Parece que a maré de azar ainda não acabou

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A terça começa comigo me espreguiçando e olhando pela janela o dia ainda escuro.

Respiro fundo e dou uma boa alongada na coluna antes de me levantar e ir pra mais um dia de luta. Depois do banho e de engolir um iogurte, eu sigo pra guerra que é chegar naquele fim de mundo.

Assim que piso na indústria eu avisto Renato parado no mesmo lugar de sempre. Ele vigia a produção da padaria com as mãos pra trás, e me olha dando um sorriso de canto, aproveitando pra me dar uma piscadinha discreta. Eu faço como todos os dias.

- Bom dia.

É só, não vai ter alarde do nosso envolvimento aqui.

Passo por ele e escuto de maneira sussurrada:

- Se é assim que você quer, é assim que vai ser. Contanto que na minha cama seja você bem pertinho de mim.

Dou uma olhada pra trás e também dou um sorriso de canto.

Ando até a parte da expedição.

- Bom dia, flores do dia!

João estreita os olhos pra mim e eu o encaro levantando a cabeça. Ele é alto pra cacete.

- Que foi? Viu um passarinho verde nesse final de semana?

Faço uma gracinha.

- Era multicolor.

Os meninos soltam uma risada e eu vou resolver minha vida.

********

- Olivia, preciso que você me dê uma força lá no chão da padaria. A Maria não veio hoje, ela vai ficar afastada por um tempo, vai fazer uma cirurgia pra retirar um mioma do útero.

Nossa, que bom que ela vai conseguir resolver esse b.o. A coitada sofre com isso há anos já, é tão batalhadora, criou os filhos sozinha e só agora que estão adultos e que vai poder se cuidar.

- Claro.

Pego meu carrinho com meus produtos e ando até lá.

*******

- É Olivia seu nome, não é?

Me viro e reparo no cara operando o túnel. É uma máquina grande, que enrola o pão no formato correto e joga ele em uma esteira pra entrar em um ultra congelador e sair de lá pronto pra embalar.

- Isso mesmo, tá precisando de alguma coisa?

Ele sorri pra mim.

- Você pode me arrumar um daqueles panos descartáveis e o produto pra limpar a máquina?

Deixo minhas coisas em um canto e vou até o estoque arrumar o que ele me pediu, quando volto e o entrego, ele me agradece e diz:

- É Leandro.

Franzo a testa sem entender.

- Meu nome. Sei que você não me perguntou mas eu nem me apresentei.

Ah, nossa, como eu sou lerda.

- Ah, claro. Prazer Leandro. Você não tem muito tempo aqui, não é? Não te conheço.

Leandro tem uma pele café com leite e um sorriso bonito. Deve ter um piercing na sobrancelha esquerda, eu consigo perceber os furinhos e os risquinhos com a navalha dando um designe diferente.

- Tenho um mês e meio.

Enquanto ele limpa a máquina e eu o chão nós vamos conversando.

- Quê que é isso? Reunião?

Olho pra Renato e reviro os olhos de maneira discreta.

Ele está colocando as mãos nos quadris e nos encarando. Não é ciúme, é o jeito dele no trabalho, mas eu não tenho paciência alguma e ele sabe, aliás, todos eles sabem.

- Não, são duas pessoas trabalhando com as mãos e conversando ao mesmo tempo.

Renatinho arqueia um sobrancelha pra mim.

- Vocês podem trabalhar agora e conversar depois. Leandro sabe que eu não gosto de gente perdendo tempo aqui, e tenho certeza de que Fernando também não gosta de vocês conversando por essa indústria.

Ah, miserável.

- Fernando sabe que sou perfeitamente capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Você também deveria conhecer seus funcionários.

Termino de secar o chão e saio de perto.

Tem razão do pessoal dessa padaria ter ranço desse homem, que encarregado chato da p*rra!

Sinto meu celular vibrando na minha cintura.

Como não posso mexer nele na frente das câmeras, eu vou até a sala onde deixamos os carrinhos já que lá não tem vigilância e abro a mensagem que chegou no whatsapp. É dele. Aproveitou que pode mexer no celular na vista de todo mundo e me mandou.

📲 - Mulher difícil. Vamos tomar uma hoje aproveitando o feriado de amanhã?

📲 - Não sou difícil, você que é chato demais com esses meninos. Custa ser um pouco mais gente boa?

📲 - Ele pode dar em cima de você em outra oportunidade. Durante o turno de trabalho e na minha frente, não.

Ah, pronto!

📲 - 🙄

📲 - Kkkkkk deixa de me enrolar e me responde.

📲 - Tá bom, eu vou.

📲 - Ótimo. Fica de hora extra, a gente vai lá pelas dezessete e trinta que aí a maioria do pessoal já foi.

📲 - Beleza.

*******

Quando o turno acaba eu visto a minha calça jeans outra vez e o body preto de manguinhas que coloquei de manhã.

Dou uma ajeitada na cara e me ajeito ao máximo pra sair com Renato.

Sinto meu celular vibrando mais uma vez.

📲 - Te encontro no estacionamento em dez minutos.

