Choque

Quando Túlio tocou no meu pé eu levei um choque com aquela aproximação — ele não tinha ideia que era minha distração favorita nas manhãs e que sempre o via andando e observando seus filhos a tarde quando ele saia para o pequeno parquinho numa praça mal feita que existe um pouco acima na ladeira perto das árvores. Há um tempo, percebia seu olhar, mas ele era extremamente cauteloso e não sabia como entrar num assunto onde ele seria sondado por mim, em respeito a ele e as crianças dele, não tive coragem e me retrair muitas das vezes que ele estava de pé segurando a mangueira do quintal um tanto desconfortável.

- Quer um caipirinha?

- De manhã cedo, não. Eu não bebo, digo essa hora! — respondeu com um sorriso ensolarado e bronzeado.

- Você vai gostar, farei fraquinha e com bastante gelo. É o mínimo que eu posso fazer por me ajudar a controlar essa sabão todo e a piscina está limpa!

Sei que ele ficou sem jeito por um tempo, mais eu já estava sem jeito com aquele peitoral e braços explodindo diante de mim, sem nem poder jogar uma piada sobre o que eu já sabia desde o dia na casa de Beth. Ou ele gostava de maltratar, ou ele não tinha jeito mesmo de como chegar numa pessoa, ou num homem, ou ainda em mim, nada melhor do que soltar um pouco aquele pai de família e meu sonho de consumo.

- Acho que minha cabeça está surtando após a queda! — disse a mim mesmo, vendo ele molhar as plantas da janela enquanto sacudia a coqueteleira.

- Vem vizinho, sai desse sol, tem queijo aqui, umas torradas se quiser. Experimenta!

- É, está no ponto, nem tão forte e nem tão fraca! É bom nisso!

- É, eu trabalhei num bar na cidade de Andaluzia, na praia de Nerja na Espanha.

- Então morou na Espanha também?

- Sim, fiquei também na Holanda, Alemanha e depois voltei para Toulouse. Tudo é bem perto, da para fazer isso de carro e de trem.

- É verdade! Mas é bem esquisito em vê-lo falar desses lugares sem muita emoção.

- Foram tempos difíceis, não foi como esperava. Lá não tinha os amigos que tenho aqui, não estava na minha área!

- Eu já fui para Paris e para Inglaterra, assim que veio a primeiras férias com Solange e ela queria conhecer a cidade dos Beatles, mas nossa lua de mel tardia foi no Uruguai, a família dela, uma parte é de Punta Del Este.

- Como ela era? Não que você deva responder! — estava sendo intrometido, mas ele resolveu falar, como se eu fosse a primeira pessoa a perguntar.

- Solange era simples e ao mesmo tempo sofisticada. Tinha bom gosto, era uma ótima mãe e não foi com os meu filhos que soube disso, mas suas sobrinhas que ela ajudou a criar por um tempo antes de me conhecer.

- Ela não teve tempo, não é?

- Não, ela não teve.

- Vamos mudar de assunto...

- Eu não ligo. Por mim, falaria dela a vida inteira, é um pecado esquecer de sua trajetória. Ela teve uma vida incrível, me fez muito feliz com também me proporcionou a maior felicidade e infelicidade que um ser humano pode ter. Fico triste quando as pessoas não perguntam dela, como se fosse possível apagar uma história brilhante como a sua, restando para sua memória olhares de pesar, ela foi mais que a morte prematura.

- Ela foi mãe, esposa, uma profissional de alguma área... Quando for na sua casa, quero ver uma foto dela.

- Com certeza, tem um monte delas espalhadas por lá.

Sai daquele assunto que mexia tanto com Túlio e revirou meu coração também, era uma família ali representada por um homem bonito cheio de pensamentos e vitalidade que acredito, nem ele percebe existir em si.

Ele partiu exigindo minha presença em seu almoço, ignorei algumas ligações de Fabi e Breno, esse último então me pegaria para conhecer Arraial do Cabo dentro de algumas horas e isso era algo que estava sendo forçado por mim de algum modo. Joguei uma água no meu corpo e fui ao encontro do meu querido vizinho e sua sensibilidade. Respirei fundo, e apertei a campainha.

- Está aberto, entra! — disse da janela do andar de cima e entrei, um tanto nervoso.

