Encurralada pela Verdade

 

~Kate

Meu corpo é consumido por uma raiva que tento controlar. Queria gritar como um animal ferido.

Mas olhar para Homero era como receber anestesia. Sua calma contagiante me fazia sentir como uma criança birrenta.

Era o golpe de lucidez em meio a loucura. Sua alma naturalmente pacífica nos convidava para o lado branco da força.

— Fizemos isso por respeito. Helena merecia isso, nos serviu como uma guerreira corajosa por toda sua vida.

Ele quase sorri ao falar dela, e começo a desconfiar de seu carinho por minha mãe ser tão evidente.

— O que a Ordem havia decidido sobre mim com a morte de meus pais?

Eu precisava entender como havia sobrevivido á doação de sangue ao filho de Anaque, mas eram tantas perguntas que precisavam ser esclarecidas e Homero não fazia ideia da besteira que cometi, a causa real de eu ter quase morrido não seria uma informação bem aceita por um ancião.

Eu nem fazia idéia de por onde começar, mas precisava absorver toda a informação sobre minha vida. Toda a verdade sobre quem sou.

— Houve uma votação naquela noite. Precisava ser unânime, mas eu e Máximus nos recusamos á concordar com o que os outros haviam decidido. A Ordem não quis se responsabilizar por uma mestiça. — ele limpa a garganta e continua — E quando limparam as mãos, proibiram qualquer casa de receber você. Foram 3 votos contra 2 e não podíamos te proteger sem que pelo menos mais alguém concordasse.

— Mas você veio me proteger, mesmo contra os 3 votos.

Lembro-me de sermos apresentados por tia Olga, que disse como ele me ajudaria.

— Sim. Era meu dever proteger a filha de Helena. Eu devia a ela.— Seus olhos brilham sempre que diz o nome dela. — Então saí de Moscou disposto á proteger você, mas precisava de um posto que me deixasse perto de sua família, algo que não chamasse atenção. E como ja possuía formação humana...

— Convenci Olga de me deixar fazer isso, a instruí em como te proteger dos Sentinelas. Todos os rituais, e cuidados para que você crescesse como os normais, mas com proteção Semyta. Ela não podia dizer não, estava com uma filha de colo e uma menina que ajudou a trazer ao mundo acuada com medo até da própria sombra.

Essa menina era eu. Engulo seco, pegando a garrafa de suco e prestando toda atenção em meu Psiquiatra. Tento imaginar Olga sozinha com o desafio de criar duas meninas sem ter noção dos riscos que enfrentava. E saber que ela havia morrido por minha causa tornou as coisas bem piores pra mim. Porque a amei como se fosse realmente minha tia.

— Então nos empenhamos em te fazer crescer como seus pais queriam. Longe da Ordem, mas protegida dos Sentinelas. Ela como uma segunda mãe, e eu como ancião e seu psicólogo. O disfarce perfeito para mim.

— E funcionou até ela perder sua vida por minha causa.

Uma lágrima escorre. A saudade aperta em saber de tudo. Ela só queria me proteger. Morreu por me proteger, e eu nem era parte de seu sangue.

— Não pode se sentir assim— Ele diz calmo.

— Não me diz como devo me sentir! — digo alto — Você não sabe como é viver uma vida de merda que nem era verdade! De ver pessoas que ama morrerem por causa de você enquanto não tem idéia do porquê de estarem sendo feridas.

— Não quis dizer que não tem o direito de se sentir triste e indignada. Perdoe-me se pareceu isso — diz sereno e controlado como se nada o abalasse — Eu apenas prefiro que entenda que ela fez o que devia fazer e conhecia os riscos. Todos nós sabíamos o que poderia acontecer. Sabíamos que, mesmo dando nosso melhor aqueles animais iriam te achar.

— E mesmo assim não a protegeu. — acuso — Nem a Jess.

Sempre me perguntei se havia alguma coisa no mundo que o abalasse. Em todos os anos que o conheço, nunca o vi sair do sério ou perder o controle.

— Senhorita, meu objetivo era proteger você.

— E cagar para o resto, Doutor?!

Busco controlar toda a raiva que fazia meu corpo tremer enquanto as lágrimas escorriam. Ele podia tê-las protegido.

— Precisa entender que o nosso mundo não é como o que você viveu.

— Isso não significa que o mundo de vocês seja melhor, Doutor. — cuspo. Ele não se ofende, fica apenas ali calado me dando um tempo.

— Como eu vi parar aqui? — pergunto me sentindo cansada.

