Sério, Universo?
Finalizei o dia com um beijo na bochecha. Acordei estressada, não queria reagir e conquistar meus sonhos, implorei que fosse um pesadelo e ainda tinha mais três horas de sono. Porém, a realidade já é o pesadelo
Gostar de crianças nunca foi meu forte, preferia morrer do que cuidar de um filho ou ser babá. Mas quando você sai do ninho e decide voar para qualquer canto, é difícil sobreviver, pois não tem mais ninguém para mastigar a comida e colocar na sua boca
A crise financeira bateu e optei para qualquer cargo, não importa a função, me dando uma estabilidade financeira para comprar arroz e café, sobreviveria feliz. E foi o que achei, o emprego dos sonhos, aquele que te fazia acordar feliz, porém, teria que lidar com crianças
Dois meses voaram, ainda não abria a mente, odiava conviver com crianças birrentas e catarrentas. Até arrumar mais um emprego noturno, onde era obrigada a lidar com adultos rancosos e amargos da vida. Só reclamavam. Reclamavam de respirar, comer, viver, trabalhar, da esposa, dos filhos, do dinheiro, dos pássaros, da cor azul anil do céu. Três semanas de trabalho e não tinha mais energia para ter uma renda extra, me demiti. Após do inferno, virei um tia amorosa e cuidadosa com meus alunos
Danço e vivo de balé desde meus oito anos de idade, essa é minha obsessão, minha cura durante as tempestades da vida, o gozo de usar figurinos lindos, ganhar aplausos e suspiros e saltar longe, as borboletas no estômago ao dar mais de vinte giros
Seria hipocrisia não trabalhar com balé, já que é meu oxigênio, minhas forças, a ansiedade de um treino. Ter conhecido por cada movimentos e mesmo assim, querer aprender mais e mais, na intenção de aperfeiçoar minhas habilidades
É um prazer ensinar as crianças que um dia, já fui elas e hoje sou apaixonada. Se eu tiver poderes delas se apaixonarem pelo balé, é um conquista que não vale meus troféus e medalhas juntos
Vou embora, contente. A última aluna se despediu um beijo na bochecha, afirmando que sou a melhor tia de todas. Um coral de anjos contou no meu ouvido, enchendo-me de amor e carinho. Posso não ve-la mais amanhã, já que é sábado, mas segunda, me esforçarei mais para conseguir mais elogios desse tipo
Ser elogiado por uma criança traz uma sensação tão boa na vida. É saboroso, macio e quente
A caminhada é curta, vinte minutos e estou subindo os degraus do prédio, com a sensação de missão comprida. Como ontem, anteontem e esse mês inteiro, foi tranquilo, não houve eventos que tirassem minha paz e foderia com a pouca de felicidade que tenho
Na vida temos que fazer escolhas, infelizmente são difíceis, mas elas decidem o destino. Se o universo for bonzinho comigo, ele pode me ouvir e fazer aquilo que sinto mais falta, pessoas que me afastei e criou um vazio, um buraco que vaza tristeza e lágrimas constantemente
Se o universo for bonzinho comigo, entenderá que me arrependo. Adoro ser a tia do balé, mas não foi o que planejei. Assim como não foi minha escolha ser solteira aos vinte e poucos anos, morando com sua melhor amiga e indo dormir com gemidos, pois ela é uma puta de uma safada
Abro a porta, preparada com quem posso me deparar. Não existe final de semana que Mônica não goza, metade dos homens dessa cidade me cumprimenta na rua, porque sabem onde moro e com quem
Isabela
Mônica, cheguei — 𝐀𝐯𝐢𝐬𝐨, 𝐝𝐞𝐢𝐱𝐚𝐧𝐝𝐨 𝐦𝐢𝐧𝐡𝐚𝐬 𝐜𝐡𝐚𝐯𝐞𝐬 𝐧𝐨 𝐩𝐫𝐞𝐠𝐨 𝐚𝐨 𝐥𝐚𝐝𝐨 𝐝𝐚 𝐩𝐨𝐫𝐭𝐚 — Por favor, esteja sozinha
Entro no apartamento. Nos primeiros passos dado, sou recebida pela loira sorridente, com um short jeans minúsculo e uma camiseta preta de banda de rock. Seu cabelo curta está amarrado em um rabo baixo
Mônica
Boa noite, minha linda e perfeita amiga
Isabela
Tá feliz, por quê? Te homem aí? — 𝐕𝐚𝐬𝐜𝐮𝐥𝐡𝐨 𝐬𝐢𝐧𝐚𝐢𝐬 𝐦𝐚𝐬𝐜𝐮𝐥𝐢𝐧𝐨𝐬 𝐯𝐢𝐬𝐮𝐚𝐥𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞
Mônica
Mais ou menos. Ele é... uma diva para mim
Isabela
Uma diva? Conheço? — 𝐓𝐞𝐧𝐭𝐨 𝐩𝐚𝐬𝐬𝐚𝐫, 𝐦𝐚𝐬 𝐞𝐥𝐚 𝐢𝐦𝐩𝐞𝐝𝐞 — Quem está aí?
