CAPÍTULO 5

TORTURA

Segunda-feira, 4 de maio de 2015

Trabalho antes da Era Medieval era considerado um instrumento de tortura e, enquanto, eu entro no elevador para ir ao quinto andar, sinto como se fosse mesmo. Não gosto da náusea que se instala na base do meu estômago e nem do fato de acordar mais cedo que os meus colegas para evitar olhares em minha direção.

A Clark Company é uma multinacional com um polo em Normist do setor de tecnologia digital e designer. É uma empresa da minha área ou, deveria ser. Possuo mestrado em Inteligência Artificial, porém, quando apareceu a vaga, fiz um curso de gestão de pessoas e recursos humanos. Meu plano era no futuro migrar para minha área. Pelo menos, o emprego me permitiu ter tempo para os estudos e pagar por eles.

Aos vinte e um anos, já deveria ter o meu doutorado, mas tranquei o curso ano passado, em meio a primeira crise que tive. Arrependo-me por ter feito, embora não tenha voltado a estudar. Foi a primeira vez que a palavra procrastinação me perseguiu.

Eu não gosto de trabalhar na Clark Company, mas posso dizer que tirando o fato de que antes de todas as reuniões eu passo mal, sou boa no que faço. Trabalho no Recursos Humanos, mais especificamente, demito pessoas. Antes, precisava interagir com cada pessoa demitida, contudo, após algumas crises de ansiedade, palavras insensíveis segundo meu chefe e possivelmente um processo para a empresa, fiquei responsável por analisar relatórios de produtividade, comportamento profissional e outros requisitos necessários para trabalhar aqui.

Demissões não são raras, por isso o fato de que eu analiso cada dado que me é entregue sobre os funcionários, acompanho de perto o progresso depois de avisá-los e, o processo de demissão precisar de um bom embasamento, não sinto peso na consciência. Trabalho é trabalho, não é mesmo?

A filial em Normist não é tão grande, emprega mais ou menos cem funcionários. Sou gerente, recebi a promoção a dois anos, o que me garantiu uma sala pequena, mas não um aumento substancial de salário. Andrea é minha assistente a um ano, foi transferida do financeiro para o recursos humanos depois de algum desentendimento que não dei importância. Compartilhamos a sala. Hoje, ela está atrasada.

— Bom dia, senhorita — diz esbaforida, abrindo a porta.

Eu a ouço antes de chegar, batendo seus saltos vermelhos — sua marca registrada — no piso. Ela é a típica assistente: boa aparência, simpática e fiel. Arrisco dizer que ela é uma famme fatale; pelo menos, faz muito sucesso com o sexo oposto. É a pessoa mais informada sobre os assuntos pessoais desta empresa. Quanto a sua eficiência, cumpre as tarefas que passo, mas em um tempo questionável. No entanto, é injusto esperar que ela faça no mesmo tempo que eu.

— Bom dia — respondo, mas não levanto os olhos.

Sei que os funcionários, por mais simpáticos que sejam comigo quando apareço pelos corredores, chamam-me pelas costas de Robótica. Andrea achou que era necessário me contar isso. Também sei que do seu jeito amigável, ela me defende.

Ela é a pessoa com quem eu mais passo tempo, com visitas ocasionais do diretor de recursos humanos, Erick Thomas. Ele tem seus quarenta e cinco anos, os cabelos já começaram a cair, é magro mais que o aconselhável e é gentil, tão gentil quanto alguém que demite pessoas deve ser, mas ele sabe se impor, como sabe. Ele poderia ter me demitido quando estraguei uma reunião, mas ele não me rebaixou nem demitiu, só me deu outras tarefas para executar.

— Preciso que olhe as planilhas deste mês e faça gráficos com as informações. Imprima também os documentos que te mandei por e-mail — digo para Andrea. Ela provavelmente vai levar o dia inteiro para realizar a tarefa.

Ela assente e começa a trabalhar. Abro meus e-mails, olhando de um por um. Vejo algumas propagandas, recomendações, reclamações e uma de Erick Thomas.

erickthomas@clarkcompany

Assunto: ASSÉDIO SEXUAL

Cara Srta. Alone,

Recebi uma acusação anônima muito grave referente a uma de nossas analistas, Srta. Rosemary, sobre um possível caso de assédio sexual promovido por um de nossos diretores, Sr. Willians.

O fato de não recebermos tantas denúncias como esta e, as gestões anteriores não darem a devida atenção aos casos, mostra nossa ineficiência na atuação. Não quero, como acredito que todos os funcionários dessa empresa também não querem, que a empresa fique com o nome manchado por casos como esse.

Sendo assim, espero que investigue com a maior dedicação possível. Está autorizada a falar com os funcionários desta empresa, no entanto, faça perguntas diretas somente a quem achar que possa ter alguma informação. Peça sigilo. Também não queremos que caso a acusação se mostre infundada, respingue na reputação de Sr. Willians.

Atenciosamente,

Diretor dos Recursos Humanos.

