Lígia, Lígia. Ser execrável. Ontem, lá foste tu pela 25.ª vez ao centro de saúde este ano e, como não podia deixar de ser, aperaltaste-te com aquele vestido branco tão desadequado à tua idade. Será que ninguém faz o favor de te dizer que é transparente? Seríamos todos poupados de visões deploráveis.
O médico despachou-te em três tempos. Agora sofres de apneia do sono. Mas, para ti, era mau-olhado, com certeza alguma bruxa te tinha visto. Estavas a ir bem, Lígia. Se isto tivesse sido um jogo, estavas «quente, quente».
Não posso deixar de dizer que admiro a criatividade dos médicos quando não fazem a mínima ideia do que se passa. É mais ou menos como na meteorologia. Pode estar sol, frio ou chuva. Pode ser apneia do sono, varizes ou uma hérnia discal. Mas sim, apertar o teu pescoço quase até te esganar é sem dúvida apneia do sono.
Infligia-te sempre o mesmo sonho. Estavas deitada e vias-me de costas junto aos pés da cama. Na mão esquerda, tinha uma pequena boneca. Não estava suficientemente visível para me reconheceres, mas tive o cuidado de me apresentar com a minha saia cor de ameixa que deixava à vista as minhas longas pernas, que tanto detestavas, ainda que o teu dever fosse manter o foco nas minhas competências.
O sonho fica por aqui. Faço com que acordes a suar em bica, com a boca seca, atordoada, quase sem saberes quem és.
Comecei de mansinho, com picadelas pequenas. Mas logo me adiantei para que ficasses coberta de hematomas, desde o couro cabeludo até às unhas dos pés. O sonambulismo foi culpado pela fractura no braço direito e no fémur. Também ocorreram algumas interferências que te deixaram meio surda.
Hoje, foi o meu último dia lá no trabalho. A tua vontade de me ver pelas costas era tão grande que pouco ou nada conseguias disfarçar. Quando me viste entrar para a casa de banho, o sonho esquisito transformou-se no teu pior pesadelo. Sim, trouxe a saia cor de ameixa e a pequena boneca. O tempo de reacção foi curto. Quando saí, estavas caída no corredor com as pessoas todas desorganizadas a tentar acudir. Segundo o relatório do médico-legista, o que te fez abalar para a quinta dos pés juntos foi um enfarte do miocárdio fulminante. Foi mais ou menos isso, deixei o coração para o fim. Foi nele que cravei o último alfinete.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945