~Kate
O Point Of Graves Burial Ground era um dos cemitérios que eu mais achava bonito. A entrada com grades pretas de ferro e as construções antigas ao fundo davam um ar elegante, apesar de ser pequeno e aparentemente simples.
A capela ficava na entrada, então caminho para os fundos onde sei que estão ás lápides no gramado e as criptas de mármore.
O gramado frio sob meus pés descalços me fazem tremer de frio.
Aperto o manto macio e pesado um pouco mais em meu corpo. Ele me abraça e por ser alguns números maiores que eu, as mangas escondem minhas mãos fazendo sobrar tecido, ao mesmo tempo em que a barra arrasta pelo chão como a calda de um longo vestido, me fazendo parecer uma alma penada.
Sinto-me realmente uma alma penada vagando pelo cemitério como uma morta viva.
Coloco o capuz cobrindo o rosto afim de escondê-lo.
Caminho até as lápides que conheço tão bem e é estranho estar aqui de novo.
Caminho em meio as Criptas de diversas cores de mármore. Se nao fosse um lugar de mortos, acharia lindo as caixas ornamentadas. Diversas famílias sendo enterradas juntas.
Me aproximo lentamente de uma que possui um enorme arcanjo de gesso branco.
Olho para a primeira e passo os dedos pelas gravações datadas e com uma pequena foto redonda cravada. Helena Brewer e Santhiago Brewer. Abaixo da foto uma frase: Juntos até a eternidade.
Haviam morrido junto e colocados ali juntos.
De repente sinto em meu peito um grande vazio. Percebo que não choro. Porque todas as vezes que estive ali para um memorial, deixei toda tristeza em mim se esvair molhando aquelas pedras.
Hoje, somente os restos dele permaneciam ali. Mas ela, minha doce mãe estava sabe lá onde, enterrada em uma terra da qual ela lutou para fugir.
Ao lado da caixa de granito preta existe outra. Olga Lewe. Um sobrenome que jamais questionei e que hoje nem fazia diferença se não fosse o mesmo. Ela havia sido colocada ali ao lado, como se fosse da família. E no meu coração era. Alguém que me viu crescer e que estava ali por minha causa.
Se estivesse viva, estaria decepcionada com sua filha por tê-la abandonado. Por ter trocado a própria família por um estranho. E todo a decepção que tive com Jesse parecia ridícula agora que entendo que agi de forma egoísta, exatamente igual. Dei meu sangue ao inimigo que Olga morreu tentando manter longe de mim.
Passo a pensar em Kevin, e é aí que as lágrimas rolam.
Preciso pedir desculpas á ele, por toda dor que causei. Por ser incapaz de fazê-lo feliz como merecia, por não ser quem ele cresceu achando que eu fosse... Por ser uma Semyta.
Outra lápide colocada ao lado dela me chama atenção por ser tão brilhante e recente. E por possuir uma mistura de cores diferentes. É cinza e branca, enquanto as outras duas são pretas. O nome talhado nela me faz ficar atônica: Katherine Brewer: Filha e amiga amada.
Um soluço me invade com a percepção real de minha própria morte, e choro feito um bebê.
Agradeço por estar escurecendo e não haver ninguém ali, porque dessa vez não impeço as lágrimas e sento sobre onde meu corpo deveria estar sepultado sem conseguir controlar o desespero.
Choro por meus pais, sua morte intencional, choro por Olga e Jess... Choro por minha morte e por ter vivido uma vida inteira de mentiras.
Vivi como um personagem criado para mim. Num mundo que não era meu, um mundo que agora me obrigava a aceita-lo.
Acabo de morrer e voltar como se isso fosse simples demais. Quase morri naquele acidente, em coma por meses até voltar á respirar sozinha. Morri agora e fui enterrada, voltando a viver novamente como se nem tivesse o direito de morrer.
“É muito pedir pra morrer?” Meu cérebro questiona, estava adormecido, mas voltou a ter vida própria.
“Será que nem escolher morrer em paz eu consigo nessa vida?!”
Porque Deus insiste tanto que eu viva? O que tem pra mim nesse mundo, se tudo o que eu amo está tão longe?
— O que faz aqui, Semyta?
A voz me faz pular de onde estou sentada. E imediatamente quero correr, mas não o faço. Seja quem for, não pode saber quem eu sou. O capuz cai até meu nariz escondendo minha identidade.
Aquela voz não pode ser fruto de fantasia. É grossa e rouca demais pra ser outra pessoa.
Meu coração acelera e os batimentos se embolam me fazendo ofegar.
Ergo a cabeça e tento olhar por baixo do tecido.
“Não pode ser ele” Digo á mim mesma. Está morto, eu o matei.
E nos poucos segundos que tentei espiar a figura á minha frente, uma forte náusea me atinge fazendo meu corpo cambalear, tento me segurar na lápide atrás de mim.
— Está ferido? — Pergunta insistente — O manto diz quem você é, Semyta. Pode falar agora, ou nunca mais terá outra oportunidade de emitir sons.
O manto é de um Semyta, por isso o reconheceu.
