∆
Eu me lembro de tudo....
do seu olhar frio e sério quando eu fazia bagunça, do forte cheiro de suor e sujeira depois de dias sem banho, do aperto firme no meu pulso quando um desconhecido se aproximava de nós. Quando seus pés cediam ao chão, depois de tanto tempo caminhando de vila em vila, de grandes cidades até as menores delas, parávamos em velhas tavernas, onde ele bebia até quase desmaiar. Dormíamos nos quartos que nos cediam por um certo preço e ficava agoniada com o cheiro forte do álcool.
Sinto falta disso, de nossas conversas longas, engraçadas ou completamente malucas. De ser carregada em suas costas, mesmo sem nunca me cansar de verdade; de reclamar do mau cheiro dos seus longos cabelos e brincar com sua péssima visão. De dormir ao ar livre, de ouvir você ler um livro para mim, seus contos de fadas tão deturpados e até mesmo memórias; de suas habilidades e, acima de tudo, de escutar seu coração bater e seu sangue correr.
Agora, não há mais nada.
Tudo isso foi culpa do demônio, o que antes era responsabilidade do meu pai, agora tomo para mim.
∆
O céu escuro, desprovido de estrelas, era iluminado apenas pela pálida luz da lua, quase totalmente encoberta por um manto espesso de nuvens cinzentas. Relâmpagos riscavam o horizonte, e o único som que quebrava o silêncio era o canto dos grilos e o eco distante dos trovões. A cada passo na trilha de terra úmida, a lama grudava nas botas, até que o silêncio foi interrompido por uma voz suave e abafada, feminina e jovem:
"Falta muito para chegarmos? Já estamos caminhando há horas."
Ainda mantendo o ritmo calmo, a jovem suspirou ao ser recebida apenas pelo silêncio do seu parceiro.
Caminhando lado a lado, a jovem entediada observava pequenas poças de escuras de lama à sua frente.
Sem pensar muito, saltava sobre elas, uma atrás da outra espalhando respingos por todo lado, sujando a si mesma e o que estivesse ao seu redor. Entre risos cobertos, continuava pulando de uma poça para outra, até que uma voz grave, em tom de repreensão, a interrompendo.
— Azazel, já chega! Cristal vai surtar quando te vir nesse estado, e adivinha quem vai ouvir a reclamação?— A voz masculina, muito mais madura, se aproximou, segurando o pulso da garota, conduzindo-a pelo caminho como quem puxa um cachorro sem coleira. Ainda aborrecida, a menina jogou a cabeça coberta para trás e resmungou alto, como uma criança mimada.
Com os passos ainda pesados na lama, o caminho emerge da fina floresta e chega a uma pequena vila silenciosa. As casas de pedras empilhadas estavam desgastadas e desmoronando com o tempo; os telhados de madeira e telhas de barro se desfazia, deixando fragmentos caírem ao chão, agora tomado pelo mato alto. O silêncio absoluto na vila era quase ensurdecedor, rompido apenas pelo som das cigarras e pelo voo de morcegos.
Ao se aproximar de uma praça circular no centro da vila, o homem coloca sua grande mochila sobre uma antiga e seca fonte de água. Estica a coluna, ouvindo os estalos dela, e suspira antes de se abaixar na frente da jovem.
— Azazel, fique aqui. Vou procurar a casa menos destruída daqui para passarmos a noite. Não faça nenhuma merda. — Levantando-se, ele acaricia o topo da cabeça de Azazel, sentindo a textura do saco que cobre o rosto dela.
— Não crie muitas esperanças — murmurou Azazel, com um sorriso disfarçado que se escondia sob o saco que cobria sua cabeça.
O homem alto, vestido com trajes escuros, esboçou um sorriso quase imperceptível enquanto segurava algo coberto por um pano. Lentamente, ele se afastou da praça, deixando a jovem sozinha sentada na borda da fonte.
— Não demore muito, pai! Estou super entediada! — gritou ela, balançando os pés para frente e para trás, fazendo com que a barra do longo vestido de babados rosa, sujo nas canelas, acompanhasse o movimento inquietos.