Ele se levanta para caminhar em direção á estátua que agora sei que é de Maria mãe de Jesus.

— Encontrei seu corpo á beira de Mirror Lake, sem vida. — Ele vai até ela e pega uma das velas acesas e acende outra que esta apagada. — Aqueles Sentinelas havia te deixado lá para ser encontrada. O que não representa um comportamento comum.

- Seu corpo pra eles não teria mais valia, já tinham drenado todo seu sangue, eles podiam queima-la. Nesses casos eles simplesmente dão fim ao corpo, sabem que podem ser descoberto. Mas desde que chegaram á cidade percebi que cometiam muitos erros.

Como aconteceu com Kahina e os outros turistas, penso

A lembrança da luta de Dylan, os corpos decepados e Raziel sem vida ainda estão frescas em minha mente. Raziel... Seu nome em minha mente é como se eu mencionasse em meus lábios de forma doce. O que aconteceu com ele? Havia morrido? Me deixaram à beira do lago para que a polícia me encontrasse.

Raziel estava tão ferido que as chances de ter sobrevivido, de meu sangue ter sido suficiente são improváveis.

Me lembro de estar ao seu lado naquele porão e uma fraqueza me consumir ao ponto de sentir muito sono e perceber que morreria. Seu corpo não reagia. Dylan não voltava e eu precisava desligar aquela máquina.

Só lembro de ser tomada pela escuridão e acordar na cama de flores. O que aconteceu com meu algoz? Meu sangue não tinha feito nem cosquinha em seu corpo durante aqueles minutos. Ele com certeza não sobreviveu, mas como eu sobrevivi? E porque?

— Como eu sobrevivi? O que aconteceu com os Sentinelas que me sequestraram? — questiono ainda perdida em pensamentos.

Ele não responde por um tempo. Parece sussurrar algo que não ouço e eu espero. Não pode estar rezando logo agora.

— Fugiram. Quando segui o rastro só você estava lá. Como sobreviveu? Não sei... Por um milagre. Seu corpo estava seco, como uma boneca sem vida.

— Ainda não explica como vim parar aqui.

Ele acende outra vela e a coloca do outro lado do altar.

— Eu comuniquei à polícia que havia encontrado seu corpo. Fizeram todos os procedimentos no IML e te liberaram. Seu vizinho e a família cuidaram de todo o velório e enterro.

Homero se vira para mim e sorri, mas é um sorriso triste.

— Exatamente como foi com sua mãe. Eu estava disposto a te levar para enterra-la junto dela, nos limites de nossas terras...

— Violou minha cova? — Pareço uma idiota ao perguntar.

— É só uma fantasia pensar que seu corpo ficaria ali para sempre. Sua alma e espírito não se prendem á matéria. As pessoas tem o hábito de visitar túmulo para buscar conforto em quem já se foi, ou por causa de uma consciência pesada. Quando na verdade, só restam ossos e bichos.

Acrescenta:

— Eu apenas esperei o tempo certo para reabrir e retirar você antes que o processo de decomposição iniciasse.

Torço o nariz achando nojento.

— Somente dias após sua morte enquanto preparava para transporta-la para o Canadá , percebi que seu corpo emitia sinais de vida. — Sua expressão é confusa — Senhorita, nenhuma história poderia justificar o que ocorreu. Só posso dizer que foi um milagre.

— Não acredito em milagres.

— Deveria, porque ninguém da Ordem acredita que sobreviveu á um ataque dessa magnitude. Nenhum Semyta sobreviveu. Eu chequei você, estava morta. Não havia sinal de vida. Aquela altura seu corpo já deveria estar começando a emitir odores de putrefação.

Ele agora caminha de um lado á outro atormentado pelo fato de eu ter voltado á vida. Enquanto, pra mim eu havia dormido e despertado de um simples sono.

— Quando tempo fiquei morta? — questiono olhando a pele de meu braço com uma mancha escura no local onde havia tido uma agulha.

Como é possível que todo meu sangue foi sugado e eu ainda estivesse aqui pra contar história?

Como eu poderia ter me livrado da morte por duas vezes? E porque eu não me sentia diferente? Acabei de ressuscitar e me sinto a mesma Kate.

Eu queria contar a Homero sobre eles. E sobre tudo o que havia acontecido. Mas não senti que deveria. Éramos inimigos, e eu tentei dar a vida por um. Seria escorraçada como minha mãe foi. E se Homero não tivesse me tirado da cova, eu poderia estar viva e dentro dela, morrendo sufocada pela terceira vez, sem chance de voltar.