Decido não passar nada na boca porque sei que vou beijar horrores.

Saio da porta da frente do vestiário e ando pelo corredor, mas paro de repente quando Lucas se põe na minha frente.

- Ai que susto garoto!

Ele me encara por uns instantes e franze a testa.

- Esperei por você desde o final do turno e não te vi saindo, o que aconteceu?

Fecho a cara pra ele.

- Não vejo o porquê de você estar me esperando.

Desvio dele e ando apressada, mas Lucas agarra meu braço direito me fazendo parar outra vez. É aí que sinto meu celular vibrando.

💭Merda!💭

Lucas me indaga mais uma vez e eu respondo:

- Você não tem que saber da minha vida, não tem que me esperar e nem nada disso.

Renato deve estar me esperando, o telefone está vibrando sem parar. Preciso me livrar de Lucas depressa.

Continuo andando apressada e ele vem atrás.

- Olivia, não finja que não me conhece. Nós dois ficamos juntos por muito tempo, não é como se tivéssemos nos beijado uma única vez.

Não consigo conter uma risada de deboche enquanto continuo sem olhar pra trás.

- Engraçado você falando disso, pois foi exatamente assim que o senhor agiu comigo.

Desço pelo caminho em direção à cancela e pego meu celular dentro da minha bolsa. Tem três chamadas perdidas de Renato, e mais duas mensagens perguntando onde estou.

Ele deve ter ido embora.

Droga!

📲 - Me desculpa, eu tive um imprevisto aqui. Não quis te fazer esperar, sério mesmo.

Lucas continua atrás de mim feito uma sarna.

De repente meu telefone toca outra vez.

📲🔊 - Cadê você gatinha? Ainda estou aqui te esperando.

📲🔊 - Do lado de fora da cancela.

Guardo o aparelho na bolsa outra vez e tento chegar no lugar que falei que estaria mas Lucas me para outra vez.

- Com quem você estava falando?

Ah, meu saco!

Decido ignorar meu ex namorado irritante e galinha.

- Anda Olivia, me diz!

Ele segura no meu braço com um pouco mais de força, meio que me sacudindo e eu me assusto. Lucas nunca foi desse tipo, e nunca pensei que pudesse ser.

- Algum problema?

Renato para o carro e sai de trás do volante.

- Cuida da sua vida, Renatinho.

Engulo em seco e olho pra dentro da guarita. Não há um daqueles miseráveis por perto, um inferno!

- Solta ela, Lucas.

Lucas me solta e encara Renato.

- *Vocês estão tr*nsando*?

Renato solta uma gargalhada.

- Não preciso estar tendo nada com Olivia ou com qualquer outra mulher que seja pra livra-la de um babaca. E eu devo te lembrar que ainda estamos dentro da empresa, você pode não ser meu subordinado mas ainda assim eu sou um encarregado nessa indústria. Minha vida particular não te diz respeito, porque ao contrário de você eu sou discreto e respeito meu ambiente de trabalho.

Renato se vira pra mim.

- Entra aí, eu vou te dar uma carona até um local seguro e pode deixar que amanhã as providências vão ser tomadas por causa disso aqui.

Me apresso a sentar no banco da frente, feliz por ele ter chegado e mais feliz ainda por não ter confirmado nada entre nós dois.

Renato entra também e se acomoda no banco do motorista.

Assim que ele sai do terreno da indústria eu solto ar com força.

- Preciso me desculpar e agradecer.

Ele me olha com uma ruga na testa e eu digo:

- Preciso te pedir desculpas por causa da cena horrorosa que você presenciou agora. E preciso agradecer por me ajudar com aquele imbecil.

Renato estala a língua e nega com a cabeça prestando atenção na estrada.

- Não precisa se desculpar e nem me agradecer. Posso te fazer uma pergunta?

Digo a ele que sim.

- Lucas sempre agiu assim com você?

Retorço uma careta.

- Não, ele nunca fez esse tipo de coisa. Me assustou bastante esse comportamento vindo dele.

Depois ele muda de assunto.

- Quer ir a algum lugar, ou quer levar a comida e a bebida pra minha casa?

Mordo de leve meu lábio inferior.

- Pode ser na sua casa? Acho que não tenho ânimo mais pra sair .

Ele me olha e dá um sorriso sem mostrar os dentes.

- Se você não quiser fazer nada eu te deixo em casa. Sem problema algum.

Nego com a cabeça.

- Quero ficar com você hoje, só não estou muito bem pra sair.

Renato pisca pra mim e no caminho pra casa dele nós paramos em um lugar pra pegar o que comer e uma cerveja.

**********

- *P*rra Oli, você é gostosa demais*.

Estou por cima de Renato enquanto movimento meus quadris em uma rebolada ritmada.

Ele me aperta com as duas mãos e eu vejo o desejo estampado no rosto dele enquanto suor escorre por minhas costas.

- *G*za pra mim, Oli*.

Abro um sorriso.

- Só se você vier junto comigo.

**********

É quinta feira de manhã e eu tenho o desprazer de encontrar com Lívia, a ex namorada de Renato.

