Entre Tempestades
O vento que atravessava a orla da praia soprava forte contra a sua bicicleta. A força que tinha que fazer para pedalar era mais do que ela realmente esperava. Usava um cachecol mostarda largo envolta do seu pescoço e uma touca da mesma cor para se proteger do frio mas apesar do seu esforço contra a ventania não conseguia sentir calor, as mãos estavam congelando no guidão. Esperava que realmente valesse a pena ter saído de sua casa naquela noite fria de inverno no sul do país.
“Hoje, 20hs, na frente do prédio azul ondulado” dizia a mensagem que tinha recebido da sua amiga na hora que tinha acabado de tomar banho e sentado no sofá com uma coberta pesada. Era uma sexta feira e apesar de cansada por conta da semana puxada na faculdade, decidiu ir ao luau na praia que iria acontecer.
O céu escuro e a curva que a orla fazia até o seu final, próximo a um morro, faziam com que o percurso até o local parecesse mais longo e no meio do caminho pensou em desistir, mas já tinha confirmado presença e sua amiga não ia perdoá-la caso desistisse.
Passou pelos bancos desertos, pelos sombreiros secos e pela ponte do córrego que desaguava no mar, trazendo um leve odor de água salgada com esgoto, onde ajeitou seu cachecol até o nariz para continuar a procissão.
Já era possível ver o prédio ondulado bem próximo. E apesar das dunas e da restinga, começou a ver pequenos pontos de luz no meio da escuridão da praia. O vento ia trazendo aos poucos a música dedilhada no violão e sons de risadas no meio da areia. Parou sua bicicleta na reta do prédio achando um local no meio da restinga para deixá-la escondida até sua volta. Ajeitou a bolsa transversal em seu ombro, estava um pouco pesada mas continha tudo o que ela precisava. Um vinho tinto barato comprado no mercadinho, uma canga para poder sentar, suas chaves e seu celular. A areia fofa afundava seu all star azul claro e sentiu a sensação desagradável de pedrinhas de areia entrando em seu tênis. Deveria ter cerca de trinta pessoas, mas ela sabia que até mais tarde chegariam muito mais. Começou a tentar identificar os rostos iluminados apenas pela grande fogueira acesa. Enquanto transitava entre elas, cumprimentava com um oi ou com um sorriso no rosto alguns conhecidos de sua faculdade, mas Olívia procurava especificamente sua amiga. Ela passou por alguns pequenos grupos de pessoas e por um grande tronco que haviam colocado próximo a fogueira onde estavam sentadas algumas pessoas. Sentado nele, um cara tocava no violão uma música animada. Avistou a frente três mulheres conversando e reconheceu a que estava virada de costas usando uma touca branca.
A menina de touca branca falava com as mãos sem parar mas quando viu Olívia sorriu e abriu seus braços a envolvendo em um abraço apertado acolchoado pelas suas jaquetas e disse quase que em um grito: "Olívia! Que bom que você veio!” Essa era Vitória, sua amiga.
“Sim, eu disse que viria”, disse Olívia com um sorriso no rosto, aliviada por encontrá-la. Ela cumprimentou as outras meninas, Ana e Camila, ambas da mesma sala de Vitória, com um beijo no rosto.
“Vem, preciso te mostrar uma coisa!” disse Vitória pegando na mão de Olívia e a puxando sem cerimônia para longe das meninas. Olívia deu um tchauzinho simpático e rápido com a mão para as meninas e seguiu sendo puxada pela amiga.
Haviam se conhecido no primeiro dia de aula. Olívia havia passado em biologia e se sentindo meio perdida olhou o mural com as centenas de nomes colocados em ordem alfabética na parede do salão principal da faculdade. Procurando pelo “O”, achou seu nome e a sala correspondente, seguindo em direção a um dos dois prédios onde aconteciam as aulas. Pegou as escadas e foi em direção a sala de aula 24b, localizada no segundo andar. Era a segunda sala a esquerda em um corredor bem longo. Entrou na sala que continha cerca de 15 alunos esperando o horário do começo da aula e sentou em uma carteira na fileira da parede, na frente de uma menina com cabelos encaracolados. Colocou sua bolsa transversal em cima da mesa e começou a puxar seu caderno quando de repente seu estojo caiu aberto espalhando pelo chão todos os seus lápis e canetas. “Eu só queria ser discreta” pensou Olívia sentindo seu rosto corar. Se agachou e começou a pegar suas coisas e olhando para o chão viu a mão da garota que estava sentada atrás ajudá-la a recolher. Era Vitória.