Sei que caso a denúncia tenha procedência e consigamos provar, demitindo o diretor, Erick vai fazer uma bela reputação no meio empresarial. E com incompetência, ele quis dizer que os casos são acobertados, no histórico da empresa as denúncias nunca foram a frente contra os executivos. Tenho noção de quanto o meio em que trabalho é machista, principalmente, quando sou mais inteligente e eficiente que todos os homens (e mulheres) nessa empresa juntos, meu QI está de acordo.

Chega uma nova mensagem em minha caixa de entrada, é Erick Thomas de novo. Duas mensagens em um dia geralmente significam problema.

erickthomas@clarkcompany

Assunto: TRABALHO SEMANAL

Cara Srta. Alone,

Não poderei ir ao escritório esta semana, por isso, confio em sua capacidade de liderança para manter tudo organizado.

P.s.: por favor, seja gentil, aborde-os com a delicadeza que o trabalho exige.

Atenciosamente,

Diretor dos Recursos Humanos.

Ele deveria confiar na minha capacidade de organizar, não de liderar. Não pretendo ver ninguém a mais do que o meu salário exige. Por sorte, — ironia é uma ferramenta muito útil — o Recursos Humanos é o setor com mais problemas e com menos funcionários. O que vou fazer? Não sei ainda. Preciso fazer uma lista.

Sei que o Sr. Thomas me deixou em uma posição delicada, não posso recusar o meu trabalho, mas casos de assédio quase nunca vão para frente e os responsáveis pelo caso são demitidos. Se eu não fizer as coisas com cautela, Rosemary e eu vamos sair sujas e Erick vai continuar no seu cargo. Por hora, deixo de lado esse assunto.

Alongo minhas costas em uma tentativa fracassada de espantar a tensão. Olho para o lado e vejo a mesa de Andrea um verdadeiro caos com papéis cobrindo toda a superfície de forma desordenada. Já a minha permanece organizada ao extremo. Não tenho objetos pessoais além de uma miniatura de um astronauta feito de plástico e metal.

Faço uma lista personalizada com cinquenta itens a serem cumpridos para cada funcionário e com isso, perco uma hora de trabalho. Peço que Andrea os comunique que eu serei a responsável por tirar suas dúvidas e auxiliar em suas tarefas durante a semana e, peço que entregue as listas, cada uma devendo ser cumprida em um prazo de dois dias. Entrego meu endereço de e-mail também para que Andrea repasse junto com as informações.

Se eu quiser sair as cinco horas como todos os dias, preciso trabalhar na hora do almoço. Por isso, peço a Andrea que compre um suco e um sanduiche para mim. As horas passam rápido, antes de mergulhar no caso do assédio, coloco o trabalho da semana em dia. Recebo vários e-mails reclamando que cumprir as tarefas da lista são impossíveis em tão pouco tempo, eu discordo e sou bem efusiva na resposta.

Considero que estou ajudando os funcionários a lidar com o gerenciamento de tempo, ferramenta importante se você quiser enriquecer ainda mais a burguesia e aprender a lidar com outros aspectos da vida, nos quais, parece que eu não entendo muito.

— As pessoas estão muito descontentes lá fora — diz Andrea, roendo as unhas.

— Elas podem ficar descontentes, contanto que o trabalho seja feito — dou de ombros.

Ela assente, desconfortável.

— Entendo.

— Que bom — respondo.

São dezesseis horas e trinta minutos quando olho no relógio, preciso ir para casa. Odeio a sensação de pressa que se apodera de mim quando o fim do expediente está chegando. Meu celular vibra indicando uma nova mensagem. Quem poderia me enviar uma mensagem quando ainda estou trabalhando? Vou bloquear o número quando chegar em casa.

Várias mensagens chegam em seguida chamando atenção de Andrea e a minha, é a vez de ela ficar confusa. Acho que nunca viu meu celular sendo tão assustadoramente social. Suspiro e, quebro minha regra de não olhar o celular no trabalho a menos que seja uma emergência, e abro a conversa. É o grupo que Alex fez com os vizinhos e eu. Achei que teriam deletado a essa altura.

Quer tomar uma bebida aqui em casa, hoje à noite, gata? Vai ter um rock pesado.

Alex – 16:34

Vários carinhas felizes de Killer acompanham o convite. Arqueio a sobrancelha em deboche, Andrea parece muito curiosa.

Não vamos tocar a música que você desgosta.

Sagan – 16:37

Devo estar sorrindo, porque Andrea está quase se debruçando sobre a mesa para ler minhas mensagens.

Respondo sendo sincera, algo que provavelmente, eles desconhecem.

Como a casa está? A mesma bagunça de sexta? Deveriam considerar limpá-la antes de convidar as pessoas para uma social, mesmo que depois vocês precisem limpá-la novamente. Com estimas, Alone.

Alone – 16:39

Espero por uma resposta pelos próximos vinte minutos, mas ela não chega. Acredito que devem estar limpando a casa. Meu objetivo foi alcançado.

Falar com Alex, killer e Sagan me faz lembrar da apresentação que farão na quarta. Como acredito que Hole’s Beer é um buraco sujo, imagino que não terão um grande público, talvez eu possa ajudar com isso.

