Ali nos braços de Rafael, Ayla se encontrava no vazio de uma mente confusa. Vazio pois ao mesmo tempo que vários pensamentos lhe rondavam, não compreendia nada deles. Eram pensamentos confusos, irreconhecíveis, barulhentos que compunha todo o cenário caótico de um segredo contado.
Ela havia morrido?
Por quê?
Seria o assalto no mercado? Certamente havia levado dois tiros no peito, um lugar bem perigoso para se machucar. Mas o ser humano é tão frágil que todo seu corpo é um chamariz para a dona morte. Então haveriam chances de sobreviver, não?
Estava viva, não? Poderia estar em coma, passando por uma cirurgia ou apenas dormindo se recuperando. Aquilo tudo poderia ser um sonho bem bolado pelo seu inconsciente para garantir a sua recuperação. Não é?
Pelos céus, que fosse essa a resposta.
Seu corpo começara a tremer e Ayla segurara a blusa de Rafael com força. Escondia o rosto em seu peitoral largo, fechando os olhos com tamanha força que doía.
Fazia sentido.
Naquele único dia ela se sentira viva. A liberdade proporcionada pela sua chegada apagara as suas memórias ruins de outrora. Pudera sorrir e conversar com pessoas da sua idade, se olhar no espelho e achar a si mesma bonita. Eram coisas que há meses desistira. Admitia, então, que aquele gostara daquele único dia.
Só que havia gostado justamente por acreditar que não era real.
A presença do Grande Ministro era o ponto crucial, pois tinha plena certeza de tê-lo visto no mercado. A carta e o próprio Rafael comprovavam sua existência ali também, já que o presidente do grêmio o conhecia. Não fora ele quem pedira para Levi fazer seu uniforme? Sendo assim, o Grande Ministro era um sujeito real assim como ela, assim como os personagens do jogo.
Só que se ele era real, já não seria uma boa notícia.
Isso quer dizer que não verá sua família novamente? Não acordaria mais no seu quarto abafado e bagunçado? Não ouviria sua mãe brigando consigo para arrumar a cama? Sua irmã mais velha a chamando pra comerem juntas? Ou seu pai questionando seus estudos?
Perderia tudo aquilo?
Sem a chance de agradecê-los por terem criado uma garota problemática como ela? Sem a chance de pedir desculpas por ignorar suas preocupações quando se trancara no quarto?
Aquele mundo... Não era mais seu?
Oh, os pensamentos estavam se tornando assustadores.
As lágrimas começaram a cair quando pensara em tal possibilidade. Os soluços saiam tímidos e abafados, tendo vergonha de o fazer no peito de um garoto. Por um instante Ayla fizera um pedido silencioso. Com licença, eu quero chorar, poderia ouvir meu lamento?
Como quem escutasse seu pedido, Rafael acariciava seus cabelos silenciosamente. O calor de sua palma era reconfortante, dando espaço pra que ela chorasse.
Assim o fez.
Chorara. Com todo o âmago ela chorou, pois doía a simples ideia de ter perdido sua preciosa família. Os arrependimentos também eram dolorosos e pesados, ao ponto de seu coração acelerar para aguentá-los.
E mesmo depois de controlar as lágrimas, aquele peso permanecera em si a deixa aérea. Não ouvira as perguntas de Rafael, também não vira ele a levar para o quarto novamente e conversa brevemente com Mayla pedindo que cuidasse de si.
Como um robô ela fora pro banheiro tomar um banho quente, onde derramara mais lágrimas, dessa vez silenciosas.
Quando fora se deitar, rezara pra que aquilo fosse uma mentira. Que ao abrir os olhos pudesse ter seu mundo de volta, que seria uma boa menina.
Tal foi sua frustração em acordar com o nascer do sol e olhar a janela reconhecendo os jardins de Falls School. Em pé de frente à janela, observava o sol nascer iluminando o céu com alegria. Infelizmente Ayla não se sentia daquela maneira. Tudo o que conseguia enxergar naquele brilho eram dos últimos momentos em que estivera com sua família, sentindo o calor dos braços de sua irmã mais velha e da sua mãe.
Toda vez que recorria às suas lembranças, seu peito doía. Como se uma mão segurasse seu coração com força, tirando seu ar e a impedindo de fugir.
Nem mesmo vestir o belo uniforme confeccionado por Levi a fizera feliz. Mal vira sua colega de quarto lhe ajudando a se vestir, arrumando o uniforme e penteando seus cabelos para prendê-los. Porém, sussurrara um agradecimento quando sua mochila fora entregue.