“Você é caloura, não é?”, perguntou Vitória.
“Sou sim, você também?” indagou Olívia.
“Não, aqui é a sala do segundo ano de psicologia e nenhum veterano que eu conheço teria essa quantidade de lápis e canetas” respondeu rindo Vitória. Olívia ficou vermelha na hora, pois não acreditava no seu potencial de se auto constranger. Mas Vitória foi legal, levou ela até a sala certa e a apresentou para a faculdade inteira. A partir daí, se tornaram muito amigas.
Encontraram um local próximo a fogueira e estenderam a canga no chão. Sentaram-se e quase em sincronia, tiraram garrafas de vinho de suas bolsas.
“Amiga, preciso muito te contar sobre o André! Talvez ele apareça aqui hoje.” Disse Vitória com brilho nos olhos.
“Sério? Que legal...” disse Olívia mais desanimada do que pretendia parecer enquanto tirava seu tênis e o virava para baixo na tentativa de tirar o máximo de areia possível de dentro.
“Sim amiga, eu sei que você tem um pé atrás com ele, mas ele é incrível, você precisa conhecer ele, daí você vai entender!” disse Vitória.
Olívia terminou de retirar a areia e calçou o tênis de volta. Abriram os vinhos e começaram a beber pelo gargalo. O calor da fogueira chegava até seu rosto mornamente e o vinho começava a esquenta-lá por dentro. Começaram a conversar enquanto bebiam e de vez em quando paravam para rir ou para cantar algum refrão da música que o cara do violão cantava.
De repente sentiu alguém se aproximando e deitando a cabeça em suas pernas cruzadas. Era Joaquim, seu amigo de sala. Levou um pequeno susto mas sorriu quando o reconheceu.
-Oi Joaquim! Que susto guri!
-Tudo bem amiga? Estava mesmo procurando algum colinho pra me aconchegar.
-Sei bem o colinho que você queria estar!
Olívia riu e ofereceu seu vinho a Joaquim que após um longo gole apontou com a garrafa na direção de uma roda de rapazes. Eles conversavam animadamente enquanto tomavam alguma coisa também. Um guri, de moletom azul marinho, olhava fixamente para Joaquim, o qual retribuía com um sorriso safado. As meninas riram do flerte entre os dois e começaram a incentivá-lo a ir até o seu boy magia.
-Vou dar mais cinco minutos para ele achar que eu não sou tão fácil.
-Aí Joaquim, só você acredita nisso. Disse Vitória rindo.
Enquanto riam da situação e Joaquim contava sobre seu contatinho, Vitória apertou o braço de Olívia repentinamente e disse “É ele, André está aqui!”. Os dois amigos seguiram seus olhos enquanto a garota olhava fixamente para um rapaz de jaqueta de couro do outro lado da fogueira. Ela tomou um longo gole do seu vinho, passou a garrafa para Joaquim e levantou-se indo em direção ao rapaz que a recebeu com um beijo em seus lábios.
-Parece um bad boy, adoro! disse Joaquim em um tom safado.
“Parece mesmo” disse Olívia enquanto a olhava. Eles conversavam enquanto André enrolava entre seus dedos um cacho de cabelo de sua amiga.
-Bom ela deixou o vinho dela aqui, vamos matar o seu e o dela!
Seguiram bebendo e conversando em volta da fogueira. A música havia parado e o que se escutava eram apenas pessoas conversando. Nessa altura da noite já deveriam ter quase cem pessoas por ali. O frio e o vento gelado da noite se espreitavam no meio da aglomeração, mas o calor da fogueira e do vinho já traziam uma sensação mais confortável.
-Amiga, vou lá com o boy, me deseja boa sorte? Disse Joaquim, tomando o último gole da garrafa.
