Numa época muito anterior à nossa, em que ainda se media o tempo por Eras, e os seres humanos dividiam o mundo com toda sorte de criaturas místicas…
Uma lágrima solitária, com sabor de ciúmes, banhou a decrépita face milenar da minúscula elemental ao observar o ser amado tocar em outros lábios que não os dela.
De repente, um arrepio percorreu-lhe a alma, enquanto dava vazão a um sinistro pensamento. E então, obcecada por aquele amor impossível, que a consumia dia e noite, pôs-se a executar o maquiavélico plano. Sim, ela estava ciente das consequências. Mas com a decisão já tomada, não podia mais voltar atrás.
Esperou até que eles finalmente se separassem e, com os últimos raios de sol ainda no horizonte, resolveu ir ao encontro da rival. Com um encanto, criou uma forte neblina que escureceu a campina por onde a moça seguia, impedindo que qualquer outra pessoa visse o que estava prestes a acontecer.
Aproveitando um momento de distração da rival, materializou-se em sua forma humana, agarrando-a pelos ombros, as unhas compridas cravando-se na pele dela, de modo a toldar-lhe qualquer chance de reação.
O primeiro reflexo da garota foi tentar gritar por socorro. Mal abriu a boca, porém, a sua energia vital lhe foi sugada pela criatura ancestral. Em poucos segundos, o corpo jovem e altivo da moça foi murchando e enrugando, os sedosos cabelos negros ficando sem cor, até que a força lhe faltou e a carcaça, esquelética, deformada e desprovida da chama da vida, desabou inerte na relva úmida.
A assassina, em contrapartida, sofreu um processo inverso. Ao sugar para si a energia vital da humana, rejuvenesceu, voltando a ter a formosa aparência que possuía quando jovem.
Afastou-se do cadáver retorcido, flutuando centímetros acima do chão, enquanto diminuía gradativamente de tamanho, retornando à sua forma original de fada. Embora não sentisse remorso algum pelo crime cometido, a elemental jurou que aquela seria a primeira e a última vez que abreviaria, de forma intencional, a existência de outro ser.
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Muitas primaveras antes…
A elemental estava cumprindo suas obrigações para com a Mãe Natureza, quando ao passar por uma clareira da floresta, ouviu algo que atraiu a sua atenção: o choro de uma criança.
Não resistindo à tentação, voou para o alto de uma árvore, de onde podia espionar sem ser vista.
Na clareira, um menino esbelto e gracioso, com aproximadamente sete primaveras estava no limiar de submeter-se a mais um importante rito de passagem da infância. Seu primeiro dente de leite encontrava-se prestes a cair e a mãe tentava convencê-lo a deixar que o arrancasse. Ele recusava-se, chorando copiosamente. Para aliviá-lo do medo que sentia por uma suposta dor que nem sabia se sentiria ou não, a mulher inventou-lhe uma fábula, onde prometia que se ele colocasse o dentinho recém extraído debaixo do tapete de folhas onde dormia, durante a noite, uma fada viria buscá-lo e, em seu lugar, deixaria uma saborosa fruta. Inocente como toda criança de sua idade, ele acreditou. E permitiu que a mãe procedesse à extração, suportando a dor corajosamente.
Comovida com a linda história que acabara de ouvir, a fada decidiu tomar, para si, a incumbência de torná-la real. Procurou até encontrar a mais suculenta fruta da estação. E durante a noite depositou-a ao lado do menino, tomando o cuidado de levar consigo o dente, que posteriormente transformou num lindo amuleto.
Na manhã seguinte, não resistiu e retornou à clareira. Ansiava por ver a reação da criança ao acordar e encontrar a recompensa por sua coragem. Conforme o previsto, ao acordar, o garoto logo divisou o presente. Com os olhinhos brilhando de satisfação e saltitante de felicidade, mostrou a frutinha para todas as outras crianças da tribo antes de devorá-la.
A fadinha nunca soube como começou exatamente, mas aos poucos ela acabou se apaixonando pelo jeito alegre e doce do garoto, passando a visitá-lo, em segredo, todas as noites. Passava horas velando o seu sono, afastando todo e qualquer perigo. E o que, no início, era apenas uma inexplicável paixão, transformou-se em amor, no sentido mais sublime da expressão. Ela tornou-se a sua protetora, o seu anjo da guarda invisível, passando a vigiá-lo de perto.
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O tempo passou e o menino transformou-se em um garboso rapaz, virtuoso e de semblante iluminado. Aos dezessete anos já era um homem feito.
O sentimento que a fadinha tinha por ele tornou-se cada vez mais acentuado, até que numa noite, não mais suportando aquele amor platônico, ela tomou uma importante decisão. E, sem racionar direito, solicitou uma audiência com os anciãos do Reino das Fadas.
Na primeira noite de lua cheia depois, uma tumultuada assembléia teve início na copa do mais antigo carvalho da Terra. Não somente fadas, mas seres místicos de toda sorte se agrupavam em torno do Conselho dos Anciãos, ansiosos para ouvir o que tinha a dizer aquela que os convocara.