— O que a deixou dessa maneira? Estou preocupada... — Comentava Mayla ao levar a amiga para a sala de aula.
Silêncio fora sua resposta.
O caminho todo estavam em pleno silêncio. Não apenas elas, mas os estudantes no geral estavam silenciosos. Todos seguiam diretamente para as salas de aula, sem passarem no refeitório - cujas portas estavam trancadas naquela manhã.
Poderia ser um sinal de que estavam de luto, lamentando a perda que sofreram na noite passada. Só que Mayla enxergava o medo nos estudantes. Evitavam de olhar as duas colegas do quarto andar, abrindo caminho com grande receio de estarem tão perto delas.
Prestes a sussurrar algum comentário, Mayla se calava em notar o olhar perdido de Ayla. Mal piscava. Seu corpo estava leve e fácil de ser guiado, tendo desistido de interagir naquele mundo tão caótico.
Mesmo quando entraram na sala de aula e fora para as últimas carteiras ao fundo da sala, Mayla não dirigira uma palavra. Sentara sua colega na cadeira, ajeitou seu material na mesa e então se sentou na carteira ao lado.
Quando a figura de um professor se fizera presente, Ayla despertara de seus pensamentos. Olhara em volta sem nenhum interesse além de saber onde estava, tendo Mayla ao seu lado anotando algo no caderno. Ao seu lado direito havia Levi em sua carteira a olhando pelo canto dos olhos.
Não sustentara seu olhar, muito menos dirigiu um sorriso. Virara o rosto para a esquerda, onde havia a janela para os portões da entrada de Falls School. E sob os ensinamentos do professor de história em uma classe estranhamente silenciosa, Ayla fingia ser uma aluna depois de meio semestre sem frequentar a escola.
Perdida em pensamentos ela ignorara por completo a aula. Não olhara mais para Levi, que permanecera a observá-la pelo canto de olho. Não ouvira as perguntas de Mayla sobre sua fome, que deixara um pequeno pacote de sanduiche sobre sua mesa no intervalo das aulas. Também não vira os cochichos dos alunos quando Rafael entrara na sala de aula, que não lhe dera atenção primordialmente.
Para Ayla nada daquilo importava. Já não pensaria se seria real ou não. Havia uma maldita dor que insistia em tentar quebrar seu coração. Para sua infelicidade, ela não tinha forças para lutar contra.
※
A última aula da manhã seria educação física, e os alunos haviam deixado a sala para irem até o ginásio. Tendo a sala vazia, Rafael aproveitara para se aproximar das duas colegas de quarto, tocando no ombro de Mayla suavemente.
— Como foi a noite passada?
Com os dedos apertados sobre o peito, Mayla baixava os olhos entristecida.
— Está do mesmo jeito como a trouxera à noite, senhor Zanetti. Fico a me perguntar o que poderia ter acontecido para deixá-la desse jeito.
Rafael respirara fundo e erguia os ombros, fitando o teto em uma busca da resposta perfeita. Por um instante percebera que Levi também permanecera na sala de aula, o que era esperado dos estudantes do quarto andar.
Excluídos das aulas fora de sala.
— O evento do refeitório deve ter assustado Ayla. Os demais alunos também estão bem quietos hoje.
— E você está bem, senhor Zanetti?
A pergunta fora boba e inocente o suficiente para pegar Rafael desprevenido. Sustentando aqueles olhos e feição preocupada, vislumbrava pela primeira vez aquele cuidado sendo direcionado consigo com temor.
Ora era, era o presidente do grêmio estudantil. Os alunos o adoravam e sempre perguntavam como ele estava. Apesar de fazê-lo diariamente, pois quando incidentes com fantasmas ocorriam os alunos tendiam a manter distância por medo. De certa forma compreensível.
Mas aquela estudante não. Mayla olhava em seus olhos esperando ansiosamente por uma resposta sincera. Rafael tivera a ligeira impressão de que se tentasse mentir, ela saberia. Pois o analisava profundamente.
— Estou preocupado, certamente. Devo manter a compostura pelo bem dos estudantes, então ficarei bem.
Ficando em silêncio, ambos desviaram seus olhares com certa vergonha em se encararem. Apesar disso, os sorrisos disfarçados não lhe escapavam de seus rostos.
— O evento do clube de astronomia vai continuar? — Tentava Mayla puxar algum assunto.
Recordando-se de sua conversa na noite anterior com Ayla, Rafael suspirava. Encostou-se em uma carteira e cruzara os braços, batucando os dedos em seu braço imerso nos pensamentos.
Depois de alguns segundos pensando, ele tornara a sorrir para Mayla e concordara com a cabeça.
