Era seu aniversário e havia sido chamada por sua irmã mais velha para ir ao mercado na tentativa de sair de seu quarto, da qual se trancara por seis meses. Após mais de doze horas jogando sem sucesso em desbloquear o final romântico com o vilão, Ayla havia decidido que sair e espairecer seria o melhor jeito de encontrar uma resposta.
No entanto, o que parecera ser um passeio para respirar novos ares se tornara em um pesadelo. Começando pelo encontro com as garotas de sua escola, que fizeram questão de falar alto aquilo que Ayla tanto lutava - ou seria fingir? - para esquecer. Em seguida fora o encontro com o sujeito mascarado com suas perguntas misteriosas e sem sentido. Depois o assalto.
Ah sim... Seu corpo ainda tremia de pavor ao lembrar da arma sendo apontada para si, e de sua irmã tentando lhe proteger. Seus sentidos ainda pareciam entorpecidos e suas pernas estavam pesadas, com uma leve sensação de tremor nelas. Principalmente quando elas se moveram sozinhas na tentativa de salvar sua irmã.
Depois... Bem depois veio aquela sensação engraçada, não é mesmo? Em que algo passara por seu peito, em seguido daquele calor e umidade. A dor viera em seguida... Ah levara tiros.
Espera um instante... Ela levara tiros!
Tateando o próprio corpo, Ayla procurava pelos ferimentos em seu peito. Não encontrando absolutamente nada em seu corpo, baixara a cabeça olhando suas próprias roupas que tinham dois buracos no peito. Esticando o tecido de algodão, arregalava seus olhos amendoados em maior surpresa.
Mas o que...
― Há algo errado, senhorita? ― Ayla não conseguira desviar os olhos de sua blusa, a puxando para ver por dentro de havia algum ferimento, pela milésima vez ― Ah, se tropeçou em alguma raiz é provável que tenha rasgado na queda.
Queda? Mas ela não havia caído, disso tinha certeza!
Afinal, seu corpo ainda parecia ridiculamente duro e pesado.
Apoiando as mãos no chão ela sentira algo úmido entre seus dedos. Afundando as digitais reconhecera um gramado e terra. Onde estava? Inclinara a cabeça para trás se dando conta da escuridão em sua volta, das imensas árvores e o céu estrelado com algumas nuvens espalhadas.
― O-Onde estou?
― Não se lembra de como veio parar aqui?
Ahn? Espera um instante... Com quem ela estava conversando esse tempo todo? E por que tal sujeito estava lhe tocando o braço? Virando-se para a direita, espreitava os olhos tentando enxergar o sujeito perto de si.
Seria o mascarado de novo? Pelos céus que não fosse, aquele sujeito era assustador por demais. Também não se encontrava em pleno juízo para ouvir perguntas sem sentido mais uma vez.
― Estamos na entrada do internato.
Internato? Não um mercado ou um hospital? Alias... Não conhecia nenhum hospital que tivesse árvores tão altas por perto, ou seria alguma construção nova? Poderia, afinal não andara mais pela cidade no último semestre.
― Hm.. Internato?
― Sim, estamos em Falls School. Você não é a aluna transferida?
Falls School... Conhecia esse nome de algum lugar. Não conseguira pensar demais, sua cabeça dera pontadas irritantes a obrigando, até mesmo, a fechar seus olhos.
As nuvens que cobriam o céu seguiram seu curso para o norte, e então a lua cheia pudera espalhar sua fraca luz por aquela clareira iluminando tudo. Ayla finalmente enxergara a grama, a terra, as raízes de árvores espalhadas perigosamente, os arbustos, e o sujeito que estava ao seu lado.
Na medida em que a lua cheia iluminava-o, Ayla tinha seus olhos esbugalhados. Primeiro foram os cabelos compridos e platinados, em seguida foram os olhos claros e brilhantes que a fitavam preocupados.
Sua surpresa era tamanha que a garota não conseguira falar e muito menos se mover. Encarava-o emudecida, piscando uma vez ou outra para saber se estava vendo o certo.
― Estava à sua espera, senhorita.
― R-Rafael? ― Erguendo o indicador para o sujeito, ela permanecia atônita ― R-Rafael Zanetti?
― Me conhece? Ah, provavelmente o diretor deve ter mencionado que eu a esperaria.
― Estou sonhando... Hahaha, só pode ser um sonho, muito bem elaborado. Isso é o que acontece quando ficamos jogando por tanto tempo? Uaaau, isso é realmente alguma coisa!
O rapaz, por outro lado, não parecia compreender o motivo do olhar incrédulo e a risada falsa.
― Será que bateu sua cabeça na queda?
― Eu não caí!
― Mas estava caída no chão, é claro que caiu.
― Isso só pode ser um sonho... E dos bons... Cheguei ao patamar de sonhar com um jogo... Só pode.
― Desculpe atrapalhar seus... Pensamentos, mas consegue se levantar? Está ficando tarde e o toque de recolher logo tocará.
