“― Ayla, me encontre na sala dos professores depois da aula, quero falar com você”.
Ah, era a mesma sensação.
Quando o professor de matemática havia sussurrado aquele pedido, ele não desgrudara os olhos do caderno de sua aluna e muito menos gesticulara bem. Era como se não quisesse ser ouvido por ninguém além daquela aluna. E ela se recordava muito bem da sensação que tivera naquele dia.
Seu coração acelerou e a felicidade a inundou completamente. Chegara até sorrir inocentemente ao concordar com a cabeça, segurando seu caderno e correndo para sua carteira. Não comentara com ninguém sobre o convite silencioso, apenas esperara pacientemente ao final da aula para vê-lo.
O que diferenciava as sensações daquela lembrança do baú enferrujado era que Ayla não estava feliz. Fosse por ter desperto uma maldita lembrança, fosse por amaldiçoar seu sonho por ser realista demais.
Ela simplesmente não queria se encontrar com ninguém depois da aula.
Nunca mais.
Por outro lado, não existia um motivo claro para negar se encontrar com Rafael. Diferente de sua maldita lembrança, o presidente do grêmio já deixara claro que a ajudaria com o uniforme, e somente isso. Havia um objetivo, tinha um motivo para se encontrarem. Não haveria porquê considerar aquilo um encontro romântico.
Com exceção do nome que a voz teimosa lhe sussurrara.
Encontro elegante era o nome da primeira cena desbloqueada, onde a protagonista e o paquera tinham um momento único que aumentaria sua intimidade. O jogo ainda capturava a tela criando uma foto que poderia ser acessada no menu principal. E se conseguisse de todas as rotas, um prêmio era dado ao jogador.
Ayla havia desbloqueado o encontro elegante com Rafael.
O melhor amigo do seu personagem preferido.
O da rota do popular.
Aquele que ela não tinha nenhum interesse, a não ser aproximar-se do vilão.
Ela teria um encontro com ele!
Levando a mão ao bolso, Ayla puxara o pequeno espelho arredondado e encarara o próprio reflexo. No outro bolso de sua calça escura tirara um lápis preto, cuja tampa fora tirada e sua ponta se deslizara sobre a pálpebra reforçando o traço grosso de seu delineado.
Não sorria para o próprio reflexo, muito menos parecia atenta ao que fazia. Apenas reforçara a maquiagem em torno de seus olhos e enfiara os objetos em seu bolso novamente.
Respirando fundo, dera as costas para o caminho feito pelo presidente do grêmio e voltara a encarar o muro.
― Onde eu estava mesmo?
Agachando-se novamente na terra e passando pelo buraco de tijolo, Ayla arrastou-se para o outro lado do muro. Gramado alto como se há anos não recebesse a visita de um jardineiro, uma árvore grande e ao fundo uma casa de madeira velha era o novo cenário.
Quando ficara em pé novamente, um arrepio lhe passara pela espinha. Apesar de todo o muro cercar aquele terreno, e também de que alguém deveria estar lá, Ayla tinha a sensação de ser assombrado.
― Por que aquele mascarado queria que eu viesse até aqui, hein? ― Resmungava a garota, tentando andar pela grama alta sem ter sua blusa enroscada. ― Por acaso ele saberia alguma coisa do sujeito que brinca de ser fantasma? Mas não me lembro disso...
Entre resmungos e ponderações a garota atravessara o quintal até a escada de madeira. No que pisara no primeiro degrau, a madeira rangera alto. Seus ombros se encolheram e automaticamente ela olhava para os lados averiguando estar sozinha.
Com o silêncio e a falta de presença de alguém ao seu redor, ela subira mais um degrau que também rangera. Desesperada por silêncio, pulara o terceiro e o quarto degrau, cambaleando com o seu salto mau planejado.
Mesmo de joelhos ela estava de frente à porta. Ao lado da porta amadeirada, uma janela fechada com um buraco por conta do vidro quebrado.