— Pedi ao Padre Haley para conseguir bolsas de sangue. E te entubamos. 8 dias após seu enterro seu corpo apresentou sinais vitais, mas você não acordava. Resolvi te manter aqui, era arriscado viajar com aqueles Sentinelas á solta e tive receio de não resistir— Conta — Parecia impossível, mas estava acontecendo e a Ordem me aconselhou a buscar proteção aqui. Foram vinte oito dias esperando que acordasse. Você estava em um estado de coma. Nenhum médico poderia explicar.

— Meu Deus! Preciso ir pra casa e avisar a Kevin que estou viva.

Penso na dor que ele sentiu em saber que eu estava morta.

Lembro de seu sorriso no dia que fui sequestrada prometendo uma noite de amor ao seu lado. Lembro da vontade que havia sentido de beija-lo e do arrependimento que tive no momento que saí do carro e deixei a oportunidade passar. Eu o amo e não posso viver sem ele.

Não posso desperdiçar a chance de ser amada, mesmo em um mundo recém-descoberto como falso. Não importa quem sou, quero amar Kevin.

Havia em mim a esperança de ficarmos juntos. Agora, o medo de não fazê-lo feliz parecia tão bobo. Quase morri e o deixei pra sempre, mas a vida de novo me presenteou com uma chance.

— Nem pense em cometer tal erro.

Sua repreensão me faz encara-lo.

— Preciso dizer a ele que estou bem. Me dê um telefone então, seus pais são como minha família também. Nem imagino a dor que causei a eles.

— Você está morta pra eles. É bom que permaneça assim, pois iremos partir amanhã.

Suas palavras me batem com força. Como assim? Ficou louco, só pode!

— Não vou á lugar nenhum com você amanhã! Eles precisam saber que estou viva, Homero. Eu preciso que eles saibam disso.

— Se contar, vai chamar atenção de Anaques.

— Dane-se! Não posso continuar morta para eles. São minha família.

— Precisa aceitar que é uma Semyta e que nós somos sua família.

Ergo a bandeja e a coloco bruscamente sobre o assento.

— Pro inferno que são! — Retruco seguindo para a porta — Não me importo com o mundo em que vocês vivem. Quando perdi meus pais, eles me acolheram e ficaram do meu lado enquanto á sua Ordem havia me rejeitado.

Ele me segue e quando percebo está á frente da porta, á travando.

— Não me obrigue á isso, Senhorita. — Sua voz é calma, mas esboça preocupação — Eles podem ter ficado ao seu lado, mas fomos nós que a protegemos todos esses anos.

— Pode ter me protegido, mas deixou morrer quem era importante pra mim.

Ele assente aceitando a culpa.

— Contar á eles vai fazer exatamente o que acabou de me acusar de fazer.

Recuo com as verdades de suas palavras. O que ele percebe e continua:

— Há Filhos de Anaque por toda a cidade procurando Semytas. Se certificando de que não restou ninguém para contar história. — Ele dá um passo para o lado — Pode ir até seus amigos, mas certamente serão alvo de nossos inimigos, assim como sua tia, sua prima... Aqueles turistas. Quer fazer mal á quem restou de importante pra você?

Recuo outros passos com as lágrimas voltando a cair. O infeliz é apelativo e dou razão ao Ancião. Se for até lá e aqueles homens que lutaram com Dylan e Raziel estiverem na cidade, vão seguir meu rastro até a vila. E eu odiaria ter mais mortes sobre minhas costas. Estou encurralada pela verdade.

Estou morta á um mês. E viva á alguns minutos contra todas as probabilidades.

Tudo que Homero contou me atinge com seriedade e eu sei que está certo. Por enquanto, preciso proteger Kevin e sua família. Foi tudo que me restou.

Preciso esperar o tempo que for necessário para que soldados inimigos recuem e então voltarei a vê-los.

Kevin não merecia o sofrimento de estar morta, mesmo estando viva, mas seria por uma causa nobre e provisória.

Um misto de sentimentos me faz pensar que só poderia ser ironia do destino.

— Posso esperar — Digo vendo-o relaxar — Mas preciso respirar fora daqui.

Digo puxando a porta de madeira da capela e saindo para o entardecer.

Ele não me impede e imagino que vai se manter por perto. Mas não me importa, de repente aquela capela se torna sufocante demais pra nós dois.

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Comments

Marcio Santos Lucas

Marcio Santos Lucas

Nem acredito que estou lendo o segundo livro. Adorando cada capítulo!

2022-06-13

0

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