A bala penetra o crânio da criança rosada de gelado. Um olho escorrega-lhe pela camisola, e a sua mãe implode em grunhos histéricos e perdidos, não pela morte da cria, mas pelo risco da sua vida.
Estou sentado a observar uma mãe a largar o filho morto, correndo sem alma para o que parece ser um abrigo. Vejo pessoas a espezinharem o crânio aleijado e o corpo inerte. Quando a rua fica desimpedida, uma idosa de bengala desce do seu prédio para beijar a outrora criança. Com água engarrafada, a velha lava-lhe a face espezinhada, enquanto suspira de alívio por ver que o seu coração parara, em vez de levar o pequeno pelo caminho tortuoso da pseudo-sobrevivência, culminando na inevitável desistência da alma para com o corpo.
Anoitece e a mãe da criança está em soluços frente a um polícia, enquanto o corpo desprovido do lamber de gelados futuros está encarcerado num manto negro — como se um manto pudesse esconder a grotesca morte, a nojenta falta de movimento dum corpo. A idosa segurava a mão da mãe, como se estas tivessem uma ligação — têm-na na criança; uma larga-a quando o menino tomba e a outra lava-o quando o menino não se levanta. O elo é o corpo desprovido de ser corpo. Leio na face da mãe o arrependimento do abandono e na da idosa a desilusão para com o instinto da progenitora. A morte duma criança é tão mais assustadora do que a de um adulto.
Agora, terei de abandonar este meu relato, pois a polícia começa a encaminhar-se para aqui. Já guardei a arma, mas ainda tenho o lábio trémulo. Espero que a mãe se consiga perdoar, e que a velha não a condene moralmente por ter desistido do encargo de mãe, nos últimos e alegres segundos do seu filho.