💭O que será que essa infeliz está fazendo aqui agora cedo?💭

Pego meu uniforme na lavanderia e sigo até meu armário.

Não demora muito e Lívia vem falar comigo, ela vestiu o uniforme e fez questão de colocar a touca azul clara. Quer mostrar pra mim que é minha superior aqui dentro.

- Fiquei sabendo que você saiu daqui com Renato na terça feira.

Reviro meus olhos e tiro minha blusa pra colocar a de uniforme.

- Bom dia pra você também, Livia.

Ela cruza os braços e me encara com deboche.

- Ele me ajudou com uma situação chata e me deu uma carona, então sim, nós saímos daqui juntos.

Lívia me olha de cima a baixo enquanto visto a calça e me preparo pra calçar a galocha.

- Estão tendo algo ?

Junto meu cabelo dentro de uma touca de cetim antes de colocar a de uniforme por cima.

- Me desculpa Lívia, mas não consigo entender no quê minha vida pessoal possa te interessar.

Ela coça o nariz em um claro sinal de irritação.

- Então vocês estão tendo algo mesmo.

Amarro a touca do uniforme e reviro meus olhos.

- Eu já te disse o que aconteceu e estou te lembrando que minha vida fora dessa empresa é só minha, é uma questão particular e pronto. Agora se você me dá licença, eu preciso trabalhar.

Não quero ficar sozinha com ela dentro do vestiário onde não tem câmeras, Lívia é ardilosa o suficiente pra armar uma cena comigo e depois mentir dizendo que a culpa é minha.

Passo pela barreira sanitária, pelo controle de qualidade e sigo andando pra fazer o meu trabalho. Quando tenho um tempo eu dou um jeito de andar pelos corredores vendo se encontro a equipe subordinada dela fazendo hora extra e não me espanto quando não vejo ninguém.

💭 A filha de uma égua veio aqui sem motivo algum, só pra me questionar sobre eu ter saído daqui com o Renato💭

Respiro fundo contendo a raiva de Lucas. Isso é coisa dele, era o único me vendo sair daqui na terça. Deixo minhas coisas em um canto e vou até a lavanderia buscar uma japona.

Vou atravessar essa indústria toda, mas vou pegar aquele infeliz de jeito.

Passo pela barreira sanitária dos frios e ando pelos corredores até chegar na sala em que ele opera. O avisto na penúltima porta operando um fatiador. Entro na sala procurando a câmera e me posicionando bem em frente a ela que é pra mais uma vez não dar munição pra ninguém contar mentiras ao meu respeito.

- Só vim pra te dizer uma coisa: a minha vida não te diz mais respeito e eu acho bom você parar de falar dela pra outras pessoas. Acabei de ser incomodada por causa dessa sua língua grande e eu não vou admitir mais isso aqui.

Lucas para o movimento e me encara pra me responder em um tom carregado de deboche.

- Que foi? Está incomodada porque seu romance com o Renatinho foi descoberto?

Solto uma gargalhada mais carregada ainda de deboche do que ele.

- Romance? Ah, pelo amor... Graças a Deus que ele apareceu e me livrou de você. Estou te avisando pra parar de falar sobre o que não sabe, ou eu vou tomar minhas providências pra te afastar bem de mim.

***********

Depois do almoço Fernando vem falar comigo.

- Oli, será que você pode me acompanhar?

Ele está meio sério e isso me deixa apreensiva.

- Pode falar.

Mal consigo esperar por nós dois parando em canto afastado.

- Lívia fez uma reclamação formal de você. Disse que você faltou com respeito com ela.

Coloco minhas mãos no rosto e depois conto o que aconteceu na terça e hoje.

- Olha Olivia, eu fiquei sabendo que Renato também reclamou formalmente de Lucas por conta desse desentendimento na terça. Inclusive ele pediu pra anexarem as imagens da portaria nessa reclamação, mas como você e Lívia tiveram um embate em um lugar que não tem câmeras vai ser sua palavra contra a dela.

Fernando me diz que Lucas vai assinar outra advertência por conta do comportamento agressivo que teve comigo, agora ele está por uma só de ser mandado por justa causa.

Mas eu estou pouco me f*dendo pra ele, o meu problema é o meu lado. Como eu já disse aqui eu fiquei com muitas dívidas por conta da doença da minha mãe, não são só os credores com CNPJ, tem pessoas que me emprestaram dinheiro e eu estou honrando meus compromissos, não posso me dar ao luxo de ficar desempregada agora. Sem contar o bendito aluguel. Eu me mudei pra um lugar menor, de dois cômodos só, que era pra enxugar a despesa depois que minha mãe partiu, mas mesmo assim é um compromisso e tanto.

O fato daquela infeliz reclamar de mim vai me colocar em uma situação desconfortável, se eles acreditarem nela eu vou sair daqui com uma mão na frente e outra atrás.

- Fernando, me ajuda. Eu não fiz nada com ela, apenas disse que minha vida particular não é da conta dela. O problema todo dessa mulher comigo é por causa de macho.

Fernando solta o ar com força enquanto cruza os braços.

- Eu vou ver o que faço por você, prometo que vou te ajudar.

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