Algo estava parecendo muito estranho por ali.
O sonho lhe pertencia, era ela a protagonista daquela história. Então por que Mayla estava ali?
A verdadeira protagonista de “Monochrome Ghost” seria a sua colega de quarto? Por quê?
E como se não bastasse tamanha realidade em vê-la ali na sua frente, ela era bem mais bonita do que os gráficos do jogo. Olhos grandes e brilhantes transparecendo uma inocência pueril, cabelos curtinhos em seu pescoço e os lábios rosados. Parecia uma boneca em tamanho real do que um ser humano.
― Desculpe nos conhecemos?
Empertigada, Ayla desviara o olhar com um sorriso nervoso.
― T-Temos nomes bem parecidos, não acha?
A garota levara a mão à boca e rira baixinho concordando.
― É mesmo! Deve ser o destino.
Ayla soltara um suspiro aliviado em não ter sido mais questionada pela garota, que abrira mais a porta do quarto lhe dando passagem. Espiando brevemente o quarto, percebera que haviam algumas caixas recolhidas à uma parede.
― Ah, suas coisas chegaram ontem à noite. Parece ter muito o que arrumar, se quiser eu posso te ajudar.
― Faça isso, senhorita Mayla. Ajude-a no que puder, e por favor lhe mostre a escola. ― Dissera Rafael, fazendo as duas garotas se lembrarem de sua presença ali no corredor. ― Devo ir agora, há muito trabalho na sala do conselho.
― Farei o meu melhor, senhor Zanetti.
― Ah e obrigada pela ajuda ― Apressara em responder Ayla.
― Qualquer coisa estou à disposição para tirar dúvidas.
No instante em que o presidente do grêmio virara as costas, Mayla puxara sua nova colega de quarto para dentro do cômodo e encostara a porta.
Dentro Ayla pudera perceber que o quarto era mediano, tendo espaço suficiente para duas adolescentes terem seus espaços privados. O lado esquerdo era simples, mas bem decorado. Já o direito parecia não ter vida com tantas caixas empilhadas.
Por um instante Ayla fizera uma careta só de imaginar o trabalho que teria em desempacotar suas coisas. Apesar de não fazer a menor ideia do que haveriam dentro.
― Temos um tempinho até o refeitório liberar o café da manhã, quer que eu te ajude a desempacotar suas coisas?
Segurando as mãos de sua colega de quarto, Ayla formava um beicinho manhoso nos lábios.
― É um anjo na terra! Se não for incomodo, gostaria muito de sua ajuda!
Tão breve as duas foram para as primeiras caixas, abrindo-as para retirar seus pertences.
Que sonho estranho, real e detalhado, pensava Ayla. Até mesmo seus objetos pessoais iriam aparecer? Qual a necessidade disso?
Enquanto abria a caixa, não deixava de se questionar. A sensação de que havia sonhado com algo importante e se esquecido lhe perturbava a mente também. Como se não bastasse, ainda existia a ligeira ansiedade em encontrar cada personagem do jogo.
Até fitara a janela pelo canto dos olhos, e ficara nas pontas dos pés ao percebê-la aberta, buscando por algum telhado ao longe que pudesse ser a tal casa do esquecido. Esse seria o único paquera do jogo que ela mesma teria de procurar, já que não andaria pela escola.
Mas por ora se contentaria em ter encontrado o segundo paquera mais difícil do jogo, aquele que domina a rota do popular: Rafael Zanetti.
Quando seus dedos tocaram o primeiro item de dentro da caixa, Ayla estranhara. Baixando os olhos, arqueara a sobrancelha erguendo a blusa de tom pastel a analisando melhor.
Isso seria seu? Desde quando? Faziam anos que não usava blusas tão claras e fofas.
― Ah que vestido mais lindo!
Olhando sobre o ombro vira Mayla puxar um vestido branco delicado com rendas. Lembrava-se de algo parecido... Mas o que era?
Puxara de sua memória cada vestígio de uma lembrança sobre aquela peça de roupa. E como se abrisse um baú grande, fundo e enferrujado, viera algo que lhe horrorizava.
Era o vestido que usara naquele dia... O vestido que usara no dia em que sua vida se tornou um verdadeiro inferno. Oh sim, se lembrava com detalhes agora, para o seu terror.
Mirando os olhos amendoados para suas próprias mãos, fitava a blusa de tom pastel que tanto segurava com força. Na caixa também haviam tantas outras roupas com tons claros e delicados.
Por que sua mente estava fazendo aquilo consigo?
― Não imaginei que você gostava dessas roupas. ― Comentava Mayla ocasionalmente, retirando mais e mais peças da caixa que parecia não ter fim ― Digo por estar usando roupas escuras. Pensei que gostasse de moda urbana e não romântica.
― Mayla, t-tem certeza de que essas caixas são minhas?
― Oh sim, tem seu nome escrito nelas, vê? ― Apontava para as caixas, com os nomes virados para frente. Ayla sentira suas pernas bambearem.