― Deveria ver se tem alguém além dele por aqui? ― Apoiando-se em seus joelhos a garota se inclinara e espiara o buraco na janela. ― Alguém em casa? Com licença!
Espreitando os olhos amendoados e delineados para enxergar na escuridão, buscara em cada canto um possível alguém. O silêncio fora a resposta ao seu chamado. Inclinara-se mais um pouco, aproximando-se da janela ao ponto de sua respiração embaçar o vidro, e fora então que repentinamente algo surgira na sua frente.
Soltando um grito assustado, Ayla caíra sentada no chão com a mão ao peito completamente ofegante, sem deixar de olhar a silhueta na janela. A sombra sumira de sua visão, e em seguida a porta fora aberta.
Aguardou alguns instantes, esticando o pescoço para ver se a sombra aparecia. Sem encontrar o sujeito que lhe assustara, Ayla levantou-se de imediato e se escondera temerosa atrás da guarnição da porta. Espiara ao esticar o pescoço, sem ter alguém ali.
Nenhum sinal da silhueta sombria.
O coração batia acelerado em pura adrenalina. Suava frio e mau poderia confiar em suas pernas, pois elas tremiam. Ainda assim Ayla adentrara na casa, se segurando no batente da porta para caso caísse, ou precisasse fugir.
Na medida em que entrava na casa amadeirada, o ar abafado e a poeira lhe davam as boas vindas. Um mísero segundo que ela havia soltado do batente, a porta fechou-se às suas costas.
Bem, não haveria como fugir agora. A não ser que fosse maluca o suficiente para atravessar a janela e ignorar os cortes dos vidros. Depois de ter tido tal ideia, a garota chegara a olhar para a janela sobre os ombros, e fora lá que encontrara a silhueta estática. Daquele escuro, um brilho dourado se destacava da escuridão.
A silhueta se movera rapidamente, parecendo segurar algo que balançara de um lado à outro ameaçadoramente. Instintivamente Ayla agachara-se, engatinhando pelo chão tentando fugir daquela sombra até se encostar na parede.
Sem saída pela segunda vez, observava medrosa aquela silhueta balançar o objeto dourado em sua direção. Aceitando seu trágico fim, Ayla fechara os olhos esperando pela dor de ser atacada.
Dor essa que não viera.
Esperou mais um pouco. Nada.
Arqueando a sobrancelha e abrindo um olho apenas, ela espiara. Assustou-se em ver uma foice centímetros de distância do seu pescoço, fazendo-a engolir em seco.
― O que uma garota faz em minha casa?
A voz adocicada não condizia com uma foice dourada. Ayla erguera os olhos para a silhueta, tendo sua escuridão iluminada pelo sol atravessando a janela.
Ah, era ele, de fato.
Apesar de parecer mais baixo e soturno do que os gráficos do jogo. O garoto que vivia recluso na casa de madeira fora amaldiçoado a jamais revelar sobre seu passado, sendo uma das vítimas das assombrações de Falls School. Era tudo o que poderia saber sobre Pedro.
Mas segundo as fãs de Monochrome Ghost, sua rota era a mais fácil de ser conquistada justamente por ser recluso. Sem ninguém para lhe fazer companhia, ele se apaixona facilmente pela protagonista. Ayla admitia que o final romântico dele era o melhor se comparado com os demais.
Entretanto, estava sonhando com um personagem de um jogo que pensava ser uma pessoa de verdade. Dizer a verdade estava fora de cogitação, deveria fingir.
― P-Pois é... Estava explorando a escola e acabei me deparando um buraco no muro. Não imaginava que teria uma casa por aqui.
― Explorando a escola? ― Pedro baixara seus olhos cansados sobre Ayla e afastara a foice de seu pescoço ― Não está usando o uniforme.
― Fui transferida agora, hehe.
― Transferida? Para Falls School? ― Ele arqueara as finas sobrancelhas ao vê-la assentir depressa. ― Por quê?
― Para... Estudar? ― Ayla soltara um risinho sem graça, que morrera no ar ao notar não ser acompanhada pelo rapaz.
