Poço Vermelho Sangue

Os dias foram a passar e finalmente chegou a minha encomenda.

Precisei organizar-me, fui trabalhar, deixei o meu filho na casa de parentes, quando cheguei do trabalho preparei-me para utilizar a medicação.

Era necessário estar em jejum, porém não consegui, os sintomas da gravidez faziam-me sentir enjoo, tontura e pressão arterial muito baixa.

Logo por volta das duas horas da tarde no domingo, eu tomei o primeiro comprimido, cerca de meia hora depois já comecei a sentir cólicas, mesmo assim levantei-me, a minha avó começou a fofocar com a minha tia sobre mim, fiquei furiosa e muito triste, comecei a limpar o quintal e recolher roupas no varal, a dor foi aumentando.

Comecei a ficar com a visão embaraçada como se estivesse prestes a desmaiar, comi uma maçã e deitei-me, era por volta das 18:00 eu tomei a segunda dose da medicação, e logo adormeci.

Eram quase 21:00 horas, a minha barriga endureceu como pedra, eu sentia a dor mais terrível e perversa de toda a minha vida, comecei a ter tremores, vômito e diarreia, sentia fraqueza, calafrios e medo, eu estava sem energia elétrica na minha casa, estava a realizar o procedimento abortivo sem condições alguma, estava no escuro, utilizando apenas velas; estava amedrontada, o meu maior pesadelo seria morrer ou precisar de auxílio médico, tinha medo de ir presa e responder um processo caso precisasse de ir ao hospital.

Comecei a ficar aflita, eu sentia muita dor, não encontrava uma posição confortável, o absorvente estava sem sangue, não saia o feto, comecei a delirar de tanta dor, mordia o travesseiro para evitar de fazer barulho, as contrações eram horríveis parecia que meus ossos estavam sendo moídos. Quase 1:00 da madrugada comecei a jorrar um líquido, não demorou muito e finalmente consegui expelir o feto, o saco gestacional e todo material da gravidez.

Tomei um banho frio depois de tudo eu ainda sentia cólicas e meu corpo liberava coágulo de segue, foi uma noite longa, eu precisei trocar o absorvente três vezes durante aquela noite.

Acordei por volta das oito da manhã, minha cama estava ensopada de tanto sangue, sangue vermelho, com coágulos parecido com fígado, não tinha cheiro, apenas intenso, vermelho intenso.

Dói, minha alma ainda dói, eu me sinto frágil, foi necessário, eu preciso escrever sobre isso, eu preciso expor para fora o sentimento da perda, o sentimento da dor, o luto invisível.

Naquele dia eu me senti estranha, parece que estava faltando algo dentro de mim, e também a sensação de estar mais magra e sentir a barriga murcha vazia, eu não tinha mais os sintomas de gravidez, eu estava bem em relação a isso, mas minha alma estava abalada.

Sou a favor da legalização do aborto por tudo que eu passei, eu poderia ter morrido, poderia ter me tornado mais uma mera estatística.

O meliante com quem eu me relacionei ele tinha culpa e não quis assumir, eu tenho pesadelos com isso, tenho pesadelos com ele, eu o odeio por ele agir como se não tivesse feito nada, como se estivesse tudo normal, eu senti a pior dor da minha vida, eu vi o feto morrer e sair de dentro de mim, eu precisava passar por um acompanhamento médico, psicológico e psiquiátrico, eu fiquei sem comer e sem dormir durante 40 dias, eu dormia poucas horas, a noite eu passava chorando, e não conseguia me alimentar regularmente pois eu sentia culpada.

Não desejo isso a ninguém, nenhuma mulher deveria passar por isso, eu não entendo como pude engravidar se faço uso de contraceptivos, acredito que possa ser pela combinação de antidepressivos.

Sou a favor das mulheres terem autonomia sobre seu corpo e sistema reprodutivo, existe muita burocracia para mulheres retirar o útero, fazer laqueadura ou decidir se querem ou não ser mãe, e os homens em grande maioria não são aptos ao uso de preservativos, e eles nunca assumem a culpa, eu sinto nojo, eu os odeio, não consigo sentir atração por ninguém, não consigo pensar em sexo, não sei quando vou voltar a pensar sobre isso.

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