Rapidamente abrira outra caixa encontrando itens de decoração. Brancos, tons pastéis novamente e um rose gold eram as cores predominantes de seus pertences. Não haveria uma peça escura entre eles.
Na terceira caixa encontrara seus calçados, sem nenhum tênis ou coturno, apesar sapatilhas e salto alto delicado.
Mais e mais caixas foram abertas, encontrando o completo oposto do qual usava habitualmente. O desespero simplesmente começara a crescer em seu peito, aumentando sua ansiedade como se fosse perseguida pelo pior dos pesadelos.
Aquelas não eram suas coisas!
Havia jogado tudo fora! Não condiziam com quem ela era agora. Então por que raios aquilo estava ali na sua frente?
― Você está bem, Mayla? Está pálida e suando...
― Estou bem! ― Respondera de imediato, apertando os dedos na caixa ― Eu estou bem. Deve ter acontecido algum engano, pois não uso essas roupas. Não mais.
O que quer dizer?
Mordendo o lábio na frustrada tentativa em se acalmar, Ayla enfiara a blusa na caixa novamente.
Pode ficar com todas elas se gostou. - Virando-se para a porta, caminhara apressada à sua única saída - Preciso de ar, logo eu volto.
Sem ouvir as palavras de sua colega de quarto, Ayla apenas passara a porta e a fechara em um baque alto. No corredor seus pés continuavam apressados, iniciando uma corrida pelas escadarias para fugir.
Mal vira os demais alunos que desciam as escadas para irem ao refeitório. Ainda que esbarrasse em alguns deles, apenas sussurrava um pedido de desculpas automático e continuava a correr. Chegara a esbarrar em alguns adultos, talvez professores, mas não dera atenção a eles. Somente parara ao sentir uma corrente de vento que lhe despertara do seu torpor.
Cansada ela se encostava na parede fechando os olhos buscando amenizar sua respiração ofegante. A textura gelada da parede lhe dera algum alivio, mas não por muito tempo.
― É a garota nova.
― É ela mesma! Não parece assustada?
― Deve ter visto eles.
― Mas já? Se bem que ela veio do quarto andar, não é mesmo? Deve ter visto eles lá.
― Que medo! Não quero me aproximar.
Aquela maldita sensação voltava. Poderia ser diferente, palavras diferentes, mas a sensação permanecia a mesma. Saber que há alguém falando sobre si não era legal. Principalmente quando puxavam mais lembranças daquele baú enferrujado.
Os risos.
Os sorrisos maliciosos.
As palavras mentirosas.
A raiva escondida nas entrelinhas.
Ah, realmente não havia superado aquilo ainda. Não estava pronta para a maldade da realidade. Até mesmo cobrira os ouvidos tentando não escutá-los, o que fora uma falha pois parecia mais desesperada do que antes. Se a intenção era não chamar atenção, seu nervosismo estava conseguindo um efeito contrário, pois os alunos a olhavam com extrema curiosidade apesar de manterem considerável distância.
Quando erguera os olhos para saber onde estava exatamente, se arrependera. Já havia recebido os diversos tipos de olhares antes, mas jamais fora alvo de medo. Aqueles alunos não queriam ficar perto dela por medo.
Medo do quê, afinal de contas?
― Você está bem?
Na porta de saída tinha alguém. Parecia um adulto, mas não enxergara seu rosto devido à claridade do lado de fora. Sem responder, Ayla apenas engolira em seco espreitando os olhos tentando enxergar o sujeito que quebrava a barreira do medo dos alunos.
Mais perto, mais e mais, o suficiente para ela encontrar os cabelos curtos e castanhos claros, as mangas da camisa social dobradas até os cotovelos mostrando as tatuagens em seus braços, o cigarro acesso entre os lábios e os olhos castanhos felinos.
O reconhecera de imediato.
― Devo te levar até a enfermaria? Parece que vai vomitar à qualquer momento.
― Estou bem. ― Respondera ao se desencostar a parede, prestes a dar as costas ao sujeito.
― Está com medo de mim? ― Ria o homem.
Olhando sobre o ombro, Ayla o vira tragar o cigarro e espreitar os olhos para si. Somente então se dera conta que estavam apenas os dois por ali, os alunos haviam dispersado permitindo o silêncio e a calmaria de volta. E Ayla era grata por isso.
No entanto o problema agora era outro.
Havia encontrado o segundo personagem paquera do jogo. E ele vira o lado mais depreciativo dela. Ah, que vergonha. Até mesmo em seus sonhos estava sendo ridícula. Não haveria nenhum ponto de paz em seu inconsciente?
Pois bem, não acordaria tão cedo do seu sonho e a única forma de sobreviver sem se tornar uma maluca da cabeça, era enfrentar as armadilhas de seu inconsciente.
― Não estou com medo, professor.
Ele arqueara a sobrancelha ao tragar novamente seu cigarro.
― Sabe quem eu sou?
― Professor Daniel, dá aula de filosofia e é o patrono do clube de astronomia da escola.
