Em um mundo parecido com o nosso, há um país com a mesma cara que o nosso e, em sua maioria, os mesmos problemas. A vital diferença é de que nesse mundo se enfrentava um terrível problema a mais. Havia naquelas paragens uma “epidemia” de ataques de leões. Muitos diziam não saber o porquê dos ataques ocorrerem, e o pior, preferiam ignorar que maioria dos ataques ocorriam em casa. Os leões pareciam se materializar entre as famílias, inclusive as ditas ajustadas, e fazer vítimas mortais. Quando não resultava em morte, os ataques deixavam as vítimas marcadas e traumatizadas pelo resto da vida. O pior, havia um modus operandi aos leões, uma predileção por crianças e mulheres.
E foi nesse mundo de ameaça terrível que Catarina passaria seu primeiro fim de semana sozinha. A mãe tinha que viajar a trabalho, e ela já era velha e responsável o suficiente para ficar tranquila em casa por dois dias. E caso ela precisasse de algo poderia recorrer ao vizinho, um velho conhecido da família. Um senhor de meia idade, tido como responsável, dado que tinha criado dois filhos bem sucedidos na vida. Com essa segurança se despediu da mãe na noite anterior, e ficou vendo filmes e comendo pipoca, até o sono tomar conta dela e adormecer entre milhos e com o som de fundo de um filme de um menino esquecido em casa durante o Natal. Dormiu um sono pesado, e teve estranhos sonhos sobre caixas azuis e homens criados por macacos.
Acordou com o susto ocasionado pelo barulho de coisas caindo na sala. A letargia do despertar recente não a permitiu reconhecer o que causara o som, o que a levou a acreditar num primeiro momento que era a televisão. Coçou os olhos, enquanto num esforço se sentava na beira da cama. Encarou por um momento, ainda sonolenta, a porta entreaberta do quarto. Nesses segundos que terminava de despertar, o barulho que a acordara aos poucos esgueirava para fora de suas preocupações imediatas. Checou o televisor e o descobriu desligado. Deve tê-lo feito em meio ao sono, pois não recordava. Prendeu o cabelo com um bico-de-pato metálico da mãe, que encontrou solto na cabeceira, e foi ao banheiro da suíte, lavou o rosto e se encarou no espelho. Olheiras e espinha era o que enfeitava seu mal acordado rosto que entrava na adolescência. Suspirou enquanto colocava pasta na escova de dentes, bocejando, tentando organizar mentalmente a rotina do que faria naquele dia com a casa só para si. Mal chegou a colocar a escova na boca quando teve sua atenção desviada para um novo barulho. O som a fez lembrar do susto que a acordou, e novamente era o barulho de objetos caindo que se fazia soar de fora do quarto. Dessa vez acreditava vir da cozinha.
Resolveu investigar enquanto escovava os dentes. Pensou que tivesse sido o vento e nada mais. Parou sobre a pequena antessala que separava os quartos e o banheiro no segundo andar. De lá mesmo procurou ver o que tinha acontecido. Viu porta-retratos no chão, assim como alguns vasos de planta espalhados pela sala. As janelas estavam fechadas, o que a fez ficar um tanto apreensiva dado que descartava a possibilidade de ter sido o vento a causa do barulho. Desceu lentamente as escadas flutuantes, tentando enxergar de lá a cozinha, que tinha sua entrada em paralelo a parede das escadas. Enquanto descia sentiu um leve cheiro acre de pelos molhados e ureia, e cada degrau podia sentir o mal cheiro mais forte, a obrigando a respirar pela boca e fazer caretas de nojo. Olhou lentamente sobre a estante a qual servia de bancada na cozinha. Dada a conformação arquitetônica, Catarina conseguia ver plenamente a cozinha dos últimos degraus, e por um momento o coração parou.
Viu, sobre as patas traseiras, apoiado sobre a bancada, mexendo nas panelas de comida, um terrível e gigantesco leão. Era uma besta enorme. Devia ter quase dois metros da anca até o focinho, seu tamanho e peso eram de uma completude vigorosa e absolutamente intimidante. A pelagem tinha um aspecto sujo, e a juba caia sobre a cabeçorra e o tronco como um enorme cachecol de pelos vermelhos embaraçados. A fera retirou o focinho de dentro das panelas, fungando o ar. Lentamente desceu da bancada, se virando em direção a porta que dava para a sala.
O movimento da besta serviu para tirar Catarina do torpor que estava, e que ela ouvia falar de que assolava muitas vítimas dos ataques de leões. Ela viu de relance o brilho lascivo dos olhos da fera, antes de correr escadas acima e se fechar no primeiro quarto.