- Não repara, eu não fiz nada hoje e estou sofrendo sem meus filhos, enfim, um pai depois dos trinta.

- Eles foram para casa de alguém?

- A avó deles pegam eles de quinze em quinze dias, isso depende de sua disponibilidade. Eles buscam estar presentes na vida deles e quero que eles possam ter mais pessoas para falar de Solange além de mim.

- Isso é bom.

- Vem, fiz nossa mesa na cozinha.

- Está com um ótimo cheiro!

- Cláudia arrasa na cozinha e isso ela faz rápido, para fazer qualquer coisa aqui eu passo a tarde inteira. Pode se servir, vai querer alguma bebida, eu tenho água, refrigerante, vinho...

- Coca-Cola!

- Também.

Tudo estava perfeito, a cozinha dele é moderna, com geladeira de duas portas, fogão Cooktop e dois tipos de forno elétrico. Era estilo americano e bem arejada e sua área de lazer era impecável, a piscina era fechada, imagino que pelas crianças.

- A sua casa é linda!

- A casa inteira foram nós que reformamos tudo. A casa, quando compramos estava caindo aos pedaços, literalmente. Hoje é um ótimo lugar, claro como Solange queria e é isso.

- Que bife maravilhoso! Faz um tempo que não como um assim, sou péssimo na cozinha. Agradecerei Cláudia por me proporcionar uma refeição descente desde que cheguei aqui.

Rimos da minha cara de pau em admitir que não cozinhava nada e tinha preguiça de me alimentar bem, de certo, aqueles queijos e salame seria meu almoço e mais tarde faria um hambúrguer congelado e pipoca, sei lá.

- Para quem achava passar essa sexta sozinho e inerte, hoje foi um dia bem movimentado, você é uma ótima companhia, é bem novo, parece ter a idade do meu irmão mais novo, na verdade, você é mais novo ainda. Deixa que eu lavo.

- Obrigado. A minha idade é um problema ara você?

Túlio se encostou na pia enquanto o encarava com mais liberdade e dava para ver que a bebida de mais cedo ainda estava presente em seu comportamento mais alegre e espontâneo.

- Eu não sei. O que você já ouviu falarem de mim?

- Nada comparado com o que você é de verdade. Um homem muito bacana e que me vê de verdade. Sem preconceitos e intenções.

- Acha que as pessoas não te veem?

- Acho que as pessoas possuem uma ideia de mim diferente, ainda mais quando o que elas veem é apenas alguém jovem, consideravelmente bonito e...

- E?

- Você consegue ver algo que até eu não consigo ver em mim. Não sei se sou uma boa companhia para você. Posso?

Eu cheguei mais perto dele com suas mãos entre a esponja e o prato e nossos olhares se cruzaram numa cumplicidade e afeto entre minha dor e sua experiência de vida – Túlio não era bobo, era um homem, um cara articulado o suficiente para entender que não vinha nenhuma ligação com os Conrado diretamente e mesmo assim, me deu a chance de entrar na sua vida . Seu olhar receptivo e bem humorado levou minha breve investida a um silêncio quebrado por ele colocando a louça no escorredor.

- Acho que você precisa se encontrar, não sei aonde você se perdeu, mas deveria percorrer esse caminho dentro de si e quem sabe se encontre. Gosta de ler?

- Na verdade, não. Eu gosto de ver fofocas de celebridades, esportes, coisas de internet.

- Vem aqui.

Túlio me levou a uma verdadeira biblioteca na sua casa e pegou um livro pequeno que fiquei feliz em ver que era super fino também.

- Leia esse livro, é um livro que me ajudou a ser mais resignado e não acomodado. Você lê no seu tempo, não precisa me devolver, vai gostar.

- Valeu. Lerei. De verdade, chegou a hora de mudar de página.

Toda a energia criada entre a gente naquele manhã e naquela tarde se perdeu assim que uma vizinha que não conhecia apareceu no corredor, pediu desculpas por não ter batido e Túlio sem rodeios foi até ela me deixando segui-lo.

- Essa é Cleonice, sua vizinha do 101.

- Prazer, você é o vizinho da frente. Que olhos lindos!

Deixei eles conversando e me retirei da casa de Túlio me sentindo renovado e ao mesmo tempo como se faltava algo em mim, como se eu tivesse me esquecido naquela casa.

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