O professor ficara em silencio ao dar exatos cinco passos para se aproximar da garota. Tirando o cigarro da boca, ele erguera o queixo soprando a fumaça ao alto sem desgrudar os olhos felinos dela.
― Está bem informada para uma aluna transferida.
Sua mente ficara em branco! Comprimira os lábios ao se dar conta de que havia dito muito mais do que deveria. “Boca maldita, fique quieta!” repreendia-se a garota.
― É-É o professor responsável pela minha classe, não?
Coçando os cabelos, ele se afastara parecendo completamente indiferente.
― Isso é verdade, o grêmio estudantil que a recebeu, não é mesmo?
― S-Sim, Rafael me disse...
Deveria pedir desculpas ao presidente do grêmio quando o encontrasse mais tarde, provavelmente o professor conversaria com ele e a mentira seria revelada. Afinal, ela nem sabia qual a sua classe!
― Então, por que estava correndo pelos corredores como se tivesse visto um fantasma?
O professor não parecia realmente interessado em saber seus motivos, e provavelmente lhe daria uma bronca por parecer tão desesperada por causa de meras roupas. Ou pelo menos ela considerava ridículo ter criado uma cena daquelas por meras roupas. Para um adulto isso apenas mostraria que era uma criança mimada...
Ah céus, agora que havia se acalmado o arrependimento vinha como um míssil em sua direção. Acariciando a própria testa, Ayla sorrira envergonhada ao escolher a sinceridade.
― Na verdade foi apenas um probleminha com minhas roupas, meus pais devem ter enviado os pacotes errados.
― Seus pais cometeriam esse tipo de erro?
― É-É, sabe como é... Minha irmã mais velha também trocou de escola e eles devem ter confundido nossos pertences...
Sua voz fora morrendo quando percebia toda a atenção do professor. Ele estava a avaliando, sabia disso. Infelizmente Ayla não era boa com mentiras, o que fizera seu nervosismo retornar ao seu coração.
― Deixe-me perguntar uma coisa, senhorita Bitencourt. Nossa escola tem uma boa nota no ministério da educação, mas os rumores não a tornam famosa ― O professor se encostara na parede ao lado da lixeira, onde apagara o cigarro e o jogara. Então, erguera os olhos para a garota, semicerrando-os desconfiado ― Por que escolheu vir para cá?
O vento que soprara da porta a emudecera, mas aliviara o calor em sua nuca. Seus ombros caíram levemente em tempo que fitava com certa surpresa para o professor. Como carregado pelo vento, a memória trabalhara pela terceira vez, mas com algo diferente.
Lembrara-se do jogo. Mais precisamente da primeira rota, a do professor.
Aquele era um diálogo cuja resposta determinava a primeira pontuação entre o jogador e o paquera. Mayla, a personagem controlada pelo jogador, havia esbarrado no professor enquanto caminhava pelos corredores no café da manhã. Prestes a cair ele a segurara, e então lhe desejava as boas vindas.
Diferente do que aparecia no jogo, o professor deixava claro sua desconfiança sobre Ayla. Fazia muitos questionamentos e não lhe dirigira um sorriso afável. Por isso não desconfiara que suas mentiras poderiam resultar naquela simples pergunta.
Ela havia desbloqueado aquele diálogo?
Como?
Quando?
Por quê?
E como deveria responder?
Quando se joga, o caminho é simples. Se deseja conquistá-lo deveria dizer a verdade. Que viera para Falls School para não ser um fardo para seus pais, e assim pode focar nos estudos. Contudo aquela não era a sua verdade, era a de Mayla.
Ou seja, sobrariam as duas outras respostas. A que diminuiria as chances de uma boa pontuação e a que manteria a intimidade neutra.
Mas Ayla não fazia a menor ideia de qual caminho desejaria tomar. Conquistaria ele? Ou o afastaria de vez? Como deveria interagir com os paqueras naquele sonho?
“Não pensara que eram armadilhas do inconsciente? Não dissera a si mesma que enfrentaria?”. Ah, a voz teimosa e baixa retornava em sua mente branca. Deveria agir como ela mesma? E como seria? Quem era ela naquele sonho?
― Eu não escolhi, fui escolhida ― Dissera por fim, segurando o próprio braço e baixando os olhos com certo receio. Não conseguiria encará-lo agora, já que se sentia tão perdida poderia se arrepender de suas palavras caso visse sua reação ― Falls School me escolheu para vir até aqui por algum motivo.
Mantendo o olhar baixo, ela escutava atentamente. Não ouvira se remexer, muito menos suspirar. Parecia que não estava ali. Ainda que não o olhasse, Ayla sentia que ele a fitava analisando cautelosamente.
― Não faz ideia desse motivo? ― Ouvira-o finalmente. Automaticamente ela levantara a cabeça, percebendo que o professor mantinha o semblante neutro e desinteressado.
Um alívio lhe tomara o peito. E então se permitira rir baixinho.
― Devo descobrir em breve, professor.
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Atualizado até capítulo 71
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