Os olhos estavam cheios de lágrimas e podia sentir o coração bater tão forte que doía. Se forçava a ficar em pé, dado que o corpo todo tremia do pavor que a assolava. Pensou em como poderia ser possível que aquilo estava acontecendo com ela, na segurança de sua casa. Absurdamente foi tomada por uma culpa pelo leão estar ali e se perguntava o que tinha feito de errado. Rezou para que a fera não a tivesse percebido e lamentou que estivesse com o pijama curto. Pensou se não estaria provocando o leão com tanta pele exposta, consequentemente estando mais suscetível ao ataque. Pensou em ir a janela e gritar por socorro, mas quem acreditaria que teria um leão em casa? Vivia ouvindo histórias de pessoas que gritam por socorro e são sumariamente ignoradas e posteriormente condenadas pelo ataque de que são vítimas. Com a mente em polvorosa pensava o porquê as pessoas ignoravam esses pedidos de socorro e a veracidade dos ataques. Como podiam tratar com desprezo e escárnio quem buscava sobreviver a um ataque tão vil. E pior, o grito emudecia em sua garganta, pois além do receio de ser ignorada, podia atrair a fera até onde ela se refugiava.
Foi com essas preocupações que Catarina ouviu a besta leonina fungando pelo vão da porta. Ao ouvir o som da respiração do animal do outro lado da frágil barreira de madeira, correu para o lado oposto do quarto. Percebeu apenas naquele momento que tinha entrado no quarto de visitas, o qual a mãe estava transformando em um escritório. Procurava algum lugar que pudesse se isolar da fera, que começava a arranhar a porta e emitir um grunhido irritado. Aquele som parecia um peso cada vez maior somado ao peito da assustada adolescente. Ela olhou a janela gradeada, vestígio da preocupação da mãe com a segurança na casa, e em desespero tentou forçar a grade. Em meio aos próprios grunhidos de força, ouviu o grunhido do leão à porta, e um baque surdo na mesma, como se ele tivesse ficado em pé, apoiado contra a porta.
A besta arranhava a porta com mais vigor. Parecia decidida a cavar uma passagem na madeira. E nesse esforço de cavar a porta, conseguiu acertar a maçaneta, fazendo-a girar. Catarina reagiu de pronto à iminência da porta abrir. Empurrou com toda a força a pesada mesa que a mãe usava para trabalho em direção à porta. Mas não fora rápida o suficiente, o leão já tinha aberto a mesma o suficiente para enfiar a cabeça dentro do cômodo e perceber a ameaça de ser imprensado pelo objeto. Em reação a essa ameaça imediata, ele projetou o corpo escritório adentro, terminando de escancarar a porta. Mesmo reagindo com sua velocidade felina, a quina da mesa ainda acertou a lateral do corpo do animal, o fazendo soltar um urro de susto. O urro foi acompanhado de um baque alto da mesa que que bateu na porta, e pelo gemido de Catarina ao sentir o corpo franzino ser projetado contra o tampo da mesa. O móvel ficou entre Catarina e a porta, enquanto o leão se virava contra a jovem mais uma vez, rosnando irritado.
Porém, o impacto da mesa contra a quina da porta não deteve o avanço de Catarina, mesmo lhe tirando o fôlego. Não podia se dar esse luxo e aproveitou a sua inércia para girar para a lateral da mesa e correr para passar pela porta. Não olhou para ter certeza onde o leão estava, mas podia percebê-lo pela visão periférica. Enquanto passava pela porta viu que o leão se projetava sobre ela. Por questões de instantes ela conseguiu se esquivar do bote felino se esgueirando pelo vão formado entre a porta e a mesa. Ouviu o rugido do leão e o som da mesa contra a parede. Corria em direção ao quarto em frente quando decidiu olhar para trás. Foi tomada pela ideia de que se fechasse a porta do escritório a fera não conseguiria abri-la novamente.
O único erro de Catarina naquele dia foi esse breve momento em que parou e olhou para trás. Como se soubesse do risco de ficar encurralada, a fera, ainda cambaleando do bote infrutífero, se lançava pelo vão da porta em direção a adolescente. A jovem soltou um gritinho mudo, enquanto girava nos calcanhares de volta ao quarto a menos de um metro na sua frente. Mas não foi tão rápida. Sentiu uma pancada dura contra a perna, seguida da dor de ter o corpo lançado de bruços contra o chão. O leão tinha se esticado e com a pata em riste e garras à mostra, tinha dado uma rasteira em Catarina, que foi ao chão de forma desajeitada. Havia sangue escorrendo da canela e do lábio partido. A fera se excitou mais ainda.
O leão se levantou imponente, observando a garota tentar se arrastar em direção a porta. Ele pisou sem pudores sobre a bacia de Catarina, a fazendo gritar de medo e da dor das garras que rasgavam seu short e violentavam sua pele. Ele a puxou para perto dele, fazendo a tentativa dela de escapar e de se apoiar no chão inúteis. A besta arfava como se risse do esforço da menina. Ela sentia o cheiro de seu sangue, e o salgado de suas lágrimas. Mas o pior era o cheiro acre do hálito da fera. Algo como carniça fermentada. Temia que aquele cheiro nunca mais a abandonasse, caso sobrevivesse.