O rapaz levantara-se e estendera a mão para a garota. Ayla ponderou um instante antes de segurar sua mão e verificar se suas pernas aguentariam sustentá-la, e então levantara batendo em suas roupas para tirar os pequenos galhos presos.
― Devo levá-la para a enfermaria?
― Acha que bati a cabeça e estou ficando maluca?
― Não faria uso dessa palavra, mas você me parece um pouco desnorteada talvez passar a noite na enfermaria seja mais seguro.
Estava sonhando, não é mesmo? Então estaria tudo bem seguir um personagem de jogo até a enfermaria, desde que conseguisse dormir e acordar de verdade. Isso, se dormisse no sonho talvez pudesse acordar no hospital ao lado de sua família.
Tudo voltaria ao normal, então.
― Não se importa em mostrar o caminho? Parecia preocupado com o toque de recolher.
― Não há problemas, eu a levo.
Quando começaram a caminhar, Ayla se permitira analisar a situação. Estava caminhando ao lado de um personagem de um jogo, saindo de uma floresta medonha para ir até a enfermaria de uma escola assombrada, que inclusive também fica em um jogo.
Ela conhecia a enfermaria? Não se recordava de nenhum evento acontecendo por ali... Ou seria uma brincadeira de sua mente para justificar a sua necessidade em verificar seu corpo onde levara os tiros? Sabia que a mente humana era engenhosa e complexa, coisas assim poderiam acontecer.
Apesar de que nada parecia ser mais fantasioso e engraçado do que sonhar consigo mesma dentro do seu jogo preferido.
Em seu caminhar, acabara por tropeçar em uma raiz. Rafael rapidamente a segurou pelo cotovelo impedindo uma queda.
― Está muito escuro para enxergar o caminho não é? Tome cuidado.
― Obrigada.
Continuando a caminharem para a entrada da escola, Ayla percebera que o rapaz não a soltara. Permanecera com a mão em seu cotovelo a ajudando a pular algumas raízes, principalmente quando ela conseguira quase tropeçar uma segunda vez. Realmente suas pernas não a obedeciam.
Olhando-o pelo canto dos olhos, ficou a se questionar sobre aquele personagem. Seria assim que o imaginava de verdade? Se Rafael realmente existisse, seria assim a sua voz? Sua altura? Seu toque? Era mais alto que ela, apesar de ser um rapaz bem magro. Cabelos compridos e platinados caíam em suas costas balançando com o vento. Sua voz era baixa e calma, serena e elegante, assim como seu toque que era gentil.
Quando passaram os portões enferrujados, Ayla sentira um arrepio passar em seu corpo. Erguera a cabeça olhando a construção antiga de cima à baixo, e não deixara de ficar boquiaberta diante de tamanho realismo que aquela fachada lhe apresentava.
Não era a mesma sensação que tivera quando jogara pela primeira vez. Certamente não, nem chegava aos seus pés. Falls School era gigantesca e antiga, com uma construção gótica. Talvez por ser noite, as paredes pareciam escuras e assustadoras. As janelas eram impossíveis de se observar algo dentro delas, mas era perceptível algum tipo de iluminação.
Faltariam apenas os raios e trovões, um maluco tocando órgão e morcegos voando sobre o telhado pontiagudo. E então toda a atmosfera horripilante estaria completa.
Rafael a guiara até a entrada da escola, uma porta dupla que rangera quando a empurrara. Uma vez dentro e perto da recepção, encontrara apenas o silêncio e o vazio.
― Parece que já terminou o turno da recepcionista. Tudo bem se cuidar da papelada de sua matricula amanhã?
Um pequeno desespero surgira no peito de Ayla. Que papelada? Ela não tinha nada disso consigo! Muito menos tinha uma identidade que comprovasse seu nome. O que fariam quando percebessem que ela era uma farsa? Que não seria uma aluna transferida coisíssima nenhuma?
― T-Tudo bem, pra quê incomodar os outros a essas horas?
Ele apenas rira e continuara a guiá-la pela escola.
Permanecendo em um silêncio pelo resto do trajeto, Ayla não conseguia conter seus pensamentos. Lamparinas espalhadas pelos corredores iluminavam seus caminhos. O piso monocromático era tão charmoso quanto pareciam nos gráficos do jogo. E reais, certamente não esqueceria tal detalhe de realismo. As paredes brancas e as portas pretas, janelas fechadas com cortinas vermelhas que pareciam sufocar qualquer um.
Se não fosse pela aura assustadora, certamente Ayla consideraria o interior de Falls School luxuosa. E o maior luxo daquele lugar estava ao seu lado, como quem combinando com o ambiente.
Rafael Zanetti era um dos personagens paqueras do jogo, sendo o protagonista masculino da terceira rota denominada de o popular. E assim como o nome de sua rota esclarecia, ele fazia parte do clichê garoto popular amado pelos alunos. Bons nos esportes e nos estudos, era gentil e cavaleiro ganhando suspiros das garotas e a confiança dos garotos. Além disso, presidente do grêmio estudantil por todos os anos.