Mas ele não pode ter certeza de que sou eu. Só pode ser ele, eu sei que não há no mundo uma voz como essa.
Por que eu não corro? Ele pode tentar me matar. Ainda é um Filho de Anaque.
“É só sair correndo e não responder.”
Não! Não preciso fugir. Ele não pode mais me ferir.
Tomo coragem e puxo o capuz de minha cabeça revelando minha identidade e encarando meu algoz com o corpo ereto e cabeça erguida.
O impacto do encontro de nossos olhos trás á tona tudo o que senti naquele lago ao vê-lo pela primeira vez. Os seus dobram de tamanho tão pálido e assustado como se visse um fantasma. Realmente estava olhando para um fantasma.
Meu corpo treme e rezo pra que seja de frio.
— Você... — hesita dando um passo á trás parecendo não acreditar e nem mesmo saber o que fazer. Está perplexo e assustado como nunca o vi — Kate...
Sua voz sai em um sussurro como se saboreasse o som de pronunciar meu nome. Meu corpo estremece ao ouvir sua voz baixa ecoar pelo cemitério. É ele. Meus olhos varrem seu rosto constatando ser ele.
Seu corpo dá um passo à frente voltando a posição anterior e sua mão se ergue, o que me faz encolher esperando um golpe, mas Raziel me choca com o que faz.
Apenas chega perto e toca minha bochecha esquerda com a ponta dos dedos.
Ele está tremendo.
Também estremeço, porque já não controlo minhas reações. Estou surpresa em vê-lo, surpresa de saber que não morreu por tentar me proteger. E até mesmo...Aliviada.
- Deu certo. - Sussurro dando uma pausa antes de completar- Meu sangue.
Sua mão é fria e seus dedos passeiam subindo e descendo pela lateral de meu rosto precisando se certificar de que eu era real. Nossos olhos se prendem e o sinto tremer novamente.
- Como você pode ser real??
Raziel está perdido e eu jamais conseguiria imagina-lo assim.
Ergo minha mão e toco a sua que paralisa, torço pra que não me bata como fez da outra vez e ele percebe meu repentino medo e balança a cabeça como se respondesse "Não" á minha pergunta silenciosa.
Nem precisaria usar a mão para me agredir, encaro um homem paralisado e tão surpreso que sua respiração entrecortada me chicoteia.
Raziel respira fundo absorvendo a sensação de me tocar e por alguns segundos fecha os olhos e pende a cabeça para trás.
Tento observar seu rosto, mas tudo o que consigo com sua altura é analisar os traços angelicais de seu queixo e pescoço. Ele é muito lindo.
Os lábios finos e desenhados se apertam acima de um queixo esculpido... Analiso cada pedaço que posso como se sentisse saudades. Como se cem anos tivessem passado. E todas essas sensações são desconhecidas para mim. Estou sentindo o toque do inimigo e só desejo sentir mais.
Aquele olhar de ódio que vi quando invadiu meu quarto e todas as vezes que me encarava não está presente agora nos olhos negros e frios do homem assassino. E isso trás um calor estranho ao meu peito.
Ele abaixa novamente a cabeça ainda de olhos fechados e testa franzida, me deixando encarar todo o seu rosto, seus cabelos negros balançando com o vento, a pinta negra em sua bochecha e até sua sobrancelha finalizando características de um modelo quase perfeito.
Quando ele volta a abrir estou preparada para receber aquele olhar. Aquele obscuro que antes me fez temer, mas que agora anseio ver.
Seus olhos não me decepcionam, como eu esperava assumem centelhas avermelhadas.
— Como é possível que tenha sobrevivido?
Seu hálito acima de mim banha meu rosto. Um transe me invade. Quero dizer algo, mas não consigo.
De repente me sinto adormecida, com um cansaço que me faz querer deitar. Sinto meus membros ficarem moles, como se estivesse doente.
— Não faça isso comigo. — Digo entredentes.
— Não faça o quê? — Questiona confuso. Sinto seu dedão acariciar meus dedos acima dos seus, foi um toque leve mas perceptível. Quase desmaio de exaustão e tremor por causa do seu toque.
Ele percebe que estou zonza e tira a mão da minha para me ajudar a apoiar na lápide. Mas seus olhos não largam os meus.
Esse Raziel está diferente.
— Esse negócio que faz com os olhos. — Peço gentilmente.
— Não estou fazendo isso em você. — Confessa — Não funciona.
Então porque me sinto mole? E prestes a me jogar em seus braços?
Seus olhos brilham me olhando.
— Respire fundo. Você ainda parece debilitada.
Assinto tentando controlar minhas emoções. Não pode ser só ele. Isso não pode ser normal. Se não são seus olhos, porque me sinto envolvida por ele? Desejando me aproximar mais?
Uma sequência de estalos nos chama atenção fazendo Raziel se virar de costas pra mim já puxando algo das calças.
Palmas teatrais invadem meus ouvidos seguida de uma movimentação estranha e de repente um meio círculo de homens vestindo preto está a nossa frente.
- Sinto interromper o momento. Mas é com pesar que anuncio o fim da lua de mel.
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Atualizado até capítulo 34
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