No jogo Pedro tinha senso de humor.
Mais uma vez ele erguera a foice em direção do pescoço de Ayla, que se reconstara na parede medrosa.
― Me dê uma resposta plausível, ou corto sua cabeça fora.
Aquilo era completamente diferente do que havia no jogo. Pedro jamais usara uma foice, muito menos era grosseiro com a protagonista. Mas naquele sonho Ayla percebia a seriedade naqueles olhos cansados, assim como a facilidade dele em mover aquela arma que parecia tão pesada.
Sinais claros de que não estava brincando.
― E que outro motivo teria se não vir para uma escola para estudar?
― O que você deseja vindo para cá?
Engolindo em seco, Ayla tinha seu olhar sustentado pelo garoto. O seu desejo? O que ela desejava em Falls School? Ora essa, não havia desejo... Se fosse pensar rapidamente no assunto diria que adora tanto Levi Belchior que até sonhava com o jogo. Apenas isso.
No entanto, um gosto amargo em sua boca denunciava a mentira.
Novamente ela engolira em seco. Qual o motivo de estar ali? Porque o sujeito mascarado lhe pediu? Porque amava o jogo? Por que... por que...
Por que queria fugir?
Baixando a cabeça, ela escondera a surpresa de seus olhos amendoados. Chegara a sorrir ladino, tirando sarro de si mesma.
― Não sei o que desejo.
O garoto encostara a foice ao chão e olhara sobre o ombro em direção da janela. Livre da ameaça daquela arma afiada, Ayla pudera respirar aliviada e relaxar os ombros. Até mesmo balançara a cabeça dispersando os pensamentos incômodos para voltar a encarar o rapaz.
― Por isso tem sido barulhento lá fora esses dias? Por que uma aluna chegou fora do tempo?
Ayla espreitara os olhos para o garoto. Como esperado ele era atento ao que acontecia fora dos muros, mesmo que jamais pudesse sair de lá.
Sendo alvo do olhar inquisidor do rapaz da foice, Ayla abrira um sorriso nervoso na tentativa de disfarçar suas suspeitas. A surpresa logo se tornara genuína quando Pedro lhe estendia a mão.
― Desculpe por tê-la assustado, os alunos não devem vir até aqui.
Segurando a mão do garoto e se levantando, Ayla ajeitava suas roupas ao tempo que olhava em volta da casa.
― Se está escondida é porque tem um motivo. Nesse caso eu que devo me desculpar por me intrometer onde não sou chamada.
― Sou Pedro.
― Eu sei ― Respondera distraída enquanto olhava a casa, dando-se conta comprimira os lábios, forçando uma risada nervosa ― Quero dizer, sou Ayla. Cheguei ontem à noite na escola e ainda estou me acostumando com as coisas aqui.
― Então você não é o motivo de agitação lá fora. ― O rapaz deixara a foice de lado e arrastara os pés até a sala, onde se jogara em um estofado, comicamente uma nuvem de poeira se erguera quando ele sentou ― Estão barulhentos à mais tempo.
― Como assim barulhentos? Não tive essa impressão antes.
Pedro encostara a cabeça no estofado e olhava para a janela.
― Deve ser por causa da lua cheia. Raramente temos uma noite de lua cheia.
Informação extra conquistada, pensara Ayla com surpresa. Até mesmo se abaixara para olhar a janela, como se fosse possível enxergar a lua em plena luz do dia.
E quando se dera conta do fator importante, ela tapeara a própria testa em uma punição.
Como poderia ter se esquecido de mais aquilo? Era o primeiro evento do jogo!
O eclipse lunar.
Um evento raro que até mesmo na vida real atraía as pessoas para fora de suas casas só para assisti-la. Em Monochrome Ghost o eclipse lunar era um dos poucos eventos que alegravam os alunos, pois a escola promovia um piquenique noturno no pátio aos fundos.