Azazel olhou ao redor, não precisando saber muito para perceber que eram os únicos naquele lugar. A vila, esquecida no fim de uma pequena floresta, estava vazia. Havia um lago ao leste e terrenos férteis, era estranho um lugar tão bom ter sido abandonado. Mas o lugar parecia ter sido abandonado às pressas, como se algo terrível tivesse acontecido.
Não aquentando fica no mesmo lugar a pequena se aproxima de uma das casas, ela sentiu um cheiro estranho, difícil de identificar. A porta estava ausente, e o interior exibia vestígios de um velho incêndio; a estrutura de madeira havia sido reduzida a cinzas, consumida pelas chamas há bastante tempo. "Um incêndio destruiu a vila? Foi por isso?" Essa foi a primeira teoria de Azazel mas logo ela a descartou, algumas das casas na entrada estavam inteiras e um pequeno incêndio não afasta tantas pessoas assim.
Observando ao redor da velha cabana de dois cômodos, ela passou a mão pela mesa de madeira empoeirada, desenhando figuras na janela suja de fuligem. Olhando para fora, a jovem se perdeu em pensamentos, imaginando como seria ter sua própria casa, um lugar só seu, com seu próprio quarto.
Azazel já havia idealizado seu aposento imaginário em incontáveis ocasiões. Certamente seria rosa, sua cor favorita de muito tempo, com incontáveis fitas para de cabelo coloridas para seus penteados futuros e, sobretudo, uma vasta coleção de ursinhos de pelúcia que sua madrinha lhe presenteava a cada retorno de uma missão, fosse ela bem sucedida ou não. Enquanto Azazel se perdia nesses sonhos, o homem de longos cabelos negros, já desgastados pelo tempo, vasculhava o outro extremo da vila.
O homem alto, de pele morena suja de terra seca, olhava com atenção ao seu redor, com o olhar afiado. Examinando as ruas com seu olhar afiado, ele já sabia que havia algo errado naquele lugar, sentindo um peso no peito que alimentava sua desconfiança. Com todos os sentidos alertas, Uriel apertava firme o objeto enrolado em seu pano.
Respirando o mais fundo que seus pulmões permitiam e sentindo apenas o cheiro de um queimado antigo no ar, ele não ouviu nada alarmante. O homem se deixou relaxar por um instante antes de voltar à sua missão inicial. "Uma casa decente por um dia", pensou com um suspiro cansado. Dando mais alguns passos, Uriel chegou à casa "ideal" para uma noite: tinha um teto, paredes mais estáveis e um chão não carcomido. Já era mais que suficiente por hoje.
---
Já cansada de brincar com sua imaginação, Azazel olhou para cima, curiosa sobre o segundo andar da casa. Aproximando-se da escada, a menina deu passos mais leves que pode, com cuidado para que os degraus não cedesse sob seus pequenos pés. No andar de cima, não havia nada de extraordinário: apenas um quarto comum, com camas, uma cômoda e um baú de madeira. Era bem mais escuro que o primeiro andar, que ainda recebia alguma pouca luz de fora. Mas isso não a assustava; seus olhos já estavam mais do que acostumados com a escuridão.
Aproximando-se da cômoda, Azazel abriu as gavetas e encontrou apenas roupas. Puxando uma delas, viu um vestido marrom de manga curta. Não era muito grande, talvez de uma adolescente. Colocando o vestido em frente a si, ela sorriu ao alisá-lo. “Não é tão ruim, só precisa de mais fitas”, pensou, enquanto colocava o vestido sobre os ombros e se dirigia ao baú sem trincos.
Ao abrir o baú com animação, seus olhos brilharam ao ver o que havia dentro: brinquedos, alguns esculpidos em madeira, bonecas de pano e outras feitas de espiga de milho. Com entusiasmo, a menina começou a vasculhar entre os brinquedos até seu coração acelerar. Entre tantos itens simples, Azazel avistou uma boneca diferente, com corpo de pano colorido, vestido de babados e costura fina, cabelos de linha e um rosto de vidro adornado com maquiagem delicada.
- Como você veio parar aqui pequenina? - Azazel sorri alisando o cabelo da boneca, arrumando a toquinho de sua cabeça e a ninando em seus braços.