— Um evento desses será ideal para acalmar os alunos. Tirar isso deles seria aceitar o poder desse sujeito, não é mesmo?
— Isso não colocaria a vida de algum aluno em risco?
— Espero que não. Encontraremos um jeito de arrumar essa situação.
Rafael não dera muitos detalhes sobre o evento, ou do que poderia ser o famigerado fantasma. Mayla também não o questionara. Aproveitando o breve intervalo para ir ao banheiro, ela pedira que Rafael ficasse de olho em sua colega de quarto, que havia baixado a cabeça sobre a carteira.
Mergulhado naquele silêncio, a observara de longe sem ousar tocá-la. Teria ouvido seu choro na noite anterior e sentira o peso de suas lágrimas ao caírem em sua blusa. Enxergara com tamanha nitidez suas dores, que era impossível não se compadecer do sofrimento daquela garota. De certa forma, culpava-se por fazê-la perceber algo tão dolorido.
Encarando a mão que afagara os cabelos de Ayla, o rapaz platinado movia os dedos lentamente.
— O que você disse à ela para que chegasse tão tarde ontem?
A voz baixa de Levi não surpreendera Rafael. Sabia, e muito bem, que seu amigo estaria sentado na carteira sem olhar para si, mas atento como uma águia. Tornando a cruzar os braços, o platinado erguera o queixo fitando-o por cima do ombro.
— Você preferiu ser cuidadoso para manter seus caprichos sobre sua obra prima. Eu não tenho capricho algum, por isso fui direto.
Levi movera os olhos azulados para o amigo, apoiando o queixo sobre a palma da mão.
— Cumpri com o meu dever tal como me pediram. Dar o ombro para alguém chorar não faz parte do meu papel nesse mundo.
— E qual seria o seu papel, Levi? — Questionava Rafael aos se sentar na carteira do amigo, cruzando as pernas. — Aceitar ser o corpo de um fantasma cujo rosto é irreconhecível? Permanecer sozinho pelo resto de sua existência?
— Não adianta colocar agulhas em suas palavras, Rafael. Estamos no mesmo barco.
— Não estamos, já que eu não apaixonei por alguém de fora.
Um silêncio esmagador gerara uma tensão entre os dois amigos. Apesar de trocarem olhares, e parecerem elegantes enquanto o fazem, os espreitares de olhos eram repletos de significados.
Rafael escolhera não participar daquela briga silenciosa. Tornara a zelar por Ayla, que mantivera sua cabeça baixada parecendo dormir em um ressonar. Apoiando os braços sobre o joelho, inclinou-se para frente perdido nos próprios pensamentos.
— Há alguma crítica para mim, então?
A pergunta de Levi viera como uma brisa gélida que antecipa o inverno. Como quem não quer nada, mas avisa a chegada da tempestade de inverno. Sua resposta iria definir o quão forte seria aquela tempestade. Seria cauteloso se Rafael não estivesse impaciente de alguma forma.
— Vai acontecer de novo, Levi. Já sabemos a verdade há anos e o Grande Ministro nos trouxe outra peça do seu tabuleiro. E você continua sendo seu alvo.
— Devo me preparar para mais uma partida.
— Você tinha dito que não se deixaria enganar quando houvesse uma próxima vez.
— Não irei.
— Ayla não será como da outra vez. Ele havia interferido virando o jogo para si, nos mantendo aqui. — Rafael sorriu para o amigo ao descer de sua carteira. — Se você tiver certeza de qual caminho irá seguir, irei ajudá-lo.
Fora a vez de Levi em observar Ayla de cabeça baixa, mas diferente de Rafael, seus verdadeiros pensamentos eram uma incógnita. Os olhos delineados se fecharam por um momento, e então ele olhava para a própria mesa.
— Quero saber as intenções do Grande Ministro. Consegue descobrir?
— Mas é claro. Devo fazer como presidente do grêmio?
— Deverá fazê-lo como o segundo fantasma de Falls School.
Uma rajada de vento soltara as cortinas de suas presilhas, fazendo os tecidos avermelhados dançarem no ar com certa violência. Tendo o balançar das árvores agitado do lado de fora como seu cenário, Rafael brilhava seus olhos claros e soltava a fita que prendia seus cabelos longos e platinados.
E então, elegantemente Rafael Zanetti deixara a sala, passando por Mayla que retornava. Ela tampouco o vira, nem sentira sua presença. Apenas ajeitava uma mecha de cabelo atrás da orelha quando o vento lhe cumprimentara.
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Atualizado até capítulo 71
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