Fora que nesse primeiro evento, a protagonista conseguia conquistar a atenção do seu paquera, e a partir daí a intimidade somente crescia rumo ao primeiro beijo. Mas para isso o evento do eclipse lunar precisava ser devidamente conquistado, se não as imagens conquistadas seriam medianas.
Sorrateiramente ela aproximou-se do estofado, sentando em uma pontinha dele e se mantendo distante de Pedro. Cautelosamente inclinou-se em sua direção com a maior curiosidade que nunca esconderia de seus olhos.
― Será que o grêmio estudantil não estaria promovendo algum evento? ― Pedro mirara seus olhos dourados e cansados para Ayla com precisão, a fazendo gaguejar ― V-Você mesmo disse que é raro terem uma noite de lua cheia, não?
― O grêmio não me parece interessado nesse tipo de coisa. Mas sei que há alguém que não pensa o mesmo.
― Quem?
― Me disseram que é o clube de astronomia, ou algo assim. Não conheço muito bem as atividades da escola.
Queria lhe fazer muitas outras perguntas, de preferência as que entregassem respostas concretas e sem rodeios. Porém o sujeito mascarado fora certeiro em lhe dizer para manter sob sigilo suas cartas. As cartas em si não seriam problemas, mas sim o que elas contém.
As missões.
Ayla dera-se conta de que agia feito uma espiã juvenil naquele sonho. E o único cuidado que deveria tomar era de não ser pega. Isso significa que ninguém poderia saber, e muito menos desconfiar de si.
Não poderia encher o rapaz de perguntas, para a sua frustração. Deveria fingir? Bem... Era boa naquilo, não?
Levantando-se do estofado, Ayla estendia a mão em direção a Pedro.
― Já devo retornar para meu quarto e terminar de arrumar minhas coisas. Foi um prazer conhecê-lo, Pedro.
O garoto a avaliara com os olhos cerrados, e então levantou-se do estofado ficando de frente a ela.
― Você... Tem medo de mim?
― De você? Não... Mas infelizmente não posso dizer o mesmo de sua foice. Aliás, por que tem uma?
O garoto apenas balançara os ombros e desviara o olhar.
― Pode me fazer dois favores?
― Se estiver no meu alcance...
― Não conte à ninguém sobre a casa ou sobre mim. ― Ayla concordara sorrindo levemente para o rapaz. Pedro novamente desviava o olhar, mas logo voltava a encará-la com certa determinação em seus olhos ― E a outra coisa... Poderia vir me visitar mais vezes?
Diferente das outras vezes, Ayla não se assustara em ter desbloqueado um diálogo. O que estranhara em si mesma.
Se o sonho era seu, então poderia lhe garantir certas regalias, não? O garoto vivia preso em uma casa sem ter com quem conversar. Suas cenas eram sempre fofas, aquecendo seu coração com o mel do romance. A protagonista e ele era o casal diabético, certamente.
Só que naquele sonho Ayla queria conquistar o vilão. Isso não a impediria de oferecer sua genuína amizade à ele, certo?
Ela sorrira e segurara as mãos do garoto, entregando o sorriso mais quente que tinha.
― Eu prometo vir visitá-lo todos os dias, Pedro.
No instante em que apertaram as mãos ela percebera aquele dourado brilhar como ouro. Como se a centelha de uma vida fosse acendida para ele. Despedira-se com acenos e sorrisos sinceros, pois dava-se conta de estar conhecendo todos os personagens de seu jogo predileto. E não haveria felicidade maior do que essa.
Quando passara pelo buraco da parede e retornara ao seu dormitório, Ayla clareava as informações em mente. Teria de se preparar para o primeiro evento do jogo, o eclipse lunar. Isso significava que precisaria, de alguma forma, conseguir passar essa noite com Levi.
E para conquistar esse evento, precisaria se aproximar dele. A única maneira que imaginara era a partir de Rafael, já que ambos são amigos.
Se antes estava temerosa de encontrar-se com o presidente do grêmio após a aula, Ayla agora mal podia aguentar de ansiedade. Chegara a hora de finalmente conhecer o seu vilão predileto.
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Atualizado até capítulo 71
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