— Andrea, os funcionários saem as quartas-feiras para interagirem socialmente? — pergunto, mesmo sabendo que sim. Eles não saem as sextas-feiras a noite, depois do trabalho, porque esse é o horário que a sociedade impõe que deva ser gasto com relações mais produtivas que as profissionais. Ou, acabo de me dar conta, deveriam sair justamente pelo mesmo motivo.

— Sim. Sempre escolhemos algum bar ou algo assim.

— Já foi no Hole’s Beer? Na quarta vai ter apresentação de uma banda de rock nova na cidade. Eles são bons. — Considerando que só ouço a mesma música todos os dias e que nunca os ouvir cantar. Claro, não digo a ela.

Ela abre a boca duas vezes, antes de responder.

— Ah, vou sugerir para o pessoal.

— Que bom. — Dou o assunto por encerrado e volto minha atenção aos papéis em cima da mesa. Parecem ter acumulado de forma espantosa.

Faltam quatro minutos.

— A senhorita vai assistir o show? — indaga, ansiosa.

— Naquele lugar cheio de doenças? — pergunto com desdém. — Claro que não!

Que ideia mais absurda, não sei o que precisaria acontecer para colocar os pés naquele estabelecimento. Meu celular vibra, olho a mensagem esperando um agradecimento.

Essa é uma das regras de convivência que você sugeriu serem a base para qualquer relação saudável entre vizinhos? Limpeza?

Sagan – 17:08

Enquanto caminho pelos corredores de cabeça baixa evitando contato visual com qualquer pessoa que apareça no meu caminho, monto uma lista mental com as regras para manter uma relação saudável, como disse Sagan. Não me contenho e escrevo um rascunho.

ACORDO DE CONVIVIO ENTRE VIZINHOS

1 – A música deve ser tocada entre as 21:00 e 22:00, sem passar desse horário. Qualquer alteração deve ser informada com antecedência de 24 horas e somente executado, caso os envolvidos estejam de comum acordo.

– Qualquer som diferente do já acordado entre as partes deve ter horário definido.

– Caso, por ocorrência, uma das partes queira fazer uma confraternização, deverá manter os sons controlados sem atrapalhar a rotina dos envolvidos.

– Em relação ao subtópico 1.1 do tópico 1, os horários sugeridos são: das 08:00 às 17:00 em dias de semana; das 19:30 às 20:30 em dias de semana. Nos finais de semana, quaisquer referências a perturbações sonoras devem ser evitadas, de preferência que os envolvidos saiam para lugares que proporcionem diversão.

1.3.1 – Caso as partes queiram saber quais são os lugares citados na subseção 1.3, eles são: casas noturnas, bares ou quaisquer estabelecimentos que tenha como objetivo proporcionar prazer como forma de captar recursos financeiros.

2 – Limpeza em casa é o básico para convidar uma pessoa para uma confraternização. Inclui-se também, neste tópico, o quintal da casa para evitar animais indesejáveis, considerando o bem-estar do vizinho.

Envio o arquivo no grupo para eles darem uma olhada, ficarem cientes de como devem agir para se encaixar socialmente e como será nosso acordo. Espero meus agradecimentos, mas eles estão demorando a responder.

Façam bom proveito! Vou escrever o arquivo final e enviar a vocês ainda essa semana. Por nada.

Alone – 17:20

Chego em casa no tempo previsto. Abro a lista de segunda-feira, mesmo sabendo que vou fazer a mesma coisa que fiz semana passada. Ouço uma movimentação de carros na rua, deve ser a maior em anos. Abro a janela e vejo alguns carros estacionados na rua, um fluxo constante de pessoas saindo e entrando da casa de Sagan, Killer e Alex. Às dezenove horas e meia a música está tão alta que não consigo ouvir os meus pensamentos.

Dezenove horas e meia? Só pode ser alguma piada, acabei de enviar um documento que diverge das ações deles. Acho que se o corpo humano expelisse fumaça pelas orelhas, eu estaria poluindo a camada de ozônio. Penso em mandar um longo texto descrevendo com exatidão minha opinião sobre relações humanos e como elas devem ser exterminados para o bem do planeta, mas conto até três. Palavras tão sensatas quanto as minhas não serviria para nada. Perderia um tempo precioso.

Também não posso ir até a casa deles com tantas pessoas lá, só em imaginar tenho calafrios. Pensando em todas as formas como posso sumir com pessoas, sem ser descoberta, modifico minha lista, coloco sapatos de caminhar e vou para a biblioteca. Ao menos, quando chegar lá, vou estar sozinha e rodeada por conhecimento. Às dez em ponto vou voltar para casa e se a música estiver alta, terei que chamar a polícia.

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Comments

Kim Rodrigues

Kim Rodrigues

Me lembra muito o Sheldon, muitas pessoas são assim, infelizmente são muito criticados na sociedade. Que ninguém entende

2023-03-27

1

José Erasmo De Freitas Lima

José Erasmo De Freitas Lima

Bem dramática kkk

2023-02-07

0

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