo novo.
— O que... o que foi isso?
Zéper olhou para Malu. Ela sorriu.
— Foi o começo.
A poeira ainda pairava no ar, partículas douradas e acinzentadas flutuando lentamente enquanto o campo de batalha se silenciava aos poucos. O chão, antes coberto por grama e terra batida, agora exibia marcas fundas, como se a própria terra tivesse testemunhado algo fora do comum. Malu, ainda com os olhos semicerrados, olhava para Zéper com um misto de surpresa e algo mais profundo — um reconhecimento instintivo, como se suas almas já tivessem se cruzado antes.
Rubia, ofegante, limpava a poeira da roupa e olhava para os dois com uma expressão que misturava medo, respeito e confusão.
— O que... foi isso? — ela perguntou, quebrando o silêncio. — Vocês... vocês não são normais.
Zéper ainda encarava as próprias mãos, sentindo-as formigar. O instinto feroz, os movimentos rápidos, a precisão — tudo veio de forma natural, sem qualquer treino formal. Ele não sabia como, mas sentia que seu corpo havia apenas respondido à ameaça. Como se dentro dele morasse algo... antigo. Selvagem. Determinado.
— Eu também não sei. — respondeu ele, a voz baixa, ainda atordoado. — Mas não foi a primeira vez que me sinto assim.
Malu se aproximou, tirando os cabelos do rosto. O lenço verde-escuro estava rasgado, mas ainda firme no pescoço.
— Você tem a marca... — disse, apontando para o lado do pescoço dele. — Igual à minha.
Zéper puxou a gola da camisa, revelando a marca em forma de espiral que sempre esteve ali. Desde que Adriana o encontrara na floresta.
— Minha mãe adotiva disse que era uma cicatriz de nascença... — ele murmurou.
Malu assentiu lentamente.
— Isso não é uma cicatriz. É um selo espiritual. Um que protege. E também conecta.
Rubia arqueou a sobrancelha, impaciente:
— Tá, tá, mistériozinho bonito de vocês dois. Mas alguém vai me explicar o que eram aquelas criaturas? E como vocês fizeram aquilo? Porque eu vi. Você se moveu como um raio, Zéper. E você — disse apontando para Malu — sussurrou umas palavras e o chão rachou!
Zéper respirou fundo e encarou Malu.
— Acho que a gente precisa conversar.
...
A conversa aconteceu horas depois, escondidos no galpão de máquinas abandonado atrás da antiga estação de trem de Linus. Um local sujo e empoeirado, mas que oferecia algum isolamento.
Sentados em cima de caixas velhas, Zéper e Malu contaram um ao outro tudo que sabiam — ou pelo menos tudo que conseguiam lembrar.
Zéper falou de seus sonhos, da voz que sempre o chamava para "encontrá-la", do clarão que Adriana disse ter visto no dia em que o encontrou, e da sensação constante de que estava sendo observado.
Malu explicou que vivia com o avô, um homem que conhecia antigos rituais e a treinava em silêncio, preparando-a para algo que nunca deixava claro. Ele morreu há um ano, e desde então ela vinha escutando vozes e vendo vultos em espelhos. Sempre teve controle sobre sombras e conseguia invocar pequenas mariposas etéreas para confundir os outros — coisa que ela descobriu acidentalmente aos nove anos.
— Meu avô me dizia que eu era como a bruxa brasileira — sussurrou ela. — Uma mariposa de hábitos noturnos, que dança entre os mundos. Ele dizia que eu tinha algo da minha mãe, que nunca conheci.
Zéper olhou para ela com atenção. O jeito como ela falava das sombras, da dança e do véu entre os mundos... era tão natural quanto sua própria ferocidade instintiva.
— E eu? — perguntou ele. — Sinto... sinto como se dentro de mim houvesse algo querendo sair. Algo veloz. Preciso. Mortal.
Malu olhou diretamente para ele, os olhos acinzentados brilhando.
— A Vespa Caçadora. — disse ela, como se recitasse uma revelação. — A mais feroz das criaturas. Que caça aranhas maiores que ela. Que injeta o veneno, paralisa, e arrasta sua presa até o ninho. Você luta como ela. Ataca com precisão, como se já tivesse feito isso mil vezes.
Zéper ficou em silêncio por um tempo. Aquilo fazia sentido de um jeito estranho. A velocidade, a agressividade, o foco... era tudo tão familiar. Como se fizesse parte de sua própria biologia.
— Então... somos o quê? — perguntou Rubia, que ouvia tudo encostada numa pilastra. — Criaturas? Experimentos? Maldição?
— Somos sobreviventes — disse Malu. — E estamos sendo caçados.
Nesse momento, o chão tremeu levemente. Malu imediatamente se levantou.
— Eles nos encontraram. Sentiram o ritual. Aquele ataque foi só um teste. Os verdadeiros Caçadores do Clã Escuro virão agora.
Zéper cerrou os punhos.
— Então vamos enfrentá-los.
— Não, ainda não — respondeu ela. — Não até descobrirmos como ativar os selos. Precisamos encontrar o lugar onde tudo começou. Preciso te mostrar algo. Vem comigo.
...
Guiados por instinto e por uma memória antiga, Malu os levou por trilhas escondidas, por vielas esquecidas da cidade, até chegarem às ruínas de um antigo templo, coberto por mato e entulho. Era o que restava da antiga Capela da Luz, construída por famílias espirituais séculos atrás, hoje esquecida.
— Aqui é onde tudo começou. Onde fomos batizados. Onde... nossa família foi destruída.
Zéper sentiu o ar se tornar mais pesado. O cheiro de incenso antigo ainda pairava. E ali, sob uma laje rachada, havia um símbolo desgastado: as sete chaves. O mesmo símbolo que aparecia em seus sonhos.
— Como você sabe disso? — ele perguntou.
— Eu me lembro. Da voz da minha mãe. Do sangue. Do ritual. E de você, ao meu lado, envolto em luz.
Malu se ajoelhou e tocou o símbolo.
— Eles nos mandaram embora. Mas algo foi deixado para trás. Algo que só podemos acessar juntos.
Zéper se aproximou, e quando os dois colocaram as mãos sobre o símbolo, uma rajada de vento surgiu do nada. A terra tremeu. E do chão, ergueu-se uma coluna de pedra com inscrições antigas. Dentro dela, uma caixa de metal escuro, trancada por um selo mágico que se desfez assim que ambos se aproximaram.
Dentro da caixa: dois pingentes.
Um, em forma de mariposa.
Outro, em forma de vespa.
Ambos pulsavam uma energia antiga, viva, como se estivessem esperando por eles desde sempre.
Zéper pegou o dele. No instante em que tocou o pingente da vespa, uma onda de energia percorreu seu corpo. Suas pupilas se dilataram. Seus músculos reagiram. Sentiu o cheiro do ar. O som dos grilos a quilômetros. Seu corpo estava acordando.
Malu pegou o da mariposa e, imediatamente, sombras suaves se ergueram ao seu redor. A brisa noturna dançava ao seu redor, e sua presença se tornava etérea, como se estivesse parcialmente no mundo espiritual.
Rubia recuou.
— Agora vocês estão mesmo... diferentes.
Malu sorriu de leve.
— Agora somos completos.
Zéper olhou para o céu. Sentia-se mais inteiro do que nunca, mas também sabia que aquilo era só o começo.
— Eles virão de novo. Mais fortes.
— E nós também estaremos. — respondeu Malu.
Ao longe, uma névoa escura começava a se formar no horizonte. A caçada ia começar.
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Atualizado até capítulo 20
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