Mônica
Isabela, não surta. Voltamos a nos falar esses dias, não posso ficar mais um mês sem conversar com ele
Isabela
Mônica, quem está aí?
O suspense me mata. Uma lista de pessoas que ela gosta e eu não passa pela minha cabeça, não gosto de aceitar que existe um ser humano capaz de perdoar suas mancadas com ele e ele ainda estar aqui, sendo seu brinquedo particular
Suspiro fundo, fechando os olhos
Isabela
Não importa quem seja o convidado, já vi qualquer homem que possa imaginar — 𝐅𝐢𝐧𝐚𝐥𝐦𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐩𝐚𝐬𝐬𝐨 𝐩𝐨𝐫 𝐞𝐥𝐚, 𝐢𝐧𝐝𝐨 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐨 𝐜𝐨̂𝐦𝐨𝐝𝐨 𝐩𝐫𝐢𝐧𝐜𝐢𝐩𝐚𝐥
Toda discussão que tenho com Mônica começa pela sala, seja pela bagunça, ou por ela não me respeitar e começar seus sexos no sofá. Não quero que a loira estrague o beijo na bochecha, voltei tão feliz, louca para assistir mais um episódio da minha série favorita
A sala é o início dos drama do apartamento. Pois aqui entra criaturas bizarras, homens loucos, colegas de treino, vizinhos curiosos. Um homem alto jogado no sofá, barbudo, usando panos pretos, olhos vermelhos e vidrado no celular
Ele está irreconhecível, as roupas pretas não mudaram, mas os braços não tem mais espaço para mais desenhos, a barba que o deixa mais atraente e estranho ao mesmo tempo. Seu corpo parecia mais largo, mas não afirmo o pensamento, pois sua posição não libera muito para relembrar suas características
Mônica
Miga, lembra do meu primo?
O mundo para. Mônica se cala. Minha respiração acelera. O coração enlouquece
O universo é amigo ou inimigo? Pois, não estava preparada ver o retorno do meu passado jogado no sofá, tendo a liberdade como se estivesse em casa
Engolo um seco. Não cumprimento, não sou amigável ou aceno. Apenas o encaro, aceitando mentalmente que é ele
Mônica
Mateus vai dormir aqui, tudo bem?
Isabela
Que? — 𝐑𝐞𝐚𝐠𝐨, 𝐞𝐬𝐜𝐚𝐧𝐝𝐚𝐥𝐨𝐬𝐚 — Por quê?
Mônica
Ele acabou de chegar. E também... percebeu os olhos dele?
Isabela
Mônica, sério mesmo?
Mateus
Mônica, não quero atrapalhar
Mônica
Miga — 𝐏𝐞𝐠𝐚 𝐦𝐢𝐧𝐡𝐚𝐬 𝐦𝐚̃𝐨𝐬 — Fiquei anos sem falar com ele. Você não entende, já que não tem um primo, mas foi dolorido para mim, sabe?
Entendo completamente sua perda, Mônica. Você não enxerga, mas também doeu em mim
Mateus
Tenho forças suficientes para ir embora
Bufo, esfregando os olhos
Mônica já cometeu tantos erros sem me consultar, porque justo agora tenho o poder de escolher suas vontades?
Isabela
Tanto faz, eu não ligo
Saio do cena, dando passos largos até meu quarto. Mônica e Mateus tem muito assunto para colocar em dia, só atrapalharia a conexão de primos. Merecem privacidade, pois é como ela disse, Mateus contou contato com ela, foi um tormento viver com Mônica sem os conselhos dele
Tranco a porta do carro. Jogo minha mochila no canto, onde foi a minha única e última ação. O cômodo escuro, sem ar fresco, exalando bagunça que deixei pela manhã é ignorado, são minhas únicas preocupações. O que machuca é o aperto no perto, o amargo que sinto embrulhar meu estômago, enfraquece meus músculos e pesa minha respiração
Escorrego na porta, sentindo a textura fina e fria do piso, dobrando meus joelhos, abraço-os com força e despejo as lágrimas neles, libertando o leão de emoções faminto, enjaulado por anos. É silencioso, tampo a boca para abafar mais os gritos, limpando o peito do passado, das lembras perdidas, das memórias que não podem ser contadas com crianças por perto
Universo, filho da puta, não deveria ter me ouvido
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