Catarina sentiu um estalo na bacia quando a fera apoiou momentaneamente seu peso nela, um breve momento, antes de colocar sua outra pata sobre a cabeça de Catarina. A dor aumentou, a pressão do peso da fera sobre seu crânio fez Catarina ver pontos brancos e pensar que iria morrer com a cabeça esmagada, como uma uva pisada. Tinha certeza que apenas o fedor da boca do leão a impedia de desfalecer. E esse fedor a fez lembrar das aulas de educação contra leões na escola. Aulas que grupos de pessoas, inclusive pessoas religiosas, diziam que não deveriam existir. Pois tais classes, diziam, apenas serviam para ensinar as crianças a provocarem os leões, ou atraírem leões para si. Alguns diziam que as aulas eram inúteis, que a culpa era das pessoas que saíam sozinhas, se embebedavam ou permitiam que leões chegassem perto. Outros diziam que era da natureza dos leões atacar os fracos, e assim não havia o que fazer, então as aulas serviam apenas para ensinar desvios não naturais às crianças. Ou, ainda mais, que as aulas desvirtuariam a religiosidade das crianças. Que aquelas bestas são o símbolo do Leão de Judá e por isso as pessoas deviam se curvar à vontade das feras de imensa cabeleira, como se proclama nas escrituras sagradas. Que se os pais quisessem que ensinassem sobre leões em casa, mas esse tipo de ensinamento não cabia às escolas.
Porém, os professores e a mãe de Catarina não estavam nesse grupo, e ensinaram a ela o que podiam sobre os ataques. E ela lembrou, que essas feras tem predileções por lamber e morder o pescoço de suas vítimas. Sabia que era isso que o leão, que montava nela, iria fazer e por isso se aproximava de seu rosto. Ela aproveitou então esse pequeno intervalo para pegar seu bico-de-pato o segurando da forma mais firme possível. E quando a fera aproximou o focinho do pescoço de Catarina, ela com toda sua força em um movimento de estocada, enfiou o pontudo prendedor de cabelo contra a cabeça do leão.
Catarina sentiu resistência de primeiro, mas depois sentiu apenas o rasgar de pele e o perfurar algo mole e gelatinoso. E algo quente e viscoso escorreu por sua mão. E ela não soltou o bico-de-pato. Puxou a mão para a posição inicial e estocou de novo, com a velocidade de um bote e toda força que podia reunir. Sentiu mais resistência dessa vez, mas novamente percebeu que rompia a resistência e feria a fera. O leão urrou, saltando para longe de Catarina. Tivera o olho furado no primeiro ataque e a narina aberta no segundo. Estava confuso, nunca esperaria uma reação da menina. Fungava e passava a pata sobre a cabeça, como um gato que tenta se limpar. Urrou de frustração. Catarina se aproveitando da confusão da fera, se arrastou o mais rápido que pode ao quarto da mãe, fechando e trancando a porta atrás de si. Ainda segurava com tanta força o bico-de-pato ensanguentado que feria a própria mão.
Ela se trancou no banheiro, e ficou ali, agachada, agarrada ao prendedor de cabelo como se fosse a mais poderosa arma do universo. Sentia as dores profundas dos seus machucados. Os cortes na perna, na cintura, e no rosto começavam a coagular, mas a fazia sentir calafrios sempre que sentia o sangue ainda escorrer. O medo, a raiva e o choro copioso eram suas companhias, que seriam sempre lembradas pelo resto da vida quando ela se visse sozinha. Lembranças que não só a fariam sentir um nó na barriga e um peso irremovível do peito, junto ao pavor e a frustração desse sentimento que a tornava refém da lembrança traumática.
E esses sentimentos a aterrorizaram por todo o dia. A fera tinha sumido, fugido para lamber as próprias feridas, enquanto Catarina tentava superar as suas próprias, tanto físicas quanto psicológicas, em meio a luta para reaver a coragem de sair do refúgio do banheiro.
No outro dia, quando criou coragem de sair do quarto, Catarina ligou para a mãe, pedindo que ela voltasse logo. Mas não teve coragem de contar o que aconteceu à mãe o porquê queria que ela voltasse logo, não por telefone. Se sentia suja, culpada pelo mal que fora vítima. Pois era isso que a maioria das pessoas faziam as vítimas dos ataques de leão sentir: culpa, remorso e dúvida do merecimento da própria existência. Pois ninguém parecia se importar como efetivamente mudar a situação, além de pedir bom comportamento das vítimas e xingar os grupos que propunham mudanças. E assim como outras vítimas que sobreviviam, Catarina teria que lidar o resto da vida com as cicatrizes do ataque, e com sorte, fazer com que as cicatrizes seja um símbolo de sobrevivência e não de vergonha. A mãe a ajudaria nisso, era um exemplo de mulher forte e uma grande companheira esclarecida para a filha.
Mas Catarina tinha sido uma das, em média, 164 vítimas diárias de ataques leoninos naquele país, naquele planeta, que em tudo era parecido com o nosso, menos nos ataques de leões.
Ou talvez, até nisso.