Era um exímio estudante exemplar.
Apesar dos rumores sobre ele ser um fantasma.
Ah, certo. Lembrava-se do comecinho do jogo em que sua personagem, Mayla, chegava na escola e já ouvia os rumores sobre os dois alunos fantasmas. Seriam eles os responsáveis pelo caos que Falls School se encontra, dos vivos que desaparecem, dos corpos que surgem, dos gritos que se ouvem à noite, e das maldições que recaem nos alunos.
Apontado como um dos fantasmas que causam tamanha perturbação, Rafael não era temido. Chegava a ser justificável quando notava, na pele, o cuidado que ele tinha com os outros. Não tinha como ignorar sua existência e odiá-lo. O maldito era bonito demais!
― Há algo errado, senhorita?
Piscando algumas vezes, Ayla corara ao se dar conta de que o encarava à minutos. Recém tinham parado em frente a uma porta escura, com uma plaquinha acima sinalizando a enfermaria. Negando com a cabeça, a garota apenas dera um sorriso nervoso.
― Não há nada, apenas se parece com alguém que eu conheço... Eu acho.
― Pareço?
A curiosidade crescia nos olhos claros de Rafael, a deixando nervosa. Droga, estava começando a suar frio novamente. Para dar o assunto como encerrado, Ayla apenas encarava a porta e respirara fundo mantendo-se em silêncio.
Entendendo do recado, o rapaz batera na porta três vezes antes de abri-la, colocando apenas a cabeça na fresta que abrira. Então a olhara por cima do ombro.
― Parece que a enfermeira não se encontra, mas podemos esperar. O que acha?
Não poderia dizer que iria para seu quarto, pois não tinha um. E se a enfermeira constatasse que ela não era uma aluna transferida seria expulsa na hora. Talvez devesse permanecer na floresta...
Era um sonho, não é mesmo? Então não teria problema fingir um pouquinho.
― Posso esperar ― Respondera por fim.
Rafael empurrara a porta dando espaço para entrarem. Com três camas à sua direita e a mesa da enfermeira ao lado de uma estante velha à sua esquerda, Ayla constatou que a enfermaria era grandinha. Sem raízes para tropeçar, desvencilhara do rapaz e se arrastara até uma das camas onde se sentara e soltara um suspiro pesado.
Seu corpo estava cansado, queria dormir um pouco e talvez acordar em sua vida normal. Mas sem se entregar ao sono, Ayla voltara a encarar o rapaz que olhava a mesa da enfermeira.
Por que estava sonhando com Rafael? Por que ele estava a esperando na floresta? Além disso, ele parecia real demais para um personagem de um jogo, ou então para um fantasma. Em tese não seria possível tocar em um fantasma, não é mesmo?
No jogo nunca fora dito sobre ele ser, de fato, um fantasma ou não. Porém quando a protagonista começa a investigar os boatos e tenta tirar a maldição da escola, ele fica ao seu lado parecendo saber de muitas coisas.
Nem mesmo com a nova versão do jogo Ayla descobrira alguma coisa. Tudo ficara trancado naquele maldito final que jamais desbloqueara.
O final romântico com o vilão.
Um estalo a despertara. Se ela estava na presença de Rafael, e sonhando com Falls School, isso significaria que à qualquer momento ele apareceria, não é mesmo?
― Está com dor? Seu rosto está vermelho.
― Me diga Rafael, onde está o Levi?
Repentinamente o seu semblante ficara sério, como se uma sombra levasse embora sua gentileza de pouco. Os olhos se espreitaram para a garota, e seus punhos se cerraram ao lado do corpo. Ele a fitava com tamanha intensidade, que por um instante Ayla duvidara de que aquele seria um sonho.
― Como conhece esse nome?
Ah... Seria contra as regras do sonho dizer que eram personagens de um jogo? Ou então que ela era simplesmente fissurada em um rapaz que era calado e misterioso? Até que ponto deveria fingir não saber de nada, quando estava mergulhada em seu próprio sonho?
Não deveria ter medo, certo? Nada era real.
― Ele é seu amigo, não? Pensei que estaria ao seu lado.
Rafael permanecera em silêncio, um silêncio estarrecedor e melancólico gerando tensão na enfermaria. Ayla chegara a encolher seus ombros, mas não ousara desviar os olhos dele. Era o seu sonho afinal de contas.
O rapaz cruzou os braços sobre o peito e inclinou-se para frente, ficando centímetros de distância do rosto da garota. Espreitou mais dos olhos claros analisando por completo as reações de Ayla. Fora uma luta para manter a seriedade, já que não soltaria o controle de seu sonho.
No entanto, não conseguira controlar seus amendoados olhos de se arregalarem sutilmente quando o ouvira questionar.
― Você... Não é uma aluna nova, é?
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Atualizado até capítulo 71
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