Após as considerações iniciais, o mais velho dos anciãos cedeu-lhe a palavra. Ela não se fez de rogada. Apresentou-se e, logo em seguida, começou a relatar a história de como conhecera aquele por quem se apaixonara perdidamente. A mera revelação de que o eleito de seu coração era um ser humano causou o maior rebuliço. Mas ela foi além, solicitando a permissão do Conselho para assumir a forma humana e viver, na plenitude, o seu amor. A floresta inteira sentiu a ira da Mãe Natureza ante tal pedido, sob a forma de uma terrível tempestade.
Quando a situação voltou ao normal, foi-lhe exposto, então, que a relação entre os seres místicos e os humanos era terminantemente proibida. Os anciãos enumeraram uma lista sem fim de objeções. Em resposta, a fadinha contrapôs cada uma delas, enfatizando que se o amor fosse verdadeiro e recíproco, superaria todos os obstáculos.
E assim, a assembléia mística seguiu-se, ininterrupta e turbulenta, por dias a fio. Até que, vencidos pelo cansaço e pela irredutível determinação da pequena elemental, os anciãos optaram por ceder. E concederam-lhe a permissão para viver, na plenitude, o seu inusitado amor. Mas alertaram que a sua insensata união poderia trazer indesejáveis implicações, tanto para ela quanto para os demais envolvidos.
Totalmente obliterada pelo ardente desejo que a consumia, ela simplesmente os ignorou, deixando o topo do carvalho feliz da vida e ansiosa para realizar o seu grande sonho…
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O que ela não imaginava, nem em seus piores pesadelos, era que, durante a sua breve ausência, o rapaz que arrebatara o seu coração se enamoraria por outra humana. Todavia, o constatou, assim que adentrou a clareia onde a tribo dele habitava.
O choque de flagrar o amor de sua vida nos braços de outra, nublou o seu senso de discernimento, abalando de forma irreversível as suas estruturas emocionais. O ciúme a dominou a ponto de cegar a sua razão, levando-a a articular o assassinato da rival.
Observou-os durante o passeio pela campina; e quando surgiu a oportunidade, deu prosseguimento ao nefasto plano.
Consumado o ato criminoso, ainda transtornada, a assassina transmutou-se para a forma humana e apresentou-se como única sobrevivente de uma comunidade extinta. Foi de imediato aceita na Tribo da Clareira. Pouco tempo depois, já havia assumido o lugar da morta – dada como desaparecida – no coração do rapaz.
Dez luas depois, no início do outono, eles casaram, em meio a uma festança sem precedentes. Outras luas se passaram, e a fada-humana descobriu, para a felicidade de todos na tribo, que trazia no ventre um minúsculo ser, fruto de seu controverso amor.
A primavera chegou. E com ela, as primeiras contrações. Em polvorosa toda a tribo reuniu-se em volta das parteiras, para recepcionar o novo membro que estava para nascer. Nas copas das árvores mais altas, o Reino das Fadas também se fazia presente, representado por milhares de minúsculos elementais.
Todos estavam radiantes e ansiosos. No entanto, o parto não transcorreu conforme o previsto… Inexplicáveis complicações prejudicaram o desfecho daquele tão esperado evento que, de alegre e festivo, transformou-se, num piscar de olhos, em momentos de puro terror e agonia. Do nada, uma grave hemorragia interna teve início, drenando as forças da fada-mulher, que morreu antes mesmo de expelir o feto. Prevendo que não conseguiriam salvar as duas, as parteiras optaram pela criança. De posse de uma pedra pontiaguda e extremamente afiada, elas não pensaram duas vezes: rasgaram o ventre ensanguentado, retirando o que, em hipótese alguma poderia ser descrito como um lindo bebê. O pequeno ser revelou-se a mais hedionda aberração, provocando asco e repulsa nos adultos, medo nas crianças e perplexidade nos elementais.
Com o rosto retorcido, dentes salientes, olhos cor de sangue, corpo deformado e garras no lugar das mãos e pés, o recém-nascido soltou um ganido estridente, causando arrepios até no mais corajoso dos presentes.
Desesperado com a inevitável morte da esposa e, mais ainda, com a aberração que concebera, o rapaz deixou a clareira aos prantos, lançando-se no precipício que ficava além da campina.
Supersticiosa ao extremo, a tribo deixou a clareira naquela mesma noite, para nunca mais voltar. Já a criança monstro, foi abandonada à própria sorte, literalmente largada sobre a pegajosa poça de sangue que se formara ao redor do corpo sem vida da mãe. Não fosse pela compaixão das fadas que, apesar da sua horripilante aparência, a recolheram, certamente não teria sobrevivido.
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Ela cresceu, tornando-se uma mescla adulta de fada, monstro e mulher. E, com muito gosto, resolveu retomar a surpreendente obra que um dia a mãe começara. Desde então, dedica-se exclusivamente a recolher os dentes recém extraídos das crianças do mundo inteiro, deixando em troca uma simbólica recompensa. Mas só vem à noite, para que não a flagrem, por causa de sua medonha aparência. Poucas crianças a enganaram e a viram. Destas, nenhuma sobreviveu…
E assim deu-se a verdadeira origem da famosa lenda da “Fada do Dente”!