Enquanto segurava a boneca com carinho, Azazel se perdeu no olhar pintado da pequena figura, imaginando as histórias que ela poderia guardar. De certa forma, sentia que a boneca havia pertencido a alguém como ela, uma criança cuidadosa com suas coisas. A suavidade da textura de vidro do rosto da boneca trouxe-lhe uma sensação quase de conforto, um calor estranho em meio ao ambiente sombrio e desolado.
De repente, o som de passos no andar inferior a tirou de seus devaneios. A garota se virou, ainda segurando a boneca próxima ao peito. Ouviu o rangido da escada e seu coração acelerou ao reconhecer os passos pesados, mas familiares. Reconhecia o cheiro de seu pai de longe. Uriel estava voltando.
Ao surgir na entrada do quarto, Uriel ergueu as sobrancelhas ao ver Azazel segurando a boneca; sua expressão, antes nervosa por não achar a menina no local combinado, suavizou-se um pouco.
— O que você encontrou aí? — perguntou, tentando esconder o tom nervoso na voz.
Azazel ergueu a boneca para que ele a visse melhor. Não era possível ver seu rosto através do pano, mas a animação em sua voz era evidente.
— Olha, pai! Ela estava escondida no baú, junto com outros brinquedos antigos.
Uriel observou a boneca por um instante, seus olhos analisando cada detalhe com uma seriedade peculiar. Não havia qualquer expressão no rosto dele. Com o olhar sério, ele acenou com a cabeça.
— Vai levar essa boneca e o vestido contigo? — perguntou Uriel, pegando Azazel no colo e descendo as escadas.
Azazel assentiu, abraçando a boneca contra o peito como um tesouro recém-descoberto. Abraçando o pescoço do pai com um dos braços, ele a conduziu para fora da casa e em direção à casinha que havia preparado para passarem a noite.
Do lado de fora, a lua estava quase oculta pelas nuvens, deixando a noite escura e carregada de mistério e solidão. Uriel, com dificuldade para enxergar, permanecia atento, cada som ampliando sua vigília.
Dentro do abrigo improvisado, ele organizou um espaço para ambos. As mochilas guardavam tudo o que necessitavam para suas missões: cobertores, uma tenda, carne seca, dinheiro, além de um arsenal de armas e munições. Nunca se sabe.
Azazel, acomodado entre cobertores e ainda segurando sua boneca, observava o pai com curiosidade. Uriel se movia com precisão, conferindo os equipamentos uma última vez antes de se sentar ao lado da filha, exausto mas atento.
Com um último ajuste nas armas, Uriel finalmente se permitiu relaxar um pouco. Sentado ao lado de Azazel, ele a observou em silêncio por alguns instantes. Ela estava absorta em suas novas coisas.
— Azazel, é melhor dormirmos agora. Amanhã, bem cedo, seguimos para Castina — disse ele com sua voz firme.
Ela ergueu o rosto, os olhos brilhando sob o pano que escondia suas feições. Sentando-se no espaço arrumado, Azazel desamarrou o grande laço rosa em seu pescoço; o saco de batatas decorado saiu de sua cabeça, e ela suspirou aliviada, respirando fundo. Engatinhando até o pai, aninhou-se contra ele. Uriel envolveu o corpo dela com o braço, puxando-a para mais perto, sem olhá-la diretamente — um gesto que, mesmo em sua dureza habitual, demonstrava afeto. Sentia o peso daquela responsabilidade, um fardo.

— Tem algo estranho nesse lugar. Achou algo importante? — perguntou Azazel, olhando o homem com seus olhos arregalados esverdeados, quase sem ter pálpebras sobre seus olhos.
Ele, por outro lado, permaneceu desperto. Observava as sombras projetadas pelas árvores ao redor da casa improvisada, atento a qualquer movimento, por menor que fosse. O cansaço se acumulava, mas não havia espaço para descanso completo. Sentia a presença de algo invisível, um peso quase tangível pairando na vila.
— Foi mais um ataque. Não precisa ser um gênio para perceber. Não achei sangue, então devem ter os levado... mais uma fazenda de sangue — disse ela, olhando para a janela na sala e vendo apenas a escuridão lá fora.
— Chegamos tarde? — perguntou, encolhida, puxando a coberta para cobrir a si e seu pai.
— Teríamos o mesmo destino deles. Não pense nisso por agora -
**********