-Aí Joaquim, vai me deixar sozinha aqui?
-É rápido amiga, juro!
-Tá bom, não posso privar meus amigos de terem uma vida romântica só porque a minha não se movimenta, aproveita por mim!” disse triste fazendo biquinho.
Joaquim segurou com a mão o bico da sua boca e disse “Dá umas olhadas por aí e bota essa boca bonita pra jogo também!”. Eles riram e ela prometeu que iria se esforçar.
-Não vai embora sem mim, vou com você.
Disse ele sorrindo e se afastando. Agora ela estava sozinha. Sentada naquela canga, se sentia deslocada, quase que não pertencente aquele lugar, se esforçou para não pegar o celular e ficar vendo as redes sociais como forma de passar o tempo, até porque só deixaria ela se sentindo pior do que já se sentia. Na verdade ela se sentia assim há algum tempo. Não era uma sensação ruim necessariamente, mas era uma sensação morna, como se a rotina ocupasse todo os seus pensamentos, não deixando brecha para imprevistos. Porém sentia-se sem rumo ou direção quando saía do previsto.
Seu último relacionamento, foi sendo desgastado aos poucos, ao ponto de que quando terminaram não houve grandes problemas. Mas conforme foi passando as semanas, ele começou a demonstrar que não se conformava e começou a segui-la insistindo em voltar. Ele fez de sua vida um inferno até conseguir desvencilhá-lo, e depois de meses, finalmente, estava conseguindo colocar sua cabeça no lugar.
Só de pensar sobre ele causou um arrepio em sua coluna e recompondo sua cabeça no lugar, pensou “Foda-se ele” e bebeu um pouco mais de sua garrafa que já estava perto do final. Começou a olhar as pessoas em volta. Já era quase meia noite e algumas delas já apresentavam sinal de embriaguez notável. Viu seu amigo agarrado com o cara de moletom azul marinho, ficou com inveja da coragem de Joaquim de ser quem realmente era. As ondas do mar batiam e quebravam com força no escuro distante. Não enxergava mais Vitória pelo amontoado de pessoas que havia formado entre elas.
De repente o violão voltou, com uma melodia diferente das que estavam tocando e reconheceu como um sopro quente em seu rosto a entrada da música, uma de suas favoritas. A melodia penetrou em sua cabeça, aquecendo suas memórias e lhe trazendo um calor de dentro pra fora. Ela conseguia enxergar a pessoa tocando o violão, mas não com nitidez. Usava um moletom preto por baixo de uma jaqueta jeans grande e rasgada, o capuz do moletom escondia sua cabeça baixa que olhava para o violão enquanto dedilhava a melodia. A música era Wonderwall, da banda dos anos 90, Oasis.
A pessoa começou a cantar a primeira estrofe e olhando para frente, seu capuz caiu e Olívia conseguiu finalmente enxergar seu rosto.
“Today is gonna be the day
That they're gonna throw it back to you
By now you should've somehow
Realized what you gotta do
I don't believe that anybody
Feels the way I do about you now”*
O calor que surgia em seu peito fez com que afrouxasse um pouco o seu cachecol. Tomou o último gole de seu vinho olhando fixamente para a pessoa que cantava, sentindo seu rosto esquentar. Mesmo olhando para seu rosto e escutando sua voz, não conseguia identificar seu gênero. Não que fosse uma questão para ela, isso até tornava as coisas mais interessantes. Dava para ver que seu cabelo era curto e preto, com um corte moderno, sua mandíbula era bem desenhada e seus olhos pequenos brilhavam pelo reflexo do fogo. Cantava bem e com firmeza e no refrão da música chegou a sorrir, mostrando as aspas em volta de sua boca. Olívia adorou aquelas aspas.
Sentiu seu coração pulsar como há muito tempo não sentia. As veias das mãos tocando violão, saltavam iluminadas pela luz amarela do fogo. Outros olhavam, mas ela tinha a sensação de que eram apenas figurantes em um grande cenário.
Uma mão apareceu em sua frente estalando os dedos próximo a seus olhos. Levou um susto e quebrando a hipnose, era Joaquim que havia voltado.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 55
Comments